O macaco que se fez homem/6
O BOM MARIDO
EMQUANTO a mulher morria no trabalho, com oito filhos á cola, Theophrasto, o bom marido, procurava emprego.
Theophrasto Pereira da Silva Bermudes. Magro, alto, arcado, feio. Bigodeira, orelhas cabanas, pastinha na testa.
Dona Bellinha casara-se contra a vontade dos seus, movida, quem sabe, menos por amor que por dó. Apiedou-a a humildade romantica de Théo, cujo palavrear de namoro feria habilmente uma tecla apenas — sua pobreza.
— Que vale haver dentro de mim um coração de ouro, nicho que habitarás a vida inteira, Izabel? Que vale este meu amor purissimo, forte como a morte, feito de todas as abnegações, renuncias e delicadezas, se sou pobre? Que crime horroroso, ser “pobrezinho”!... e elle armava cara dolorida de perseguido pelo destino.
O noivado inteiro foi esse ferir a nota exacta. Theophrasto adivinhou por instincto que a corda sensivel da moça era a da piedade e fel-a vibrar de mil maneiras. Lido que era nas "Tristezas á beira-mar", em "Graziela"; Escrich e mais lacrimogeneos do ultra-sentimentalismo, seu cerebro virou arsenal de glandulas peritas em verter lagrimas de 1840 sobre o coração das mulheres.
Venceu assim aquella, e fel-a romper com a familia, burguezes arranjados de limpida visão pratica.
Inutilmente tentaram os paes abrir os olhos á moça.
— E' um vagabundo, Bellinha, sem eira nem beira, incapaz de ganhar a vida, malandro completo. Esteve na venda do Souza, mas foi posto no olho da rua por excesso de preguiça. Tambem esteve no cartorio, um mez, e perdeu o lugar pelas mesmas razões. Além disso, é filho do Chico Manteiga, o maior parasitão que já vegetou por estes lados. Puxou o pae...
— Falta de sorte, exclamava Bellinha. Théo ainda não se arrumou porque ainda não foi comprehendido.
— Sorte!... Incapacidade é que é. Theophrasto não presta. Quem chega aos trinta e dois annos sem achar o que fazer na vida, está julgado: não presta. Elle inventou esse casamento comtigo por um motivo só: viver á tua custa.
— Isso não! Théo jurou que ha de trabalhar feito um mouro, para que eu tenha a melhor das vidas. Sou professora, mas elle não admitte que eu tire cadeira.
— Diz isso agora. Casa-te e verás como tudo muda. Nasceu para chopim, o malandro, e escolheu-te para tico-tico...
A moça, entretanto, teimou. Preferiu romper com a familia a soltar o romantico pretendente. As juras de Théo, suas cartas de arrancar lagrimas ás pedras, recebidas todos os días, e aquelle seu modo de olhar com infinitos de meiguice, deram á menina forças para resistir á sensatez dos conselhos.
— Ninguem te conhece, Théo. Desprezam-te porque és pobre. Mas para mim a riqueza que vale é a que me offereces: esse thesouro de amor e carinho que sinto em teu peito.
Théo respondia dando corda ás glandulas lacrimaes e estillando grossos pingos.
— Anjo de bondade, tu és o orvalho que reanima a planta queimada do sol. és a chuva que abranda o fogo do deserto, és o pão que mata a fome ao faminto, és Deus, és Tudo...
E abraçava-a, soluçante.
— Izabel, meu anjo da guarda, meu paraiso, minha salvação... Abençoado o momento em que te encontrei na vida...
Repousava a cabeça no collo da moça e ficava a soluçar baixinho, emquanto Izabel lhe alisava maternalmente as melenas revoltas.
Realizado o casamento, Theophrasto deu de procurar emprego, ganho de subito furor. Passava os dias fóra de casa, na "labuta", e só vinha para as refeições, cançado.
— Uff! Não posso mais...
— Conseguiste alguma coisa?
— Promessas, por emquanto.
Izabel revoltava-se contra a dureza dos homens. Por que motivo repelliam assim creatura tão boa, tão honesta, tão esforçada, e de tanta capacidade? Todos se arrumavam, aqui, alli, bem ou mal; só Theophrasto se debatia em vão... Porque? Tres mezes já de caça ao trabalho e nada...
