O macaco que se fez homem/5
UM HOMEM HONESTO
― Excellente creatura! D'alli não vem mal ao mundo. E honesto, ah! honesto como não existe outro ― era o que todos diziam de João Pereira.
João Pereira trabalhava em repartição publica. Estivera a principio num tabellionato, e depois no commercio, como caixeiro do emporio "Ao Imperador dos Borzeguins".
O emporio deixou por discordancia com a technica commercial do imperante, que toda se resumia no lemma velhissimo: gato por lebre. E deixou o cartorio por não conseguir augmentar com extras o lucro legal do honradissimo tabellião. Atinha-se ao regimento de custas, o ingenuo, como se aquillo fôra a taboa da lei de Moysés, coisa sagrada.
Na repartição mettera-se amanuense, havia já dez annos, sem conseguir nunca mover um passo á frente. Ninguem se empenhava por elle e elle ― por honestidade, não orgulho ― era incapaz de recorrer aos expedientes com tanta efficiencia empregados pelos collegas na lucta pela promoção.
― Quero subir por merecimento, legalmente, ho-nes-ta-mente! costumava dizer, provocando risinhos piedosos nos labios dos que "sabem o que é a vida."
João Pereira casara cedo, por amor ― não comprehendia outra fórma de casamento ― e já tinha duas filhas mocetonas. Como fosse sobremaneira curto o seu ordenado, a pequena familia remediava-se com a renda complementar dos trabalhos caseiros. Dona Maricota fazia doces, as meninas croché ― e lá empurravam a pulso o carrinho da vida.
Viviam felizes. Felizes, sim! Nenhuma ambição os atormentava e o ser feliz reside menos na riqueza do que nessa conformidade discreta dos humildes.
― Haja saude que vae tudo muito bem. era o moto de João Pereira e dos seus.
Mas veio um telegramma...
Nos lares humildes telegramma é acontecimento de monta, annunciador certo de desgraça. Quando o estafeta bate á porta e entrega o papelucho verde, os corações batem violentos.
― Que será, santo Deus?
Não annunciava desgraça, aquelle. Um tio de João Pereira, residente no interior, convidava-o a servir de padrinho no casamento de uma filha.
A distincção era inesperada e Pereira. agradecido, foi. E foi de segunda classe, naturalmente, porque nunca viajara de primeira, nem podia.
Bem recebido, apesar da sua roupa preta fóra da moda, funccionou gravemente de testemunha, disse aos nubentes as chalaças do costume, comeu os doces da festa, beijou a afilhada e no dia immediato se fez de volta.
Acompanharam-no á estação o tio e os noivos, amaveis e contentes; mas protestaram indignados ao vel-o metter sua maleta num carro de segunda.
― Não admittimos!... Tem que ir de primeira.
― Mas, se já comprei o bilhete de volta...
― E' o de menos, contraveio o tio. Mais vale um gosto do que quatro vintens. Pago a differença. Tinha graça!...
E comprou-lhe o bilhete verde, sacudindo a cabeça:
— Este João...
João Honesto, assim forçado, pela primeira vez na vida embarcou em vagão de luxo, e o conforto do Pullman, mal o trem partiu, levou-o a meditar sobre as desigualdades da vida.
A conclusão foi dolorosa. Verificou que é a pobreza o maior de todos os crimes, ou, pelo menos, o mais severa e implacavelmente punido.
Aqui, por exemplo — reflectia — neste vagão dos ricos: poltronas de plumas, boas molas no truck, asseio meticuloso, janellas amplas, criado ás ordens. Tudo pelo melhor.
Já nos carros dos pobres o reverso, demonstrando o proposito de castigar com requintes de crueldade o crime de pobreza dos que nelles embarcam.
Nada de molas nos trucks, para que o rodar, aspero, solavancado, faça padecer a carne humilde. Nos bancos de taboa dura, tudo recto e anguloso, sem sequer um boleio que favoreça o repouso das nadegas. Bancos feitos de taboinhas estreitas, separadas entre si de modo a martyrizar o corpo. O espaldar — uma taboa a prumo — vae só até meia altura, negando assim a esmolinha d'um apoio á triste cabeça do "sentado". Bancos, em summa, que parecem estudados pacientemente por grandes technicos da judiaria com o fim de obter o minimo de commodidades no maximo de possibilidades torturantes.
