O macaco que se fez homem/7

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O RAPTO


SOU oculista.

Dentre tantas especialidades abertas ao anel de pedra verde, barafustei pela ophtalmologica, movido de finas razões sentimentaes.

Luctar contra a noite da retina, arrebatar presas á treva: poderá existir profissão mais abençoada?

Assim pensei, e jamais me arrependi de o ter pensado. Minha melhor paga nunca foi o dinheiro ganho em troca dos milagres da faca de de Graefe, senão o extase da triste creatura immersa na escuridão, ao ver-se de subito restituida á luz.

O oculista, fóra dos grandes centros, é um animal andejo. Não pode estacionar permanentemente no mesmo ponto, a exemplo dos collegas que curam todas as molestias conhecidas e quibusdam allis. Possue em cada zona um reduzido grupo de clientes, curados os quaes, ou desenganados, força é que abale de freguezia.

Fiz-me andejo. Andei de déo em déo, por Séca e Méca, desfazendo cataratas, recompondo nervos opticos; e se não enriqueci, vale um thesouro o livro da minha carreira clinica, tão cheio o tenho de impressões, succulentas de psychologia ou pittoresco.

Estampo cá uma dellas, o caso do cégo do Rio Manso.

Não é caso comico e não será tragico; duvido, porém, que me apresentem outro mais humano e de tão grande rigor de logica.


Rio Manso é villoca que os fados plantaram seis leguas além de Itaguassú, cidadezinha onde permaneci tres mezes de consultorio aberto.

Parti para Rio Manso — lembro-me tão bem! — bifurcado em asperrimo sendeiro de aluguel, avatar evidente do Rossinante, salvo o tróte, que o tinha capaz de desconjuntar em pandarecos a nobre vestimenta de lata do manchego.

Meu Sancho era o Geremario, excellente cabrocha a quem extirpei uma catarata e que virou desd'ahi o meu fidelissimo Sexta-Feira.

Nem eu, nem elle, conheciamos o caminho. Não obstante, funccionou Geremario como perfeita bussola, agudissimo que é o senso de orientação adquirido pela gente da roça no traquejo da vida ao ar livre.

A terra é para elles um mappa vivo, e o chão das estradas, um roteiro luminoso. Conhecem a primor a linguagem dos signaes impressos no solo vermelho — sulcos de carraria, pegadas de animaes, galhos partidos, restos de fogueirinhas, e leem-nos como nós lemos letra de forma.

Foi assim que o arguto Geremario, em certo ponto de viagem, murmurou, convicto. de olhos postos no caminho:

— Estamos chegando!

Olhei em redor e nada vi senão a mesma morraria desnuda, as mesmas samambaias. Nada denunciativo de povoado proximo.

— Como sabe, se nunca viajou destas bandas?

O meu cabrocha sorriu com malicia e explicou:

— A estrada está arruinando. Estrada ruim, camara municipal perto...

De facto, o caminho bom até alli. principiava a esburacar-se. Puz-me a observar a mudança, rapida transição para peior, até que, dobrada uma curva, de chofre avistei as primeiras casas da villa.

— Não disse? exclamou, jubiloso, o pagem. Camara é signal que não néga...

Ri-me por fóra, e por dentro admirei a suave ironia daquella agudeza de altos quilates.


Todos os nossos povoados possuem o mesmo aspecto suburbano — a mesma somatica, como diria o meu velho professor de pathologia, no seu preciosismo de academico immortal.

A estrada principia de repente a margear-se de casebres humildes de sapé e barro, com cercas de bambú atrepadas do melão de São Caetano, ou cercas vivas de pinhão do Paraguay, cactus e outras plantas da zona.

Aos poucos os casebres melhoram.

Começam a surgir casas de telha, já rebocadas, já caiadas; e vendinhas; e tendas de ferradores; e assim vae, em gradação insensivel, até virar rua, com passeios, placas engrossativas de coroneis e espaçados lampeões de kerozene.

Tambem a categoria social dos moradores acompanha tal ascenção.

De mendigos, de velhos negros capengas, de sordidas pretas que se espiolham ao sol — perfeita varredura humana de entristecedor aspecto — passa a jornaleiros, a gente pobre mas arranjadinha até chegar á "gente limpa".