Resolveu ajudal-o. Obteria uma cadeira, mesmo contra a vontade d'elle, e leccionaria. Tresentos mil réis por mez! Já dá...
Quando o marido soube d'estes projectos, indignou-se.
— Não consinto! Para trabalhar aqui estou eu, homem e forte. Tinha graça ver-te a ensinar meninos e a custear as despezas da casa...
— Mas, Théo, tu vives a te matar sem conseguires coisa nenhuma...
— Mas conseguirei. Insistirei até o fim. Fecham-me as portas? Arrombal-as-ei. Habilitações não me faltam, tu sabes; falta-me sorte, apenas.
— Sei disso. Ninguem o reconhece melhor do que eu. Mas havemos de ficar assim toda a vida, esperando?...
— Peço-te um mez de prazo. Juro-te que dentro de um mez estará tudo arrumado. O que não quero, o que de maneira nenhuma consinto, é que digam por ahi: olhem o Théo, um homemzarrão, a viver 'do trabalho da pobre mulher. Isso, nunca!
Passou-se o mez concedido, e mais outro, e o terceiro. Aggravando-se-lhes a situação, resolveu Izabel requerer cadeira ás escondidas do esposo. Fel-o e foi feliz, vendo-se nomeada logo.
Nesse dia esteve Theophrasto na pharmacia, como de costume. Alli se reuniam todas as tardes varios amigos, para commentario dos factos locaes e encrencas da alta politica. Nenhum dissertava tão bem como elle. Ninguem como elle para "descangicar" aquella "trapalhada de hermismo e civilismo" que dividia o paiz.
Era hermista. Adorava o marechal, o Pinheiro, o Pulcherio e tutti quanti.
— Precisamos endireitar este paiz, custe o que custar. Basta de conselheiros! Venha a espada ! Venha o pulso forte que diz — quero, posso e mando. E' de despotismo, de um sabio e largo despotismo que o paiz precisa.
Os civilistas troçavam.
— Espada burocratica, que vale? Antes a penna luminosa da Aguia de Haya.
Théo pulava da cadeira, furioso.
— Aguia de Haya? Sabem quem foi a aguia de Haya? Foi Rio Branco! Ruy não passou de phonographo. Os discos iam daqui, pelo telegrapho.
Tomou folego, gosando-se da piada, e proseguiu:
— Depois, respondam-me cá: e as emissões? Ruy é emissor, e eu sou contra a emissão!
Um coronel, lido em jornaes, saltou-lhe á frente.
— Calumnia velha! Ruy já provou que quem emittiu menos foi elle.
— Será. Mas a revisão? A Constituição, como diz o Pinheiro, deve ser a arca santa, a deusa intangivel, e Ruy é revisionista.
— Está claro! Foi elle quem fez a jossa e sabe melhor do que ninguem os vicios que ella encerra. O Pinheiro, um pente-fino de marfim, que é que entende de constituições? Entende de cavallos, e pocker, e nada mais...
— Não admitto!
— Vá não admittir na casa do diabo!
Theophrasto abandonou a arena e foi para casa, furioso. Entrou e cahiu na rede, já com a habitual cara de victima.
— Que infeliz sou, Izabel! O mundo me persegue. Corri Sécca e Méca e... nada.
— Não faz mal, respondeu a moça, cuja physionomia irradiava. Requeri ás escondidas uma cadeira e obtive-a!...
Théo sentou-se de golpe.
— Quê?
— E' verdade. Foi nomeada hoje adjunta ao grupo escolar.
Théo desmanchou a pastinha.
— Fado cruel! Destino espezinhador! Eu, que te adoro, que te quero com todas as véras d'alma, ser obrigado a viver do producto do teu trabalho? Nunca!
— Mas que tem isso, bobo? Não sou vadia, gosto de serviço e a escola me distrahirá.
— Nunca! Não consinto, não admitto que minha adorada esposa trabalhe! Antes rebentar os miolos a bala!
— Não digas isso, Théo!...
— Digo, digo porque sinto! E's um anjo e eu não me conformo com a situação.
E arrepelando a grenha, de olhos cravados no tecto:
— Em que signo maldito nasci eu? Que te fiz, meu Deus, para me castigares desta maneira?
