O macaco que se fez homem/2

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A NUVEM DE
GAFANHOTOS



SER empregado publico de inferior categoria e por mal de peccados demissivel: será isso programma que seduza alguem?

E'.

E para Pedro Venancio mais que seduzia — sorria. Foi, pois, com enlevo alma que recebeu a noticia de sua nomeação para fiscal da camara-municipalzinha de Itaóca.

— Vou socegar, disse comsigo, esfregando as mãos de contentamento. Cavei o meu osso e agora é roel-o pela vida em fóra na santa paz do Senhor.

E ferrou o dente no ossinho.

Mas acontece que ha osso e osso. Osso de bom tutano e osso pedra-pome.

No andar do tempos verificou Venancio que o tal ossinho era desses que embotam os dentes sem dar o minimo de succo.

— Gastar a vida inteira naquillo? E' ser tolo, cochichou-lhe a humana ambição de melhoria, engenhosa fada a quem se devem todos os progressos do mundo.

Espicaçado por ella entrou Venancio a fariscar tutanos.

Recorreu antes de mais nada á loteria, que é a Sorte Grande o supremo engodo dos pé-rapados.

Venham gasparinhos! Todas a semanas adquiria um — e sonhava. O mesmo vendeiro que lhe fornecia aos sabbados a semanal quarta de feijão, os semanaes oito litros de arroz e o semanal cento de cigarros, juntava na conta mil reis de sonhos. E Venancio, comido o feijão, fumado o cigarro, sonhava. Sonhava o doce beijo da Fortuna, boa deusa que o despegaria do atoleiro com um simples toque de sua asa potente.

Em materia de cultura não era Venancio de todo crú. Lia suas cousas e tinha lá suas idéas. Revelára desde cedo grande embocadura para a lavoura e documentava o pendor assignando quanta publicação official existe. Publicações gratuitas...

Assim, nas palestras da pharmacia ninguem piava sobre lavoura sem que elle pulasse no meio com a sua colher torta. E era de ver o calor da sua argumentação e a riqueza das suas citações estatisticas.

Fazendeiro que nesses momentos passasse, havia que parar e abrir bem aberta a bocca.

Possuia planos grandiosos para salvar o café e pol-o ahi a quarenta mil réis a arroba...

— Quarenta mil réis, Venancio? Não acha meio muito?

Venancio incendiava-se.

— Porque muito? Não somos os maiores productores? Não temos o quasi privilegio desta cultura? Se é assim, o logico é que imponhamos o preço.

Eu disse quarenta, não foi? Pois digo agora quarenta e cinco! Digo cincoenta!

— !!!

— Não se espantem. Eu provo que póde ser assim e que os americanos têm que gemer alli no dollarzinho, queiram ou não queiram!

— !!!

— Quei-ram ou não quei-ram! reaffirmava o salvador, escandindo as palavras.

E provava.

Tambem extinguia em menos de um anno a lagarta rosada, mais o curuquerê; e triplicava a corrente immigratoria; e extrahia o azoto do ar, pondo o adubo ao alcance de todos, a cem réis o kilo, talvez mesmo a setenta.

— Porque, como os senhores sabem, a chimica agricola demonstra que...

E demonstrava.

Num desses rompantes demonstrativos o coronel da terra, de passagem pela rua, deteve-se a ouvil-o e, finda a tirada, disse-lhe á queima-roupa:

— Que excellente ministro da Agricultura não dava você! Duvido que os Calmons e os Bezerras entendam mais de lavoura...

— Está caçoando, coronel! murmurou Venancio com modestia, embora no intimo convencido da justiça da apreciação.

— Falo sério. Bem sabe que não brinco.

Os circumstantes sorriram discretamente, enquanto o massa-de-ministro se lambia todo, como boi solto.

Em casa repetiu á esposa a opinião do chefe politico.

— Brincadeira delle, Pedro! objectou a sensatissima consorte. Não está vendo?

— Brincadeira nada! O coronel é homem que não brinca, você bem sabe...

Desde esse dia fez-se Venancio ministro da Agricultura. Plantou-se de armas e bagagem no casarão da Praia Vermelha e com raro tino administrativo salvou o paiz.

Que efficacia de medidas! Que sabias leis protectoras! Que maravilhosos resultados!

Lagarta nos algodoaes? Nem umazinha para remedio! Curuquerê? Nem sombra! O café trepou á casa dos quarenta...

