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O macaco que se fez homem/3

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TRAGEDIA DE UM
CAPÃO DE PINTOS



NASCERAM na mesma semana um pinto, um perúzinho e um marreco.

Até aqui, nada. Todos os dias vem ao mundo marrecos, perús e pintos sem que isso ponha comichões na penna dos novellistas. O estranho do caso foi que nasceram irmãos, contra todos os preceitos das sciencias biologicas.

— ??

Explica-se.

Tio Pio, preto cambaio a quem incumbia a faina do terreiro, teve a idéa de reunir sob certa gallinha, que chocava apenas cinco ovos, mais tres de perúa e dois de marreca, salvos de ninhadas infelizes, conseguindo assim dar vida áquella estranha irmandade de nova especie.


Dos nove ovos só vingaram tres. e lá estavam os productos, já crescidótes, sob a guarda solicita do Péva-de-raça, capão de pintos posto a pageal-os para que dona gallinha não perdesse tempo com tão pifia ninhada.

Triste sorte na fazenda a dos gallos cotós de pernas! Tio Pio os punha de parte para capões de pintos, transformando os bellicosos "clarins da aurora" em feios eunuchos, bichos metade gallo, metade gallinha, senhores de crista, espora e cauda flammante não mais destinadas a seduzir frangas, senão a divertir pintinhos.

Péva-de-raça tinha este nome pelas razões que o nome indica. Mas vá lição para os leitores da cidade, gente que de gallos e gallinhas só conhece os da torre das igrejas e as que apparecem ao jantar, em molho pardo. Péva: perna curta; de raça: raça extrangeira.

— A mó' que Plimú, explicava Pio aos interpellantes.

Excellente sujeito o Péva! Tomara os orphãos no primeiro dia, sem nenhuma reluctancia, e dera com elles criados á custa de infinitos de pachorra.

Muitos dissabores soffreu. O marrequinho, sobretudo, causou-lhe sérios aborrecimentos.

Havia na fazenda um tanque bordado de tabôas esveltas, rico de trahiras e sapinhos de cauda. Esse tanque era a mania do lindo pon-pon d'arminho amarello. Quantas vezes não ficou o Péva á beira d'agua, seguindo de olhos afflictos as evoluções do mimoso palmipede, que nella penetrava, e nadava, e mergulhava com louca affoiteza inconcebivel para o velho capão!

Já os outros não o affligiam tanto. Divertiam-no até. O capão gostava de ver o peruzinho em caça ás moscas. Magricela e tonto, como sabia marcar a presa, achegar-se com extrema lentidão e, de repente — pâ! — uma bicada certeira!

O pinto, esse era mestre em travessuras. Subia-lhe ás costas, tenteando-se nas asinhas, e trepava-lhe pelo pescoço até alcançar a crista, cujas carunculas bicava.

Era muito cauteloso, o Péva. Se vinha chuva, punha-se logo de agacho, para abrigo dos gurys — de dois apenas, que o terceiro, o marreco, nenhum caso fazia d'agua, antes pellava-se por chuva, só recolhendo ao sentir-se entanguido.

E era mujto methodico, o Péva. Mal a tarde fechava a carranca annunciativa da noite, lá ia elle de rumo ao terreiro, aninhar-se rente ao muro, sempre no mesmo lugar. Escarrapachava-se alli, ao geito das gallinhas, e esperava que os orphãos, depois d'umas derradeiras voltas por perto, viessem chegando e se mettessem dentro da plumosa casa viva.

Entrava primeiro o perú, um friorento de marca; depois o pinto; o marreco por ultimo.

E o Péva cochilava, transfeito em exquisito animal de quatro cabeças: a sua, grande, cristuda, e mais tres cabecinhas curiosas, que abriam setteiras na plumagem e espiavam o mysterio do mundo a envolver-se nas sombras da noite...

Aquella singularidade deu nome e renome aos tres bichinhos. Quantos pintos, perús e marrecos houvesse na fazenda eram todos conhecidos por pinto, perú e marreco, genericamente. Só elles se personalizavam. Eram o Pinto Sura, o Peruzinho do Capão e o Réco-Réco. Seres privilegiados, libertos da disciplina commum do gallinheiro, tornaram-se logo as creaturinhas mais populares daquelle pequeno mundo. Viviam soltos, sem lei nem grei, como bohemios errantes, encontradiços por toda a parte — nos chiqueiros, nos pastos, ao pé das tulhas, á porta das cozinhas, onde quer que houvesse fartura de milho, siriris e quiréras.