As janellas, sem vidraças, só de venezianas, dir-se-iam ageitadas com o duplo fito de impedir o recreio da vista e de canalizar para dentro todo o pó de fóra.
Nada de lavatorios: o pobre deve ser mantido na sujeira.
Agua para beber? Vá ter sêde na casa do senhor seu sogro!
João sorriu. Veio-lhe á idéa lindo "melhoramento" escapo á sagacidade dos technicos: encanar para dentro dos vagões de segunda a fumaça quente da locomotiva.
— Incrivel inda não tenham pensado nisso!...
Lembrou-se, depois, dos theatros, e viu que é lá a mesma coisa. As torrinhas são construidas de geito a manter viva na consciencia do espectador sua odiosa condição de criminoso.
— E's pobre? Toma! Aguenta a dor de espinha do banco sem espaldar e resigna-te a não ver nem ouvir o que vae pelo palco.
João Pereira inda philosophava estas desconsoladoras philosophias, quando o trem chegou.
Desembarcaram todos — á rica, pacote e malas por mãos de solicitos carregadores. Só elle conduzia a sua, pequenina mala barata de papelão a fingir couro.
Sahiu. Na rua, porêm...
— "Diario P´ular, Platéa..."
... lembrou-se dum jornal comprado em caminho e que deixara no carro.
Não vale nada um jornal lido? Vale, sim, e tanto que Pereira voltou depressa a buscal-o. Sempre é um bocado a mais de papel na casa...
Ao penetrar no Pullman vazio tropeçou num pacote cahido ao chão.
— Não sou eu só o esquecido! reflectiu a sorrir, apanhando-o.
Que seria? A curiosidade não é privilegio das mulheres. João apalpou o pacote, cheirou-o e por fim rasgou de leve um canto do envolucro.
— Dinheiro!
Era dinheiro, muito dinheiro, um pacotão de dinheiro!
Pereira sentiu um tremelique d'alma e corou. Se o vissem naquelle momento, sózinho no carro, com o pacote a queimar-lhe as mãos... “Péga o larapio!” Esqueceu do jornal lido e partiu incontinente á procura do chefe da estação.
— Dá licença?
O chefe interrompeu o serviço que lhe prendia a attenção, olhou-o com displicencia e disse:
— Que quer? Desembuche...
— Encontrei num carro do expresso este pacote de dinheiro.
A' magica voz de dinheiro o homem perfilou-se e arregalando os olhos num dos bons assombros da sua vida, exclamou, pathetico: ,
— Dinheiro!?...
— Sim, dinheiro, confirmou João. Num carro do expresso. Eu voltava de Hymenopolis, e ao desembarcar...
— Deixe ver, deixe ver...
João depoz sobre a mesa o pacote. O chefe, com os oculos erguidos para a testa, desfez o amarrilho, desembrulhou o bolo e assombrado viu que era na verdade dinheiro, muito dinheiro, um dinheirão!
Contou-o, com dedos commovidos.
— Tresentos e sessenta contos!
Pasmou. Encarou a fito o homem sobrenatural. Abriu a bocca. Depois, erguendo-se, disse em tom sincero, espichando-lhe a mão:
— Quero ter a honra de apertar a mão do homem mais honesto que jamais topei na vida. O senhor é a propria honestidade sob forma humana. Toque!
João apertou-lh'a htmildemente, e tambem a de outros auxiliares que se haviam approximado, curiosos.
— O seu caso, continuou o chefe, marcará epoca. Ha trinta annos que sirvo nesta companhia e nunca tive noticia de coisa identica. Dinheiro perdido é dinheiro sumido. Só não é assim quando o encontra um... como é seu nome?
— João Pereira.
— Um João Pereira, o Honrado. Toque de novo!
João sahiu nadando em delicias. A virtude tem suas recompensas, deixem falar, e a consciencia d'um acto d'aquelles crêa n'alma ineffavel estado de extase, João sentia-se muito mais feliz do que se tivera no bolso, suas para sempre, aquellas tres centenas de contos.
