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O macaco que se fez homem/4

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DUAS CAVALGADURAS



UM grande amigo dos livros, o estudante Baptista [1], de Ribeiro Couto.

Na sua dolorosa miseria de rapaz pobre, solto sem padrinhos na voragem carioca, desses bons amigos se soccorria para desafogo da alma crestada ao vento das decepções.

Falhava-lhe o sonhado emprego? Abria "Dom Carmurro" e logo a malicia de Capitú o empolgava, levando-o para casos bem distantes do seu dorido caso pessoal.

Trahia-o algum amigo? O moço embarcava para Florença, no "Lys Rouge", hospedava-se com Miss Bell e, de visita ás igrejas com Duchatre, eil-o embriagado no ardente amor da condessa.

O estomago, porém, é Sancho. Não digere contemplações. Exige pão. E a fome, um dia, apresentou ao estudante o seu inexoravel ultimatum: Mata-me ou mato-te.

Um só recurso lhe restava: reduzir a pão duro seus amados livros.

Fel-o, mas com que magoa! Como vacillou na escolha da primeira victima! E como lhe doeu o sordido negocismo do belchior, miseravel depreciador da "mercadoria" sempre com o fito de obtel-a pelo minimo!

Era este belchior certo judeu mulato, com um "sebo" á rua do Cattete. Mulato de barbicha ironica, propria para coçadelas nos momentos de engatilhar o preço. Tinha um geito irritante de pegar nos livros e de ler o titulo por baixo dos oculos, como se os cheirasse. Typo desagradavel de mumia resurrecta, em prefeita harmonia com a sordidez da casa.

Que vitrina! Já alli se lhe annunciava a alma. Livros encardidos, brochuras de cantos surrados, canetas de vintem, lapis "quebra-a-ponta", tinteiros de refugo—tudo desbotado pelo sol e tamisado pela horrivel poeira negra da rua. Dentro, um cheiro de velhice, mixto de mofo e ranço — bafio proveniente metade da mumia, metade das estantes prenhes de brochuras infectas.

Pois foi nas garras de tal aranha barbada que o pobre contemplativo cahiu, e um a um lhe sorvia ella todos os volumes da amada bibliotheca, sempre a ratinhar, a rosnar, a espichar nickeis para o que valia notas.

Uma vez recebeu o moço más noticias de casa e instante pedido de uma linda irmãzinha que deixara em Catalão. Era forçoso servil-a, inda que mister fosse vender a alma ao diabo.

O geito era um só: negociar em bloco os livros restantes. Que vá, que vá. Uma grande dôr, unica, é de preferir-se a mil dorezinhas parcelladas. Que vá tudo!

Contou-os. Trezentos. Pelo preço medio que o judeo lhe pagava por unidade, obteria com aquelle sacrificio derradeiro os duzentos mil réis necesarios e mais uns bicos. Que vá.

Baptista retezou-se d'alma, amordaçou o coração, metteu na carroça os velhos amigos e, como vai para a guilhotina o condemnado, foi com elles para a rua do Cattete.

O judeu examinou os volumes um por um, cheirou-os, sopesou-os e depois de longas manobras, engasgos, meias palavras e coçadelas de barbicha, abriu offerta.

— Dou-lhe quarenta mil réis, moço, por ser para o senhor. E lamba as unhas, hein?

O estudante, tomado de subita onda de colera homicida, não lambeu as unhas: lambeu-lhe a vida. Estrangulou-o...


Havia eu lido esse formoso conto e ficára com os typos gravados em alto relevo na memoria, tanta nitidez dera á pintura o autor. O judeu mulato, sobretudo, passara a viver dentro de mim, em lugar de honra na "sala de Harpagão".

Somos todos nós uns museus de typos apanhados na rua ou tirados de romances. Museus classificados, com salas disto e d'aquillo.

A minha sala dos usurarios encerrava bom numero de shylockezinhos modernos, fisgados á porta de cartorios ou directamente nos antros onde costumam empoleirar-se, como harpias pacientes, á espera dos naufragos da vida.

Hombro a hombro conviviam elles com os patriarchas do clan— mestre Harpagão, tio Grandet e o João Antunes, de Camillo Castello Branco.