Havia na fazenda outros animaes populares. Havia a Russa, mulinha de carroça bastante velha e proxima da aposentadoria. Só trabalhava em serviços leves de terreiro, puxando a "carrocinha de dentro". Pertencera á tropa, transportara muito café para a cidade, sempre com carga de oito arrobas, façanha de que, com saudades, se recordava agora.

Entre as vaccas era a Princeza a mais popular. Vacca de estimação. Enriquecera a fazenda de numerosos filhos, entre os quaes o possante Beethoven, agora pastor do rebanho. Dera ainda a Rosita, leiteira de truz, fiel á estirpe e certa nas doze garrafas. E quantas outras crías que já andavam por sua vez de bezerrinho novo, ou na canga a puxar carros! Em virtude disso gosava a Princeza de certas regalias. Vivia ás soltas, livre de cercas, sempre no pasto dos porcos, occupando o tempo em mascar babosamente boas palhas de milho.

Quem mais? Sim, o Vinagre—fiel guardião da "casa grande", veadeiro de fama outr'ora, hoje um dorminhoco que o que fazia era cochilar ao sol, de focinho entre as patas e olhos lacrimejantes.

Todo elle era passado. Durante as somnecas vinham agital-o pesadelos, nos quaes reviviam as scenas violentas das caçadas de antanho. E o glorioso veterano acuava a dormir.

Os homens nunca prestam grande attenção aos animaes que os rodeiam. Brutinhos, dizem, e desprezam-nos. Mas a verdade é que a esses nossos manos o que os inferioriza é não possuirem o dom da fala, pelo menos de fala intelligivel para nós, visto como pensam e superiormente raciocinam, possuindo sobre os homens e as cousas idéas terrivelmente logicas.

Alli na fazenda eram todos concordes num ponto: a supremacia de Tio Pio sobre os demais seres humanos. Era Ti'Pio a attenção que nada esquece, a justiça que dá e pune, o amor que comprehende, o deus que cura. a ordem que tudo simplifica.

Para o trio do Péva era Ti'Pio o Recolhe-ovos, o Deita-ninhadas, o Mata-piolho. o Varre-gallinheiro, o Péga-frango, o Arruma-ninho, o Traz-quiréra, o Rebenta-cupim, o Espanta-cachorro, modalidades varias d'um alto espirito de providencia.

Para a Princeza era o Traz-milho, o Tira-leite, o Prende-bezerro, o Esvurma-berne, o Fécha-porteira, o Bóta-no-pasto.

Para a mulinha era o Põe-carroça, o Arruma-arreios, o Escóva-pêllo, o Dá-ração.

Para o Vinagre era o Lava-cachorro, o Traz-angú, o Atiça, o Préga-pontapés.

Só elle, entre tantos homens da fazenda, revelava-se, apezar de preto, claro de intenções e comprehensivel; só elle não podia desapparecer sem grave damno geral. Lembravam-se de como todos padeceram uma occasião em que Ti'Pio cahiu de cama.

Houve desordem grossa. Pintos morreram de fome, Vinagre emmagreceu, a Princeza viu-se privada de palha, o Péva dormiu fóra de terreiro pela primeira vez. Ao cabo de dez dias, quando o preto resurgiu, recem-sarado, foi como se repontasse o sol em seguida a longo estirão de chuvas. Que alegria!

As demais creaturas humanas afiguravam-se-lhes mysteriosas e sobretudo illogicas. Impossivel a Vinagre entender o patrão. Já de cara alegre, já de cara amarrada, recebia-o alternativamente com carinho ou ponta-pés. E o velho cachorro philosophava: como é que um mesmo acto meu, sempre gesto de afago e submissão, ora recebe premio, ora castigo? Não entendia...

E muito menos o entendiam o Péva, a Princeza e a Russa.

Mandava em tudo, aquelle homem. Inspirava terror. Sua presença no curral ou no pasto era signal certo de calamidade — morte, prisão, tortura. "Mate aquelle boi", "pégue aquelle frango", "arreie aquelle cavallo", "cápe aquelle porco". Mate, pégue, arreie, cápe, venda, esfole — não se lhe ouviam outras palavras. E toda gente corria pressurosa a executar-lhe as ordens, por mais tyrannicas que fossem.