A creadinha veio nesse momento chamal-os para o jantar. A' mesa Théo proseguiu na lamuria, alternando imprecações com garfadas.
— Não me conformo! Não me sujeito! Pensas que não tenho brio, Izabel? Como me conheces pouco ainda! Passa-me o arroz...
— Izabel acalmava-o.
— Tolice. Todo o mundo trabalha. A mulher do Pecegueiro, não está a leccionar depois de velha? O marido perdeu o emprego e ella agora é quem... Coma deste bolinho, que está muito bom.
— Sim, mas alli o caso é differente. Elle perdeu o emprego, mas logo arranja outro. Tem sorte, tem a protecção de todo o mundo. Cerveja!... Isto é então um banquete?
— Natural. Quiz fazer-te surpreza dupla: nomeação e jantarzinho melhor.
— Nomeação! Não pronuncies tal palavra, Izabel, que me offendes sem querer. Hamburgueza? Porque não compraste Brahma? Gosto mais da Brahma.
Houve sobremesa e Théo repetiu o papo-de-anjo.
Entraram em phase nova. O ordenado da professora veio salvar as finanças do casal. E seriam perfeitamente felizes se não fôra a resistencia de Théo. Mas não se conformava, o homem. . .
Depois do almoço, todos os dias, sahiam ambos, ella para a escola, elle para o serviço exhaustivo de "procurar emprego" — pharmacia, onde crescia de violencia o eterno bate-bocca politico.
Assim viveram até á vinda do primeiro filho, cuja presença perturbou o regimen da casa. Fazia-se necessario metter nova creada, simples pagem que fosse.
— Théo achou que não.
— E' boa! E quem pageia o menino durante a minha ausencia?
— Ora quem! Eu, Izabel.
— Não consinto. Nada mais ridiculo do que um homem de bigodes a pegar creança. Prefiro tomar costuras para fazer á noite e com o rendimento pôr creada.
— Mas eu é que não consinto que redobres de trabalho! Costurar á noite, que horror! Nunca!
Izabel, que já conhecia o genio do marido, cedeu provisoriamente e finda a licença retomou as aulas, deixando em casa o marido ás voltas com o pimpolho.
Correu tudo muito bem durante os primeiros dias, emquanto brincar com o filho era para Théo novidade.
Ao termo de duas semanas, porém, fartou-se e principiou a sentir saudades da pharmacia. Disse-o á esposa, estylizando.
— Não vae bem assim. Izabel. Perco o meu tempo aqui a lidar com o menino e desse modo não arrumo a vida. Quinze dias já que não procuro emprego!
— Não t'o dizia? O melhor é fazer como pensei. Tomo costuras de fóra e ponho creada.
— Mas não posso me conformar com esse redobro de trabalho, Izabel! Vá que ensines, mas costurar para fóra...
— Que é que tem? Nada me custa, sou forte, e alem disso é o geito...
Veio a creada. Dona Izabel tomou costuras e passava as noites á machina, pedalando. Cosia habitualmente até ás onze. Innumeras vezes, ao recolher, encontrava o marido no valle dos lençóes, resomnando. Entrava de manso, na ponta dos pés e despia-se sem rumor para não acordar o coitadinho. Como o queria! Tão carinhoso... Incapaz de entrar a deshoras, ás oito já estava alli, ao lado della, brincando com o pequeno, enfiando a agulha da machina, contando os casos do dia...
— Tive hoje uma discussão violenta na pharmacia com o Bragadas. Provei que o Hermes vae ser a salvação do paiz e elle embuchou. Ninguem pode commigo na polemica! Nasci para advogado.
— Por falar, porque não tiras carta de solicitador? O João Candó não vive tão bem como rabula?
Théo segurou o queixo.
— E' verdade! Está'hi uma idéa que não me occorreu ainda. Vou pensar nisso.
Theophrasto Pereira da Silva Bermudes pensou naquillo durante varios annos.
Nesse intervallo vieram novos filhos, dois, tres, quatro, cinco. Os encargos da familia redobraram e dona Izabel teve que fazer prodigios para assegurar a subsistencia do clan.