Lida a novella de Couto, entrou para a sala mais um, o judeu mulato do Cattete, typo de tal vida que uma suspeita breve me tomou:

— Esse diabo existe. Não pode ser ficção. Ha nelle traços que se não inventam. E se existe, hei de vel-o, bem vivinho.

E puz-me a procural-o em certo dia de folga.

Fui feliz. Logo adeante do palacio das aguias, certa vitrina attrahiu-me a attenção.

Acerquei-me della, com cara de Colombo.

Aquelles livros desbotados, aquellas canetas... Tudo exacto!

Mas... aguelle coelhinho?...

Sim, havia a mais, na sordida vitrina, um coelhinho de lã, menor que um punho fechado. Encardido, os olhos de louça já bambos, as longas orelhas roidas — visivelmente brinquedo de creança já muito brincado.

Aquelle coelhinho!

Uma creança existe de quem o usurario comprou o coelhinho...

Meu Deus! Poderá haver em corpo humano almas assim?

Shakespeare, Balzac: que fraca imaginação a vossa! Creastes Shylock, Grandet, mas a potencia de vosso genio não previu este caso extremo. O judeu mulato rehabilita os vossos heróes e attinge a suprema expressão do sordido.

Furtou o coelhinho á creança...

Furtou-o com a gazúa dum nickel...

Privou a pobrezinha do seu unico brinquedo, que era o seu unico amigo, talvez...


Abra-se um parenthesis

Aqui intervem a imaginação.

Bastou que meus olhos vissem na sordida vitrina o coelhinho de lã, para que a irrequieta rainha Mab me viesse cabriolar na cachola.

E todo um drama infantil se me antolhou, nitidamente.

Era um menino de poucos annos, filho de paes miseraveis.

O homem bebia e a mãe definhava nas unhas "da pertinaz molestia". Minto: da tisica. "Pertinaz molestia" é doença de ricos...

O classico operario bebedo, em summa, e a classica mãe tuberculosa. E' sempre assim nos romances e é sempre na vida, essa impiedosa plagiaria dos romances do typo classico.

Reina a miseria na cafúa humida em que vivem, elle a delirar o seu eterno delirio alcoolico, ella a tossir os pulmões cavernosos, e a triste creança, sempre de olhos assustados, a crear-se um mundinho de sonhos para refugio da almazinha que teima em ser alma.

Só tem um amigo, essa creança: o coelhinho de lã que a mãe lhe deu em certo dia de doença grave.

Excellente quinino! A febre cedeu incontinenti e dois dias depois o doentinho se punha de pé.

Desd'ahi ficou sendo o coelhinho o amigo único da creança triste, seu confidente de todas as horas, seu irmãozinho mais novo.

Conversavam o dia inteiro, brincavam, contavam-se mutttamente lindas historias e á noite, abraçadinhos, dormiam o somno dos anjos e dos coelhos.

Aquelle coelhinho de lã...

E' preciso ser Dickens para comprehender o papel dos brinquedos unicos na vida das creanças miseraveis.

O commum dos homens não vê nisso coisa nenhuma.

Triste coisa, o commum dos homens...

Um dia, o pae desappareceu.

Inutilmente a tisica o esperou até altas horas, e o esperou no dia seguinte, e o esperou a semana inteira.

Desappareceu, e está dito tudo.

Na vida, os miseraveis desapparecem, tal qual nos romances.

Vida, romance; romance, vida: será tudo um?

A tisica peiorou, e certa manhã não poude erguer-se da cama.

E a fome veio.

E foi mister vender, hoje isto, amanhã aquillo, todos os trapos e cacos da mansarda triste.

A mansarda! Que lindo effeito faz em romance esta palavra lugubre! A man-sar-da!...

Venderam tudo.

Luizinho era o leva-e-traz.

Levava o trapo, o caco, e trazia os nickeis do pão. E assim até que as reservas se exgottaram e a mansarda ficou núa como Job.

— E agora?

A tisica lançou os olhos cançados pelas paredes núas, pelos cantos nús.

Nada! Só viu o coelhinho. Mas era um crime sacrificar o coelhinho de lã...

Resistiu ainda algum tempo.

Por fim, disse:

— Vae, meu filho, vae vender o coelhinho de lã...