Egualmente incomprehensiveis, os filhotes do homem. Que creaturinhas variaveis, irrequietas, crueis! Sempre de vara na mão, perseguiam abelhas e borboletas, esmagavam os sapos, atropelavam as gallinhas. Ao vel-as, Vinagre disfarçadamente sahia para longe e o Péva bandeava-se com seus orphãos para o outro lado dalgum vêdo. Só a Princeza nenhum caso delles fazia, certa do terror que lhes inspiravam os seus longos chifres.

Já a Dona, mulher do Senhor, não infundia medo senão ás aves. Terrivel inimiga do gallinheiro! Depredava os ovos, e condemnava á morte justamente os mais bellos frangos e as mais respeitaveis matronas de penna — "gallinhas velhas", como dizia a ingrata.

Para os outros animaes a Dona significava apenas ignorancia. Era a "Perguntativa" e a "Muda-côr". Hoje de côr de rosa, amanhã de azul, não usava côr fixa. E vivia interrogando:

— Pio, que burro é esse?

— Não é burro, Sinhá, é a mulinha russa.

Perguntava sempre. Que caroços eram aquelles na vacca? Que boi estava rinchando pasto? Que trepadeira andavam a tirar das arvores?

Viera duma cidade grande, havia pouco tempo, cheia de gritinhos e medo aos bichos. Ignorava tudo, fóra pilhar ninhos. Papa-ovo, appelidou-a o Péva, como já havia appellidado tio Pio de E´-hora, e aos demais camaradas da fazenda de Sim-Senhores, porque Sim-Senhor era o estribilho com que habitualmente retrucavam a todas as ordens do Dono.


Por uma tarde igual ás outras recolhia-se.Péva ao pouso do costume, seguido dos tres orphãos, já marmanjões.

No céo, a caraça vermelha do sol escondia-se detrás do morro, e na terra os primeiros grillos ensaiavam as asas cricrilantes.

Rente á porteira a mulinha, solta no pasto minutos antes, espojava-se regalada.

— Boa tarde ! saudou o Péva. Cansadinha, hein?

A mula interrompeu a cabriola e abanou as orelhas, como quem diz: E´ verdade. Depois, falou:

— Acho prudente que você tome cuidado com seus filhos. A Perguntativa anda interessada por elles e é isso mau signal. Vi-a em conversa com E'-hora e pilhei do que diziam este pedacinho: "O marreco do capão está no ponto". Não sei o que quer dizer. mas boa coisa não será.

O Peva enrugou a testa, apprehensivo. Jamais a Perguntativa se referira a alguma ave sem que logo sobreviesse desgraça — "Está no ponto"—que quereria dizer aquillo?

A mulinha ignorava-o. Sabia de algumas palavras triviaes, conhecia o pégue, o prenda, o mate — mas o "está no ponto" era-lhe coisa nova.

— Quem ha-de saber disto é o Vinegre. Mora na casa grande e entende a lingua dos homens melhor do que nenhum outro animal. Consulte-o e não deixe tambem de consultar a Princeza, cuja experiencia da vida é grande.

Péva se foi á Princeza, que encontrou mascando as palhas do costume.

— "Está no ponto" — poderá dizer-me, senhora Princeza, que coisa significa na lingua dos homens?

A vacca interrompeu a mascação e disse:

— Já ouvi essa palavra applicada ao meu filho segundo, o Barroso. Tinha elle dois annos e meio. O Dono passava em companhia de um Sim-senhor. Avistou-o de longe, no pasto e ordenou: "Aquelle boizinho está no ponto. Carro com elle!"

No dia seguinte laçaram-no, metteram-no na canga e o pobre do meu garrote muito que padeceu a puxar um carro pesadissimo. Deste incidente concluo que "estar no ponto" quer dizer carro.

Péva, um tanto curto de idéas, tremeu ante aquella revelação. Horror, metterem no carro ao seu querido marrequinho! Em seguida duvidou. Andar no carro era coisa que só vira fazer a bois. Não podia ser. A vacca errara evidentemente.

— Resta-me consultar Vinagre, reflectiu, e todo pé-pé, com ruguinhas de apprehensão na crista, foi ter com o velho cachorro.

Vinagre não resolveu o enigma, embora respondesse como o mais sabio dos oraculos:

— Póde ser mil coisas. A linguagem dos homens varia, ora quer dizer isto. ora aquillo. Mas que não é coisa boa, affirmo-te.

Nesse dia o capão, seguido dos orphãos. recolheu-se ao pouso habitual sem a despreoccupação de outr'ora. Custou a conciliar o somno. Não the sahiam da cabeça as palavras mysteriosas e de sentido inapprehensivel.