— Pobre creatura! Perdera a mocidade. Seus vinte e seis annos pareciam quarenta. A belleza fôra-se-lhe, minada pela gravidez ininterrupta. Por fim, em consequencia de certo aborto infeliz, entrou a perder a saude. Era já com esforço que proseguia na tarefa penosa, muito acima das suas forças.
Não se queixava, entretanto. Gabava-se até de feliz. Ao receber visitas, puxava logo a palestra para o thema classico das mulheres, os maridos, e louvava o seu.
— Não é por me gabar, prima Biluca, mas marido como o meu não ha outro. Théo me adora! A nossa lua de mel não acabou nem acabará nunca. Que carinhos! Que meiguice! Sempre entrou cedo em casa, nunca me disse palavra dura, vive para mim, faz tudo quanto quero. Um mimo!
Biloca já não dizia o mesmo do seu. Casara com um homem forte, de rara actividade, que se absorvía nos negocios e estava prosperando magnificamente. Dava á familia o maximo conforto e educava os filhos muito bem, mas... não era carinhoso. Muito occupado sempre, não a punha ao collo, não lhe dizia palavrinhas doces.
Izabel irradiava.
— Théo não é assim. Beija-me sempre. ao sahir e ao entrar. Tem cahidos de noivo. E se você soubesse como se amofina de me ver trabalhar... Coitado!
Abria pausa de ternura, e proseguia:
— Sim, porque isso de homem para uso externo, uma figa! Quero maridinho para mim, e não para as outras, não achas?
— Pois decerto!
— Théo mata-se no trabalho, passa os dias no serviço...
— No serviço?
— Sim, procurando emprego. Você sabe que não ha peior serviço do que esse. Mas não tem sorte nenhuma, o pobre, não consegue collocar-se...
A fama do bom marido correu mundo. Todas as mulheres apontavam-no como o exemplo a seguir.
Os homens exemplados, porem, enfureciam-se.
— Um vagabundo d'aquelles! Um miseravel chopim!
— Que tem isso? Eu, franqueza, disse uma, preferia que fosses tambem chopim, mas que me desses o carinho que elle dá á Izabel.
— E' o cumulo! Pois não vês que aquillo é da profissão? Typo asqueroso!... Agrada á mulher porque vive d'ella. E' o seu negocio. Como ha de um malandro d'aquelles encher o dia senão conversando bobagens na pharmacia e beijocando a idiota da esposa?
Todos os homens pensavam assim; as mulheres, entretanto, liam todas pela cartilha de dona Izabel e invejavam-na.
Dez annos se passaram sem que o emprego viesse. Estava escripto no livro do destino que Theophrasto morreria a procurar emprego. Fatalidade...
O triste é que viviam em penuria crescente. O trabalho da professora, por mais estirado que fosse, já não dava para vestir e alimentar os oito filhos pequenos e mais o nono, de bigodes.
A doença começou a derreal-a.
Mas como se galvanizava! Como insistia na terrivel lucta sem tregoas! Dona Izabel transformava em alento os carinhos do esposo. Commovia-se com elles, e enlevava-se á noite a ouvil-o dizer, da rede onde se balançava, de pernas cruzadas, lançando baforadas para o ar:
— Izabel, como me dóe ver-te sempre pedalando essa machina! Porque não descanças um pouco? (Baforada). Tenho o coração em chaga viva, pisado, torturado pela dor de não poder alliviar-te. (Baforada). Tu me matas, Izabel, e eu...
Numa dessas vezes espicaçou-o uma idéa. Ergueu-se de salto e disse:
— Isto não pode ficar assim. Vou agarrar o coronel na rua e obrigal-o a dar-me o posto de fiscal da Camara. Se o não fizer, mato-o!
A mulher, assustada, interrompeu a costura.
— Pelo amor de Deus, Théo, não me vás commetter alguma loucura!...
— Não me detenhas, Izabel! Tudo tem fim na vida. Hei de conseguir, extorquir, arran-car o emprego! Não se martyriza assim um homem...
E sahiu — ou vae ou racha — deixando a esposa apavoradissima.
Fóra, o ar livre acalmou-o e Théo, instinctivamente, seguiu para a pharmacia, onde penetrou dizendo:
— Aposto o que vocês quizerem como antes do fim do mez os russos estão em Berlim. Assumiu o governo o Kerensky, e o Kerensky é um bicho!