A creança reluctou, mas cedeu ao cabo de muitas lagrimas. A fome impunha-lhe aquelle sacrificio supremo: trocar seu thesouro por um pão.

O que chorou, essa manhã!

Como apertava contra o peito o amiguinho, sem animo de lhe dar conta da tragedia imminente!

Resolveu mentir.

— Sabes? disse ao coelho; vou pôr-te numa casa que tem vitrina para rua. Ficas lá sentadinho, a ver quem passa, os bondes, os automoveis tão bonitos! E eu vou todos os dias espiar-te atravez do vidro. Queres?

O coelhinho não comprehendeu aquillo e desconfiou.

— Mas por que? Estou tão bem aqui...

Não era facil illudil-o; a fome, porém, é capciosa e Luizinho continuou a mentir :

— E' cá uma coisa que sei. Uma pandega! Por emquanto é segredo. Ficas lá quietinho, uns tempos, e depois te trago de novo e te conto a historia.

O coelhinho de lã piscou para o menino, cavorteiramente. Gostava desses mysterios...

Luizinho levou-o ao belchior. Mostrou-o ao judeu e offereceu-lh'o.

O aranho tomou o coelhinho entre os dedos rapinantes, examinou-o, apalpou-o, cheirou-o e abrindo a gaveta suja tirou de dentro o menor nickel.

— Toma!

Luizinho resentiu-se. Já conhecia o valor do dinheiro e achou aquillo “pouco demais”.

Vendo, porém, pela cara do judeu, que era inutil insistir, pegou do nickel, beijou o coelhinho e disparou, a correr.


No dia seguinte reappareceu. Parou deante da vitrina e longo tempo ficou a namorar o amigo, trocando com elle signaes de intelligencia.

O coelhinho piscava-lhe com uma vontade doida de rir e elle piscava para o coelhinho com uma vontade doida de chorar.

E assim todos os dias, a semana inteira.

— “A semana inteira, senhor novelista? Não estou comprehendendo nada. Vosmecê disse que o ultimo recurso dos famintos fôra o coelhinho de lá, que trocaram por um pão. Ora, comido o pão, e nada mais havendo para vender, manda a logica que mãe e filho tenham morrido de fome"

— Obrigado, senhor logico! Vejo que leu Stuart-Mill e Bain, mas que nunca leu Dickens, nem Escrich, nem Montepin.

Devia ser como dizes, se a vida fosse feita pelos logicos. Mas Jehovah não era logico, era apenas romancista.

Não morreram, nem mãe nem filho

E não morreram porque, justamente naquelle dia, o pae bebado reappareceu...

— "Oh!"

— Sim, meu Bain, reappareceu. E sabe que mais? Reappareceu regenerado...

— “Oh! Oh!”

— ... e com dinheiro no bolso. Quer mais? E rico! Quer mais? E millionario, com a sorte grande de Espanha no papo. Quer mais? Quer mais?

Nos romances ha o epilogo e não sabe que o epilogo é o esparadrapo que une os bordos da ferida? o dedo de Deus que recompensa? o suspiro de allivio que nos reconcilia com a vida?

— “Mas isto, afinal de contas, é vida ou romance?

— Grande tolo... Isto é a vida com a lição da arte. A arte corrige a vida, dizendo-lhe: se não és assim, megéra, devias sel-o; se não procedeste assim, harpia, devias ter procedido; se não fizeste o bebedo reapparecer no momento opportuno, carcassa, devias tel-o feito. A arte ensina á vida o seu dever.

Imagina tu, amigo logico, que quando Deus creou o mundo...

Fecha-se o parenthesis

Mas accordei. A rainha Mab fugiu-me do cerebro, a galope em sua carruagemzinha made by the joiner squirrel, e entrei na belchior.

Lá estava no balcão o judeu mulato, com sua barbicha de bóde, os oculos de latão, o gorro sebento.

Não morrera, o aranho; apesar de estrangulado na novella de Ribeiro Couto, passava muito bem de saude, o infame.

Era elle mesmo!

Naquelle momento cheirava o lombo de um livro que um novo estudante Baptista lhe offerecera.

Emquanto negociavam, puz-me a espreital-o disfarçadamente.

Exactinho! Couto photographara-o com objectiva Zeiss. Até a voz...