— Por arroba?

— Por dez kilos, homem!

E, firmissimo, revelava tendencias para alta maior. Os mais pessimistas já concediam que não era de admirar fosse a cincoenta.

A borracha do norte arrancou-se ao marasmo em que emperrara e voltou a ser um Pactolo de esterlinas.

Azoto andava por ahi aos ponta-pés, como um trambolho.

E na cabeça de Venancio os sonhos lotericos desappareceram trocados pelos sonhos administrativos, muito mais amplos e de muito maior alcance patriotico.

A consequencia foi que Venancio se eternizou no ministerio. Varios presidentes se succederam sem que nenhum ousasse tocar em sua pasta. Era sagrado aquelle ministro de genio, que salvara o paiz, enriquecera a lavoura, desafogara o commercio, consolidara a industria e que, adorado pela nação, teria estatua em vida.

Que teria? Que teve! Por mais que em sua infinita modestia o grande ministro recusasse tal homenagem, a gratidão nacional teimou em glorifical-o no bronze.

Inesquecivel a manhã em que Venancio, de lagrimas nos olhos, viu rasgarem-se os véos da sua estatua!...

Ao Salvador da Patria,
o Povo agradecido.

Agradecido ou enriquecido? A turvação dos olhos não lhe permittiu distinguir a expressão exacta e por longo tempo semelhante duvida o torturou.

Mas a grande recompensa teve-a elle em casa, ouvindo á esposa estas deliciosas palavras:

— Agora sim, Venancio, acredito que você é o que dizia. Até estatua!...

A boa senhora só se convencia com provas de bronze ...

O doloroso, porém, era o contraste das duas vidas — ministro por dentro e fiscal da camara por fóra, obrigado a interromper a matutação de um projecto salvador para ir, de bonézinho na cabeça, cercar na rua carros de boi não aferidos ...


Um anno se passou assim, no qual os gasparinhos falharam lamentavelmente.

O mesmo dinheiro; zéro; zéro; zéro; o mesmo dinheiro; zéro; zéro. Os seus rapapés á Sorte Grande recebiam da grande cortezã apenas esta magra resposta. Taboas sobre taboas; carranca amarrada sempre e jamais o sorrisozinho de uma “approximação” para consolo.

Mas um dia ...

Nesse dia Venancio disputava com a esposa, que reclamava dinheiro para umas compras. — Estamos ahi com a louça reduzida a cacos. Chicara de chá, duas e desbeiçadas. De café, tres e sem asas. Hontem, quando aquelle cacetão do Freitas esteve aqui, fui obrigada a emprestar uma da vizinha. Veja que vergonha!...

Venancio reluctou,

— Mas porque é que quebram a louça? O anno passado, lembro-me, eu mesmo comprei meia duzia de cada.

Dona Fortunata poz as mãos na cintura.

— Porque quebram? A pergunta é bem idiotazinha... A louça quebra-se porque é quebravel. Se fosse inquebravel não se quebraria. Parece incrivel que um homem. indicado para ministro...

— Não admitto ironias! Quer louça? Compre com o dote que trouxe...

— Já esperava por essa resposta. Está mesmo uma resposta de ministro... do coronel, concluiu d. Fortunata, venenosamente.

Venancio, engasgado de colera, ia replicar, quando a porta da sala se abriu e o vendeiro irrompeu como um pé de vento:

— Deixe ver seu bilhete! Se é o 3743, pegou!

O improviso do lance transformou em estupor a colera de Venancio, que entrou a piscar, numa tonteira, como quem levasse porretada no craneo.

— Quê? Que é? tartamudeava elle.

O vendeiro bateu o pé, impaciente.

— O bilhete, homem! Deixe ver seu bilhete, homem de Deus! Parece estuporado!...

Custou a Venancio encontrar na papelada agricola que lhe enchia os bolsos o raio do bilhete. Suas mãos tremiam-lhe e o cerebro andava á roda.

Por fim achou-o.

Era o 3743.

Pegára os vinte contos.


Estas revoluções operadas pela Sorte em cerebros venancinos não ha ahi quem as conte.

E' banho de opio, é fumarada de haschich, é gole de cocaina, é bebedeira que rompe toda a velha crystalização dos miolos.