Em casa narrou o facto à mulher, minuciosamente, sem indicar, todavia, o quantum achado.
— Fez muito bem, approvou a esposa. Pobres, mas honrados. Um nome limpo vale mais do que um sacco de dinheiro. Eu sempre digo isto ás meninas, e puxo o exemplo deste nosso vizinho da esquerda, que está rico mas sujo como um porco.
João abraçou-a commovido, e tudo teria ficado por ahi se o demonio não viesse espicaçar a curiosidade da honrada mulher. D. Maricota, depois do abraço, interpellou-o:
— Mas quanto havia no pacote?
— Tresentos e sessenta contos.
A mulher piscou seis vezes, como se jogada de areia nos olhos.
— Quan... quan... quanto?
— Tre-sen-tos e ses-sen-ta!
Dona Maricota continuou a piscar, por varios segundos, offuscada. Em seguida arregalou os olhos e abriu a bocca. A palavra dinheiro nunca lhe suggeria a idéa de contos. Pobre que era, dinheiro significava-lhe cem, duzentos, no maximo quinhentos mil reis. Ao ouvir a historia do pacote, imaginou logo que se trataria ahi d'uns centos de mil réis apenas. Quando, porêm, soube que a somma attingia a vertigem de tresentos e sessenta contos, soffreu o maior abalo da sua vida. Esteve uns momentos estarrecida, com as idéas fóra do lugar. Depois, voltando a si de salto, avançou para o marido, num accesso de colera hysterica, agarrou-o pelo collarinho e sacudiu-o nervosamente.
— Idiota! Tresentos e sessenta contos não se entregam nem á mão de Deus Padre! Idiota! Idiota! Idióóóóta...
E cahiu numa cadeira, tomada de choro convulso.
João pasmou. Seria possivel que morasse tantos annos com aquella creatura e ainda lhe não conhecesse a alma a fundo? Tentou explicar-1he que seria absurdo variar de proceder porque variava a quantia; que tanto é ladrão quem furta um como quem furta mil: que a moral...
Mas a mulher o interrompeu com outra série de idiotas", esganiçados, hystericos, e retirou-se para o quarto, descabellando-se, louca de desespero.
As filhas estavam na rua; quando voltaram e souberam do caso, puzeram-se incontinente ao lado da mãe, furiosissimas contra a tal honestidade que lhes roubava uma fortuna.
— Você, papae...
João quiz impor sua autoridade paterna. Ralhou e fel-as ver quão indecoroso era pensar de semelhante maneira.
Foi peior. As meninas riram-se. escarninhas, e deram de suspirar com o pensamento posto na vida de regalos que teriam se o pae possuisse melhor cabeça.
— Automovel, um bungalow em Hygienopolis, meias de seda...
— ... com baguettes...
— ... chapeus de Mme Lucille, vestidos de tafetá...
— Tafetá? Seda laméc!...
— Meninas! esbravejou Pereira. Eu não admitto!...
Ellas sorriram com ironia e retiraram-se da sala, murmurando com desprezo.
— Coitado! Até dá dó...
Aquelle nunca imaginado desrespeito magoou-o inda mais do que a repulsa da mulher. Pois quê?! Ter aquella recompensa uma vida inteira de sacrificios norteada pelo culto severo da honra? Insultos da esposa, censura e sarcasmo das filhas? Teria, acaso, errado?
Verificou que sim. Errara num ponto. Devera ter entregue o dinheiro em segredo, de modo que ninguem viesse a ter noticia do caso...
Os jornaes do dia seguinte trouxeram notas sobre o grande acontecimento. Louvaram com calor aquelle "gesto raro, nobilissimo, denunciador das finas qualidades moraes que alicerçam o caracter do nosso povo."
A mulher leu a noticia em voz alta, por occasião do almoço e, como não houvesse sobremesa, disse á filha:
— Leva, Candoca, leva este elogio ao armazem e vê se nos compras com elle meio kilo de marmelada...
João encarou-a com infinita tristeza. Não disse palavra. Largou o prato, ergueu-se, tomou o chapeu e sahiu.
Na repartição consolou-se. Receberam-no com parabens e louvores.