— Hum! hum! fungou, depois de lido o titulo. Oscar Wilde... Isto não se vende, já passou da moda. Tenho ahi carradas. “Dorian Gray”... A peior coisa que elle escreveu...

— Mas quanto offerece? indagou o estudante, desapontado e aborrecido de tantas micagens.

— Por ser freguez, dou-lhe sete tostões. E lamba as unhas, que hoje me pegou de veia!

O meu estudante Baptista não tez como o de Ribeiro Couto. Não lhe lambeu a vida. Lambeu-lhe os sete nickeis offerecidos e sahiu a pegar o bonde, displicentemente.

— E o senhor, que deseja? disse-me o pirata, depois de encafuar o livro na estante.

Eu não desejava coisa nenhuma, além de vel-o, apalpal-o, cheiral-o, talvez estrangulal-o pela segunda vez, Não obstante, fiz-me de tolo.

— Ando a procura de um livro. Um livro de Wilde. Tem ahi qualquer coisa deste escriptor?

A physionomia do estrangulado illuminou-se.

— Tenho a melhor coisa que Wilde escreveu, “O Retrato de Dorian Grey”, conhece? disse, puxando fóra da estante o volume adquirido momentos antes. Coisa papa-fina!

Tomei o livro, folheei-o. Traducção franceza vulgar. Valeria, novo, quatro mil réis.

— Quanto pede?

— Seis mil réis, por ser para o amiguinho.

Sorri-me por dentro e por fóra. Larguei o volume e accendi o cigarro.

— Não me interessa. E' caro.

— Caro? Um livro destes, nesta encadernação, deste editor, deste autor? Nem me diga isso! E o senhor deve saber que “Dorian Gray” é a obra prima de Oscar Wilde.

Meus dedos se crisparam. Que prazer estrangular aquella harpia! Contive-me, porém.

— E aquele coelhinho, perguntei-lhe, quanto?

— Que coelhinho? exclamou a aranha, mudando de cara.

— Um que está na vitrina.

— Ah! Sim... Aquelle coelhinho não vendo.

— Porque o expõe, então?

— Expul-o ao sol. Móra aqui na minha mesa, mas como a casa é humida, ponho-o ás vezes lá, para evitar o bolor.

Diabo! O homem principiava a desnortear-me. Tinha em casa um objecto que não vendia. Era lá possivel que um judeu daquelles não vendesse até a alma?

Insisti:

— Dou-lhe cinco mil reis pelo coelhinho!

— Já lhe disse que não é de venda. Cinco mil réis!... Nem cinco contos, sabe?

Revoltei-me. Veio-me á imaginação toda a tragedia do Luizinho e tive impetos de insultal-o.

Contive-me e disse apenas:

— No entanto, furtou-o a uma pobre criança miseravel...

O meu Shylock abriu a mais expressiva cara de espanto que jamais topei na vida. Depois, encarou-me a fito e seus olhos lacrimejaram. Sentou-se, como anniquilado de subita dor e explicou-me, em voz entrecortada:

— Não sou casado, não tenho filhos, não tenho ninguem no mundo. Mas tive uma crença. Enjeitaram-na aqui á minha porta e recoihi-a. Criei-a.

Foi durante sete annos a minha unica alegria. O Antoninho... Um dia veio a grippe e levou-m'o para o céo. Seu ultimo brinquedo foi esse coelhinho de lã. Conservo-o aqui na minha mesa como joia preciosa, pois elle me fala do Antoninho melhor do que um livro aberto. Como quer que lh'o venda? Não ha no mundo dinheiro que para mim valha esse coelhinho...

Foi até á vitrina e recolheu o brinquedo. Pôl-o sobre a mesa, ao lado do tinteiro. E depois de uma pausa exclamou, olhando-me com um sorriso que me pareceu divino:

— Tinha um nome. Antoninho só dizia o Labi...

— ??

— Sim, Rabi... Quer dizer rabicó, sem cauda...


Sahi da casa do velho completamente desorientado. Fui ao telegrapho e expedi ao autor d´"O Crime do Estudante Baptista" o seguinte despacho: "Couto, somos duas cavalgaduras!".

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. O Crime do Estudante Baptista, livro de contos de Ribeiro Couto.