A ebriez do ouro vale pela somma da essencia ultima de todas as mais ebriedades. Só ella abre a gaiola a "todos" os sonhos e põe o homem leve, com pequeninas asas em cada póro do corpo.

No caso de Venancio, porém, não houve muita vacillação. Sua directriz estava traçada pelo insopitavel pendor agricola.

— Uma fazenda, uma grande fazenda, a melhor fazenda do municipio — a fazenda modelo da zona. Da zona? Do paiz, porque não? E depois, e depois — quem sabe? — o ministerio, desta vez de verdade. O mundo dá tantas voltas...

E faria isto e mais aquillo, e mais isto e mais aquillo. Meu Deus! Como a fazenda foi-se aperfeiçoando, e a que requintes de primor attingiu!

Legiões de curiosos vinham de longe visital-a, e pasmavam.

A fama corria, os jornaes estudavam-na em artigos longos. Por fim o governo, impressionado com a voz publica, mandava examinal-a e propunha-lhe compra. Era forçoso que pertencesse ao patrimonio da nação uma coisa daquellas, para que todos pudessem aprender na maravilhosa escola as palavras ultimas do aperfeiçoamento agricola.

Mas, vendel-a? A um particular, nunca! A' nação, sim, coagido pelo patriotismo. Isso mesmo, porém, sob uma condição! Oh, sim, uma condição "sine qua non": darem-lhe a pasta da agricultura...

— Porque eu, senhores, farei do Brasil inteiro o mimo que fiz da minha fazenda. Um vergel florido! A nova California, o paraiso terreal!...

O governo chorava de commoção e dava-lhe a pasta, sob as acclamações delirantes do povo agradecido...


Infelizmente, os vinte contos não eram elasticos e Venancio teve que arrepiar atraz da vertigem megalomanica e adquirir um pequeno sitio, ahi de trinta contos de réis. Deu quinze á vista e ficou a dever quinze, sob hypotheca. Os cinco restantes reservou-os para custeio e reformas.

Sitio velho, de terras cançadas; mas isso mesmo queria elle, para a estrondosa demonstração do axioma tantas vezes berrado na botica:

— Não ha terras más, ha más cabeças. Com a chimica agricola na mão esquerda e um arado na direita, eu faço o Sahara produzir milho de pipoca!

— Mas, Venancio...

— Não ha "mas', ha "más": más cabeças, já disse. De pipoca!

Tinha agora de provar o asserto.


Começou mudando o nome antigo — Sitio do Embirussú — por este, muito mais adeantado — "Granja Modelo de Pomona".

Apesar do lindo nome, o sitio permaneceu a pinoia que sempre fóra.

Barba de bóde, guaxuma, saúva, cupins, joveva, geadas — todos os mimos da brasileirissima deusa Praga.

Em compensação, no que toca ao pittoresco poucos haveria mais bem arranjados. Tudo velho e musgoso e carcomido como o quer a esthetica.

Vate de cabelleira que alli cahisse, desentranhava-se logo em sonetos do mais repassado bucolismo; e o pintor de paizagens encontrava quadrinhos já feitos. encantadores, que era um gosto trasladar para a tela.

As paineiras lateraes á casa faziam em setembro o enlevo dos colibris e das abelhas — mas a paina produzida mal dava para encher um travesseiro.

O pomar, velhissimo, lembrava um ninho de faunos tocadores de avena; laranjeiras de cincoenta annos, pitangueiras altissimas, ameixeiras musgosas, jaboticabeiras, romeiras — o que ha de virgiliano e romantico e sombrio e humido e parasitado. Renda, porém, nenhuma.

Tudo mais seguia por igual teor.

Venancio mediu com os olhos penetrantes a grandeza da sua tarefa e sorriu. Tinha tanta certeza de transmutar aquelle bucolismo em fonte de lucros...

Começou pelas aves. Em vez daquelle sordido restolho de gallinhame'da terra, sem sangue de "pedigree", venham Leghorns para ovos e Orpingtons para carne. Imbecil o fazendeiro que não adopta as bellas raças americanas!

A mesma coisa com os porcos. Nada de canastrões ou tatuzinhos, tardios ou degenerados. Venha o Yorkshire, o Duroc-Jersey!

E venham mudas de boas arvores fructiferas, kakis, ameixa do Japão, damascos, maçãs, peras, tudo isto com explicações ao eterno nariz torcido da esposa.