— Onde você descobriu ta! coisa?
— Li. Como tambem aposto que o Cadorna vae envolver os austriacos por cima e dar um pealo por baixo, exclamou fazendo gestos no ar, indicativos das operações estrategicas.
— Pois eu aposto, retrucou um germanophilo, que o Ludendorff esfrega essa canalha toda em tres tempos!
A conversa pegou fogo. Aquella gente entendia de guerra mais do que os belligerantes e o ardor de Theophrasto excedia ao do proprio Clemenceau. Só arrefeceu quando o relogio da matriz soou as dez.
— Diabo! Perdi a conta esta vez!
Despediu-se e tocou para casa, apressadamente. Dona Izabel, afflicta com a demora, recebeu-o convencida de tragedia.
— Que houve. Théo? Fizeste alguma para elle?
— Elle, quem?
— O coronel...
— Ah, sim, o coronel... Ficou para amanhã. Não houve meio de encontral-o.
A mulher calou-se, comprehendendo tudo...
O estado de dona Izabel aggravava-se dia a dia. Por mais que se fizesse de têsa, tinha de arrear a carga. Ponderou tudo com o seu raro bom senso e escreveu á familia : "Fiz o que pude mas estou vencida. Não me queixo. Sou feliz, immensamente feliz. Théo me adora e faz o possivel para collocar-se. Não tem sorte. Persegue-o a mais cruel das fatalidades. Venham olhar para estas creanças, que o meu fim está proximo".
Théo nada soube deste passo e muito admirado ficou ao ver chegarem os sogros.
Os velhos olharam-no com rancor e dirigiram-se para o quarto da filha.
Foi dolorosa a scena do encontro. Separados havia dez annos, mal a reconheciam agora.
— Em que estado te encontramos, Bellinha! Porque não nos chamou ha mais tempo? O orgulho te matou...
Izabel, no fundo da cama, sorria.
— Perdoe, mamãe, e lembre-se que não me queixo. Fui feliz. Théo é para mim um anjo de bondade. O que nos fez mal foi a miseria e agora a doença. Estou no fim.
Os pais choravam, assombrados em face da mumia a que se reduzira a linda menina de outr'ora. E culpavam-se de a terem abandonado, de não a terem soccorrido a tempo.
Veio o doutor. Os velhos conferenciaram com elle a um canto.
— Caso perdido. Galopante. Morre exhausta, de canceira, de trabalheira excessiva, de partos e abortos mal conduzidos — de miseria, em summa. Aquelle infame assassinou-a...
Dona Izabel morreu nos braços do bom marido, beijando-o e abençoando-o.
Suas ultimas palavras foram:
— 0 mais me dóe, Théo, é deixar-te sózinho no mundo, ao desamparo. Mas já pedi... e... a mamãe... olhará... para...
— Não teve forças para o ti. Enunciou-o com os olhos e fechou-os para sempre...
Após o enterro os velhos dispuzeram tudo para levar comsigo o batalhãozinho de orphãos. Quanto ao chopim, puzeram-no incontinente no olho da rua:
— Fóra d'aqui, assassino! Vá procurar outra!...
Theophrasto humildemente obedeceu. Sahiu, procurou e achou. Um mez mais tarde ligava-se a certa mulata doceira, cuja quitanda ia prospera.
Guardou, entretanto, lucto rigoroso e só dois mezes mais tarde reappareceu na pharmacia.
— Resurrexit! exclamaram os amigos.
Theophrasto cumprimentou-os, com cara de circumstancia, triste como se recebera pesames. E falou da morta.
— Uma santa! O meu consolo é que tenho a consciencia tranquilla. Fui o melhor dos maridos e a fiz a mais feliz das esposas.
— Lá isso parece. Ella o dizia e todas o repetem. Mas, olha, isto aqui não é sala de visitas de casa de defunto. Está na berlinda a declaração de guerra á Allemanha. Que achas?
Theophrasto mudou de cara, esquecido já da santa e todo nas unhas da paixão partidaria.
— Acho que fizemos muito bem. Precisamos entrar na guerra e mostrar aos allemães de quantos paus se faz uma canôa. O Wenceslau é um bicho!...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.