Por fim dormiu e sonhou. Sonhou que ao lado do Barroso jungiam ao carro o pobre marrequinho. O sonho virou pesadelo e Péva soffreu horrores ante o quadro do filho adoptivo a debater-se sob a monstruosa canga...

No dia seguinte, no momento da ração de milho, Ti'Pio de um bote agarrou o marreco pelas pernas e se foi com elle a debater-se rumo da Cozinha.

Afflictissimo, tomado de immenso desespero, Péva inda alimentou esperanças de vel-o voltar. Mas a noite veio e com ella a primeira desillusão da sua vida. Nada de marreco. Pela manhã, nada. Meio dia, nada.

A' hora do jantar encontrou Vinagre roendo uns ossos no terreiro.

— Que é isso, amigo?

— Ossos de marreco.

— De marreco! exclamou Péva, surpreso.

— Sim. Que admiras? Que os marrecos tenham ossos? Têm-nos, e excellentes...

Péva estarreceu. Comprehendia, afinal. o tremendo sentido das palavras mysteriosas. "Está no ponto" significava condemnação á morte. Horror!

Guardou comsigo, entretanto, aquella magua. Nada disse ao peruzinho, nem ao frango, prevendo para ambos uma sorte identica.

— Bem triste a vida sob o dominio cruel do homem! Nada de bom vem delles... philosophou.

Nessa mesma tarde Péva cruzou-se com a Princeza e disse-lhe:

— Erraste, Princeza. "Está no ponto" quer dizer morte.

A vacca parou a mastigação da palha e sorriu da ingenuidade do Péva. Ella tinha tanta certeza que queria dizer carro...

A vida na fazenda rolava na mesmice de sempre. Tudo continuava. A Russa a puxar a carrocinha, a Princeza a mascar palhas, o Vinagre a acuar em sonhos.

Só na tribu do Péva a alegria não era a mesma. Saudades do marreco. Varias vezes o frango indagou do destino de Réco-Réco, forçando o capão a mentir. “Anda de viagem, uma longa viagem... Um dia volta”.

Mas com que tristeza punha os olhos no tanque ou nas poças de enxurro que se formavam em dias de aguaceiro, pensando lá comsigo: — Nunca mais!...

O tempo corre, as estações se succedem e a primavera se annunciou nos mil botões que se arredondavam nas laranjeiras. Os orphãos do capão já eram mais companheiros de ciscagem do que filhotes pipilantes. Já dispensavam sua assistencia solicita. O peruzinho, grandalhudo e bem empennado, fez-se independente. O frango punha crista, com as esporas abotoadinhas. Mudara de genio, e se via alguma franga, ia arrastar-lhe a asa até que algum gallo de verdade o escorraçasse.

Certa manhã a Perguntativa veio assistir á amilhagem das aves. Fez varias perguntas e deu varias ordens ao Pio, concluindo, de dedo apontado para o frango:

— Está a pedir panella, aquelle!

— Qual, Sinhá? O Sura?

— Sura quer dizer sem rabo? E'. E' elle mesmo.

Péva, que ouvira a conversa, engasgou-se com o grão de milho que tinha no bico, perdeu a fome e incontinenti retirou-se do bando. Embora não comprehendesse o sentido daquellas palavras, previu que "boa coisa não seria", como philosophava o Vinagre.

E acertou. O frango, no dia immediato, desappareceu do terreiro mysteriosamente. Péva procurou-o por todos os cantos e, desconfiado, foi rondar os fundos da cozinha, na esperança (de ouvil-o piar lá dentro. Não ouviu pio nenhum, mas encontrou pennas suspeitas no monte de lixo...

Adquirida a certeza do novo desastre. fez-se inda mais tristonha a vida do pobre capão. A Cozinha! Era nas goelas daquelle horrendo Moloch que successivamente iam desapparecendo os seus queridos orphãos. Engulira o marreco, engulira o frango... Enguliria tambem o peruzinho, porque não?

Velho e desalentado, com o coração sempre saudoso dos travessos garotinhos que creara, tornou-se macambuzio. Inda passeava com o perú, apezar da cada vez maior independencia deste. Chegou a notar que era elle, Péva, quem o acompanhava agora. Notou-o, mas procurou illudir-se e simulava amadrinhal-o, como outr'ora...

Pela força do habito inda dormiam juntos, no antigo pouso ao pé do muro. Mas logo o perú, que é amigo de poleiro, elegeu um, commodo, em certa escada velha, e o capão teve de acompanhal-o na mudança. E alli passaram a dormir juntinhos e encorujados, no mesmo degrau da escada.