— Porque você vê, Fortunata, dá o mesmo trabalho e vale cinco vezes mais. Um ovo de Orpington, por exemplo: quanto vale no Rio? Dois mil réis; mais que uma duzia de ovos crioulos!

E venham sementes de capim de Rhodes para as pastagens.

E venha um aradinho de disco, e agora, uma semeadeira, e uma carpideira, e uma grade...

E venha isto e mais aquillo, e as novidades vinham vindo e os cinco contos iam indo, muito muito mais depressa do que elle imaginou.


Tudo isso não seria nada se não viesse tambem uma coisa bem fóra dos calculos de Venancio: visitas.

Um bello dia recebeu elle uma carta de S. Paulo: "... e soubemos que V. está de maré, empacotado pela sorte grande (200 ou 500?) e já montado em linda fazenda. E como andamos todos aqui muito amarellos, e a Bibi necessitada, a conselho medico, de ares do campo, lembramo-nos de passar uns dias ahi, se o caro parente não levar isso a mal..."

— "Caro parente?!"..

Venancio releu a missiva.

— Quem será este novo parente, Ladisláu Teixeira?

Consultou a mulher. D. Fortunata franziu a testa e lembrou:

— Vai ver que é aquelle filho da dona Carola...

— ??

— ... que casou por lá com uma typa de beiço rachado...

— Ahn!...

— ... e esteve uma vez em Itaóca, um anno atrás.

— Em casa do Estevinho, sei...

— Isso! Um tal Laláu.

— Sei, sei... Mas que diabo de parentesco tem elle commigo? Por parte de Adão e Eva póde ser...

— Você já reparou, Venancio, quantos parentes estão apparecendo agora?

— E' verdade. Com este, cinco. E amigos, então? Nunca imaginei que os possuisse tantos...


Venancio respondeu que a casa, casa de pobres, estava ás ordens; que viessem.

Vieram.

Quinze dias depois um trole despejava no terreiro um senhor de meia idade, sua esposa Filoca, tres filhas empalamadas, Bibi, Babá e Bubú, mais uma preta mucama.

Venancio reconheceu-os vagamente, mas por delicadeza fingiu intimidade.

— Bemvindos sejam á casa do parente pobre!

O Laláu abraçou-o, carinhosamente.

— Não diga isso! Você é hoje a gloria da familia. Recebeu a recompensa que merecia. Quantas vezes eu não disse á Filoca: aquelle nosso parente vai longe, porque quem planta colhe. Não é verdade, Filoca?

Dona Filoca sibilou através do beiço rachado uma confirmação plena:

— E' sim! Nós nunca duvidamos do futuro do "primo" Venancio.

Venancio ficou sabendo que era primo...

Nisto um novo trole assomou á porteira.

Laláu explicou:

— Ia-me esquecendo... Vieram comnosco umas vizinhas, moças muito boazinhas, as Seixas. Não te avisei na carta porque foi coisa de ultima hora. Devem ser parentas de dona Fortunata, ao que me disseram...

Venancio interrogou furtivamente a esposa com o olhar e esta respondeu-lhe com um imperceptivel movimento de beiço.

Apearam do segundo trole tres moças e uma negrinha. Laláu apresentou-as.

— Dona Fafá, dona Fifi, dona Fufú.

As moças abraçaram os fazendeiros com grande cordealidade e abriram-se em louvores para as bellezas bucolicas.

— Veja, Fifi, que coisa estupenda esta paineira! Um pic-nic em baixo, hein? Que delicia!

— Nem diga! E este maravilhoso beija-flor? Que bellezinha! Como ficava bem no meu chapéo azul...

E a Babá para Venancio:

— Que ar, primo! Que pureza de ar! A vida aqui deve ser um encanto. E que appetite dá! Eu, que não como nada, seria capaz de devorar um leitão inteiro hoje!

A Bibi conversava com a "prima" Fortunata :

— Leite ha muito, já sei. Fazenda quer dizer fartura. Lá em S. Paulo o leite é agua com polvilho, e carissimo! E' como os ovos: pela hora da morte e metade chócos. Sua gallinhada quantas duzias põe por dia?

E a Fifi para a Bubú:

— Pesei-me antes de vir: quarenta e nove kilos, veja que miseria! Mas daqui não saio sem alcançar cincoenta e oito! Ah, não saio! O meu peso normal deve ser esse, disse-me o medico.