— O teu acto é daquelles que nobilitam a especie humana, disse, dando-lhe a mão, um companheiro. Toque!
Pereira apertou-lh'a, mas já sem commoção nenhuma, preferindo no intimo que não lhe falassem naquillo.
Estavam todos curiosos de saber como fôra a coisa e rodearam-no.
— Conta por miudo a historia, João.
— Muito simples, respondeu elle com seccura. Encontrei um pacote de dinheiro que não era meu e entreguei-o, ahi está.
— Ao dono?
— Não. A um chefe, lá. ..
— Muito bem, muito bem. Mas, escuta cá: não devias ter entregue o dinheiro antes de saber a quem pertencia.
— Perfeitamente, acudiu um outro. Antes de saber a quem pertencia e antes que o dono o reclamasse...
— ... e provasse — pro-vas-se que era delle! concluiu um terceiro.
João irritou-se.
— Mas que é que teem vocês com isso? Fiz o que a minha consciencia ordenou, e prompto! Não comprehendo essa meia-honestidade que vocês preconisam, ora bolas!
— Não se abespinhe, amigo! Estamos dando nossa opinião sobre um facto publico que os jornaes noticiaram. Você hoje é um caso, e os casos debatem-se.
O chefe da secção entrou nesse momento. A palestra cessou. Cada qual foi para sua mesa e João absorveu-se no trabalho, de cara amarrada coração pungido.
A' noite, na cama, já mais conformada, dona Maricota voltou ao assumpto.
— Você foi precipitado, João. Não devia ter tanta pressa em entregar o pacote. Porque não o trouxe primeiro aqui? Eu queria ao menos ver, pegar...
— Que idéa! "Ver, pegar"...
— Já contenta uma pé-rapada como eu, que nunca enxergou pellega de quinhentos. Tresentos e sessenta contos!...
— Não suspire assim, Maricota! Basta a scena de hontem...
— Impossivel. E mais forte do que eu...
— Mas, venha cá, Maricota, fale sinceramente, fale de coração: acha mesmo que fiz mal procedendo honestamente?
— Acho que você devia ter trazido o dinheiro e devia consultar-me. Guardavamos o pacote e esperavamos que o dono o reclamasse — e que provasse — pro-vas-se que era delle...
— Dava na mesma. Esse-dinheiro nunca seria meu.
— Ficava sendo, é bôa! Mas, olha, João, você nunca pensou bem. Você não tem boa cabeça. E' por isso que vivemos toda a vida esta vidinha miseravel, comendo o pão que o diabo amassou...
— “Vidinha miseravel?”... Sempre fomos felizes, nunca percebemos que eramos pobres...
— Sim, mas percebo-o agora, porque só agora nos surgiu a occasião de enriquecer. Foi uma sorte grande que Deus nos mandou.
— “Deus”...
— Deus, sim, e você o offendeu afastando-a com o pé. Poderiamos estar hoje ricos, fazendo caridade, beneficiando os doentes... Quanta cousa! Mas a tal honestidade...
— “A tal honestidade !”...
— Sim, sim! Tudo tem conta na vida, homem! Ladrão é quem furta um; quem pega mil é barão, você bem sabe. Veja os seus companheiros: o Nunes, que começou com você no cartorio, já ronca automovel e tem casa.
— Mas é um gatuno!
— Gatuno, nada! O Claraboia, esse já tem fabrica de chapeus. O sêo Miguel — até quem, meu Deus! — comprou outro dia um terrenão em Villa Mariana.
— Mas é um passador de nota falsa, mulher!
— Passador de nota falsa, nada! Tem boa cabeça, é o que é. Não vae na onda. Não é um trouxa como você!...
E não teve mais arranjo a vida do homem honrado. Adeus, paz! Adeus, concordia! Adeus, humildade! A casa tornou-se-lhe um perfeito inferno. Só ouvia suspiros, queixas, palavras duras. Perdeu a esposa. Não conseguia reconhecer a meiga companheira de outr'ora na creatura amarga, irreductivel de idéas que a visão dos tresentos contos deflagrara.
E aquelle coro que com ella faziam as meninas, sempre ironicas, sarcasticas...
— O vestido da Climène custou quinhentos mil réis. Quando teremos um assim!