Assim viveram até á chegada do Anno Bom.

Na vespera a Perguntativa appareceu no momento da amilhagem e disse ao Pio:

— Olhe, amanhã temos o perú. Não esqueça de comprar pinga.

Desta feita Péva não vacilou quanto ao sentido da expressão. “Está no ponto”, “pedir panella”, “temos o perú” deviam ser phrases equivalentes. Estava pois condemnado a entrar para a Cozinha o seu derradeiro filho...

Cheio de resignação — e com a alma em transes, Péva passou o dia num canto, jururú, remoendo as doces recordações de outr´ora. Ao cahir da noite recolheu-se. Empoleirou-se na velha escada e achou muito natural que o perú não comparecesse.

Dormiu tarde, e teve o somno agitado de continuos estremeções de angustia.

No dia seguinte notou movimento fóra do commum na casa grande.

Vinha gente de longe, mulheres de trole, homens a cavallo, Vinagre, esquecido da somneca do costume, entrava e sahia, abanando a cautla com vivacidade de cachorro novo.

Num destes vae-e-vens Péva o deteve.

— Que ha na casa grande? Tanta gente...

— Ha perú, respondeu o cão. Quando ha perú os homens se assanham, vestem roupas novas, brincam e dançam. Tenho notado que a presença do perú á mesa provoca nos homens uma especie de delirio, como entre as gallinhas a quéda das içás.

Esta observação do cachorro, embora muito lisonjeira para a raça dos perús, não consolou nada ao nosso Péva, que se sentiu ganho, menos de tristeza que de funda indifferença pela vida. O successivo sacrificio dos filhotes callejara-lhe por partes o coração. No dia do marreco a dôr que sentiu foi verdadeira dôr de pae ; em seguida, pela morte do frango, a sua dôr foi dôr de pae adoptivo; agora, ao perder o perú, a dôr era calma e resignada. Dôr de philosopho. Comprehendia, afinal, que a vida foi, e é assim, e não melhora...


Os capões inspiram desprezo aos gallos e talvez piedade ironica ás senhoras gallinaceas. Deste modo, Péva, em sua triste solidão. deambulava pelo terreiro como creatura sem lugar na vida. As lindas frangas, as viçosas poedeiras e até as velhas gallinhas aposentadas, tinham pela sua honesta companhia um profundo desdem. E como nem os frangotes o procuravam, o isolamento do triste eunucho era completo.

Esse errar á tôa fel-o notado do Ti'Pio, que se lembrou de pol-o a criar nova ninhada.

— Anda vadiando aqui, este diabo... Espera que te arrumo.

Agarrou-o, levou-o ao gallinheiro, esfregou-lhe ortiga no abdomem e deitou-o sobre uma ninhada de dez pintos nascidos na vespera.

Não offereceu Péva a menor resistencia. Deixou fazer. Agachou-se como dantes e cobriu lindamente os gentis recem-nascidos.

Altas horas, porém, ergueu-se e tomou rumo do poleiro, abandonando aos frios da noite a roda de vidinhas pipilantes.

Não mais queria exercer a profissão de mãe. Para que?

— Se teem de morrer na Cozinha, morram agora, emquanto lhes não tenho amor.

Assim foi e os pintos amanheceram mortos, entanguidos de frio.


Quando Ti'Pio tomou conhecimento do desastre, ficou furioso da vida.

— Cachorro! Você fez, mas paga!

Houve um corre-corre. A gallinhada assustadiça debandou e os marrecos se metteram no tanque.

Cotó de pernas, frouxo de asas. Péva pouco resistiu á perseguição do negro. Rendeu-se e, seguro pelas patas, de cabeça para baixo, com as idéas perturbadas pela congestão do cerebro, por sua vez transpoz a soleira da Cozinha, insaciavel sorvedouro de vidas, odioso tumulo de Réco-Réco, do Sura, do Perú e, breve, do veneravel tutor da estranha irmandade...


Quem na manhã do dia seguinte passasse pelo fundo da horta, veria no monte de lixo um punhado de pennas escaldadas, murchas, sem côr, sujas de cinza. E veria duas pernas rugosas, de longas esporas recurvas. E veria ainda uma dolorosa cabeça de crista violacea, com os olhos semi-abertos, em cujas pupillas de vidro varias formiguinhas se miravam.


Horriveis, aquelles despojos?

Um urubú pousado na taipa não pensava assim...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.