Dona Fortunata attendia a todas, sorrindo amavelmente, emquanto Laláu, já no pomar com Venancio, atacava as laranjas com furia de "retirante".

— A minha conta, quando me pilho num pomar, são tres duzias. Péllo-me por laranjas!

Venancio, armando cara alegre, dizia-lhe que era chupar, chupar...

Mas lá comsigo pensava que naquelle andar não venderia aquelle anno uma duzia, sequer. Só o Laláu dava cabo da safra inteira em quinze dias...

A' decima quinta laranja Laláu parou, entupido.

— Estou por aqui! grugulejou, riscando no pescoço o nivel do caldo.

E, confidencial, ao ouvido do primo:

— Agora, que ninguem nos ouve, diga lá a verdade: duzentos ou quinhentos?

Venancio não teve animo de pronunciar a palavra vinte. Tambem não quiz mentir, e marombou:

— Não chega lá. Tirei apenas uns cobrinhos...

O primo cotucou-lhe a barriga:

— Está escondendo o leite? Faz muito bem, que isso de arrotar grandeza é transformar-se em "fruteira": todo o mundo péga a aproveitar-se.

E, dando-lhe o braço:

— Conselho de velho: defenda os arames, enforque a cobreira! Do contrario, começam ahi a apparecer amigos e parentes que não acaba mais.

Venancio entreparou, pasmado.

— E' o que lhe digo, proseguiu Laláu. Emquanto não possuimos nada, ninguem se importa com a gente. Mas, logo que a maré chega, brotam da terra os aproveitadores como cogumelos!

Venancio pasmou dois pontos mais, e Laláu, lendo a seu modo aquelle pasmo, insistiu :

— E' o que lhe digo! Como cogumelos! Você é inexperiente ainda, não tem os annos que tenho, e deve, portanto, ouvir-me. Como parente proximo, zelo pela familia e faço grande empenho em abrir seus olhos contra a caterva de parasitas que vae por esse mundo de Christo. Quer saber de uma coisa? Foi por esse motivo que eu vim. Motivo real! O resto foi pretexto, você comprehende. Eu disse á Filoca: preciso abrir os olhos ao primo; dinheiro escorrega das mãos como peixe e se lhe não acudo com os meus conselhos, adeus, sorte grande! Vê? Foi por este motivo que vim.

Inda attonito, Venancio balbuciou umas palavras de agradecimento pela generosa intenção e Laláu, colhendo nova laranja, continuou:

— Porque, cá commigo, é assim: para salvar um parente não poupo sacrificios! Ah, não poupo! Vou longe atrás delle, gasto dinheiro, mas aviso-o. Pensa que não foi um sacrificio esta minha viagem? Só de trem, duzentos mil réis! Mas, como já disse, não olho a despesas. E' parente? E' amigo? Não olho a despesas. Ah, não olho! Não acha que deve ser assim?

— Está claro, sussurrou Venancio.

— Parece claro, mas poucos pensam deste modo, e, em vez de sacrificarem um bocado das suas commodidades e virem abrir os olhos ao parente em perigo, sabe o que fazem?

— ?

— Vêm exploral-o! Vêm ex-plo-ral-o, primo! Admira-se? Pois saiba que o mundo está cheio de gente assim. Olhe, eu conheço um caso que...


Nessa noite os fazendeiros passaram a dormir na cozinha. Tiveram que ceder seu quarto ao Laláu e esposa.

As B... accommodaram-se na sala de espera. As F... numa alcova. As duas criadas, na dispensa. Ficou a casa repleta, tendo a cozinheira de dormir fóra, no paiol.

Venancio perdeu o somno. Altas horas, inda matutava:

— Não sei como está para ser! De um momento para outro, onze boccas a mais...

— E que boccas! observou d. Fortunata. Como comem! A tal Fifi, que é um bilro e parece viver de brisas, bebeu dois litros de leite para "rebater" meia duzia de ovos. E sabe o que disse, toda espevitada? "Isto é para começarrrr... O medico mandou-me ir augmentando as dóses aos poucox..." Veja você!

— Parece que chegaram da secca do Ceará! O Laláu chupou de uma assentada quinze laranjas, e das de embigo...

— Esse não me admiro, que é homem e grandalhão. Mas aquelle figo secco da tal prima Filóca? Com partes de enfastiada, foi á cozinha e chamou para o papo todos os torresmos que eu tinha guardado para você. Dizem que é o ar...