— Pois, olhe, ás vezes a gente acha na rua vestidos assim, não um, mas centenas...
— Que adeanta? Acha, mas desacha...
E suspiros.
Tambem na repartição foi-se-lhe o socego. Todos os dias torturavam-no com allusões, indirectas ironicas.
Certa vez um dos collegas disse logo ao entrar:
— Sabem? Encontrei na rua um lindo broche de brilhantes.
— E levaste-o logo ao chefe, digo, ao Gabinete dos Objectos Achados...
— Não sou nenhum trouxa! Levei-o, sim, ao prégo. Deu-me tresentos e sessenta mil réis, e desde já vos convido a todos para uma vasta farra no domingo proximo.
E voltando-se para João, com piscadelas aos companheiros:
— Vae tambem, sêo Pereira?
O martyr não respondeu, fingindo-se absorto no trabalho.
— Não dá a honra !... E' um homem honééééésto... Raça privilegiada, superior, que não se mistura, que não liga... Pois vamos nós, beber á bessa, beber o broche inteirinho! Nem todos nascem com vocação para santo do calendario...
E o peior foi que desde o malfadado encontro João Pereira entrou a decahir socialmente. Parentes e conhecidos deram de fazer pouco caso no "trouxa". Se alguem lhe lembrava o nome para algum negocio, era fatal o sorrisozinho de piedade.
— Não serve, o João não serve. E' um coitado...
Convenceram-se todos de que João Pereira não era "um homem do seu tempo". O segredo de todas as victorias está em ser um homem do seu tempo...
Seis mezes depois o descalabro da casa era completo. Perdida a alegria de outr'ora. dona Maricota azedara de genio. Vivia num desanimo, lambona, descuidada dos affazeres domesticos, sempre aos suspiros.
— Para que luctar? Nunca sahiremos disto... As occasiões não apparecem duas vezes e quem deixa de agarral-as pelos cabellos está perdido.
Aquelle desleixo aggravou a situação financeira da casa. Todos os encargos recahiam agora sobre os hombros do chefe, cujo ordenado não augmentava.
João enojou-se da vida e perdeu o animo de vivel-a até ao fim. Desejou a morte e acabou pensando no suicidio. Só a morte poria termo áquelle martyrio de todos os momentos, excessivo para uma alma bem formada como a sua.
Um dia o proprietario do predio suspendeu o aluguel. Dona Maricota deu a noticia ao marido, cheia de indifferença.
— Esteve cá o homem da casa e disse que do proximo mez em deante são mais cincoenta...
— ??
— Mais cincoenta mil réis, alli, na ficha! Ou, então, olho da rua!
— Mas é uma exploração miseravel! exclamou Pereira. A casa é um pardieiro e nós não podemos, positivamente não podemos...
— Pois é. E quando uns diabos destes perdem pacotes — porque você bem sabe que só elles possuem pacotes para perder — inda apparece quem lh'os restitua... Você está vendo agora como formam elles os taes pacotes. Arrancando o pão da bocca duns miseraveis como nós, dos honestos...
— Pelo amor de Deus, Maricota, não me fale mais assim que sou capaz duma loucura!...
— Está arrependido? Está convencido de que foi um tolo? Pois quando encontrar outro pacote faça o que todos fariam: metta-o no bolso. Quem rouba a ladrão tem cem annos de perdão.
Estavam á mesa, sozinhos, tomando o magro café da noite.
— E você ainda não sabe de uma cousa. continuou ella, depois d'uma pausa, como indecisa se contaria ou não.
— Que é?
— Disse-me hoje a Ignezinha que você anda por ahi de appellido ás costas...
— Quê?
— João Trouxa! Ninguem diz mais João Pereira...
O martyr ergueu-se de golpe, lançado por violento impulso interno.
— Basta! exclamou num tom de desvario que assustou a mulher e, largando a chicara de chofre, retirou-se para o quarto, precipitadamente.
Dona Maricota, resabiada, susteve a sua caneca a meio caminho da bocca. E assim ficou, suspensa, até que tombou para traz, estarrecida.
Reboara no quarto um tiro — o tiro que matou o ultimo homem honesto...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.