— Ar! Ar! Eu respiro o mesmo ar e raro tenho appetite. Esfaimados por natureza. é o que elles são.

— E depois isto de comer á custa alheia deve ser um regalo! concluiu d. Fortunata, esforçada creatura que jámais papara um quitute que não fosse preparado por suas heroicas mãos.

O somno custou a vir, mas veio, e com elle sonhos. Venancio sonhou que uma nuvem de gafanhotos, vinda do sul, se abatera no sitio, deixando-o nú em pello, sem folha nas arvores, nem sóca de capim nos pastos.

Despertou sobresaltado. A manhã ia alta, com resteas de sol a coarem-se pelos vidros. Saltou da cama e foi á janella. Um vulto caminhava rumo ao pomar, de pyjama, faca de mesa na mão, assobiando despreoccupadamente o "Pé de Anjo".

— Lá vai elle, murmurou Venancio. Lá vai ás bahianas...

— Quem? indagou a esposa, interrompendo o amarrar da saia.

— Ora quem! O gafanhoto-mãi.

E como a esposa fizesse cara de não entendida, contou-lhe o sonho da nuvem.

D. Fortunata concluiu o nó da saia, apprehensiva:

— Queira Deus não dê certo!

Deu certo. Nunca um sonho prophetico ante-pintou o futuro com maior precisão. Os hospedes devoraram o sitio do Venancio em poucos mezes. Os porcos foram-se todos, transfeitos em torresmos, lombo assado e linguiça.

Os lindos leitõezinhos que brincavam no terreiro foram sacrificados ao espeto um por um. O mesmo destino tiveram as aves, com excepção do casal de Orpingtons amarellas, que muito tentou a gula dos hospedes mas que Venancio, por precaução, mandou esconder em casa de um vizinho. Os ovos, porém, se perderam.

— Sabe, disse d. Fortunata ao marido uma noite (era sempre á noite, na cama, que murmuravam e rogavam pragas nos gafanhotos), sabe que a ninhada de ovos de raça já se foi?

— Não me diga! exclamou Venancio.

— Pois escondi-os num canto, no quarto dos badulaques, e vae aquelle páo de virar tripa da Bubú metteu o nariz lá e descobriu-os, e veio berrando, muito lampeira: "Prima! Suas gallinhas estão botando no quarto dos cacaréos. Olhe que lindos ovos encontrei lá! Duas duzias: a continha certa para hoje."

Expliquei-lhe o caso, contei que eram ovos de raça, caros, que você reservava para chocar. Sabe o que a bisca me respondeu? "Ora, prima, não seja somitica. Nós vamos logo e suas gallinhas ficam ahi botando pelo resto da vida".

Venancio suspirou.


Um mez. Dous mezes. Tres mezes.


No dia em que os hospedes se foram, Venancio e mais a esposa deram uma volta pelo sitio, em desconsolada vistoria.

Tudo deserto. Nem um frango no gallinheiro, nem uma goiaba no pomar, nem um porquinho nos pastos...

— Comeram até o cachaço! murmurou Venancio, sacudindo a cabeça.

Na horta, as leiras de couve só apresentavam talos esguios — folha nenhuma. Os pés de abobora davam dó: nem uma abobrinha, nem um broto...

— Como elles gostavam de cambuquira! recordou d. Fortunata.

Finda a inspecção, um olhou para o outro, com desanimadissimos focinhos.

— E agora? indagou a mulher.

— Agora? repetiu Venancio — agora é fazer a trouxa e tocar para Itaóca antes que morramos de fome.

— E volta você para o empreguinho?

— Que remedio! Os "primos" devoraram a carne; tenho que voltar ao osso.


E foi graças ao appetite desses bemaventurados primos que Itaóca viu reintegrar-se em seu seio um precioso elemento social. As palestras da botica andavam mortas, e sempre que se ventilava um ponto agricola, todos lamentavam a ausencia do argumentador seguro, que detinha com tanto brilho a palma da victoria.

Mas a volta de Venancio foi uma decepção. O antigo enthusiasmo murchara-lhe e nunca mais em vida sua piou sobre o velho thema favorito.

E se acaso falavam perto delle em pragas da lavoura, geada, ferrugem, curuquerê ou o que seja, sorria melancolicamente, murmurando de si para si:

— Conheço uma muito peior...

E conhecia.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.