E como a rua, no crescendo em que vae, desfecha em praça — o largo da matriz, com gramados, coreto de musica e casas de commercio, assim as "almas" sobem do mendigo roto ao senhor doutor juiz, ao doutor delegado, e ao excellentissimo senhor coronel N. N., chefe da politica local, semi-deus, dono e tutú-marambaia da terra.

Ao entrar em Rio Manso, vencidos os primeiros casebres, chamou-me attenção um berreiro. Em certa casinhola fechada ia rolo velho, surra ou briga, a avaliar pelos gritos que de lá partiam.

Não posso ver dessas coisas sem intervir. Parei á porta, com rompante de autoridade e dei com a argola do relho.

— Que é lá isso ahi?

O rumor interno cessou mas ninguem me respondeu.

Nisto approximaram-se alguns vizinhos. de mãos no bolso e ar velhaco.

— Que terra é esta? Mata-se gente dentro das casas e ninguem se move!...

Retrucou-me um delles:

— Se a gente fosse se incommodar cada vez que o Bento Cégo desce o guatambú nos filhos...

Guatambú nos filhos... Bento Cégo... O caso interessava-me.

— E' um cégo que mora aqui, o Bento. Elle gosta da sua pinguinha. Bebe ás vezes demais, vira valente e mette a lenha nos filhos. Tranca a porta e é, como diz o outro, pancada de cégo!

Fiquei na mesma e vendo que o sujeito não me adeantava o expediente, bati de novo á porta com o cabo do relho.

Abriu-ma desta feita um rapazinho, ahi, dos seus quatorze annos. Interpellei-o.

O menino, a coçar-se, olhou para a gente reunida atraz de mim e riu-se.

— Bem se vê que o senhor não é d'aqui. Papai é assim mesmo. Bebe seus martellinhos e quando esquenta a cabeça, o gosto delle é bater. "Nós deixa", e até "se diverte" com isso...

Assombrei-me. Um pae cujo gosto é bater na prole e filhos que se divertem com a surra! Mas como cada roca tem seu fuso e eu não conhecia o uso daquella terra, não pedi mais, toquei para o hotel, vivamente interessado pelo estranho costume daquella familia.


Armei tenda em Rio Manso e puz-me a concertar olhos. Entrementes, enfronhei-me na historia do Bento Cégo.

Nascera arranjado, filho dum fiscal de camara, e quando casou morava em casa propria, legada pelo pae e sita em rua de procissão. Maus negocios fizeram-no perdel-a e passar a rua mais modesta. Vieram filhos, vieram doenças, macacôas de toda a especie, urúcas, e Bento, a decahir mais e mais, foi rolando para baixo até acabar cégo, á beira da cidade, na zona da mendicancia.

Como e porque?

Era Bento um triste incapaz. Não prestava para coisa nenhuma Começasse por onde começasse seu destino seria sempre aquelle, acabar na rua, chorando esmolas.

Bôbo em negocios, tinha, entretanto, fumos de finorio. Piscava o olho a cada transação que fazia, e quando os arregalava via-se logrado, tungado, embrulhado, furtado pelos "passadores de perna".

Fez-se barganhista e jamais a barganha lhe deu o menor lucro. Começou pela casa. Barganhou-a por outra, muito inferior, tentado pela "volta". Em tres mezes comeu a volta e ficou a nenhum em materia monetaria.

Mas a tentação da volta não o abandonou mais. Iria barganhando e comendo as voltas: solução mirifica, pensou elle, piscando o olho.

E assim fez.

Casão por casa, casa por casinha, casinha por dois carros e quatro juntas de bois, carros por dois cavallos, cavallos por uma besta de fama, que fazia e acontecia, e não sei quem dava por ella oitocentos bagos — um negocião, sempre um negocião!

A ciganagem espigatoria viu nelle uma perfeita mina, incapaz de resistir ao sézamo — "volta!"

E tantas voltas deram no pisca-olho, que Bento se viu alfim com toda a herança paterna reduzida á mula, que não valia nem metade do preço. O freguez dos oitocentos era phantastico e por muito feliz se deu elle de passal-a adeante por duzentos e sessenta, mais uma garrucha velha, de lambuja.

Os filhos, já taludos por esse tempo, puxaram ao pae. Nunca frequentaram escolas, nem queriam saber de trabalho. Não se "sojeitavam". Pelas vendas, atôa pelas ruas, viraram os peiores moleques da terra, e transformaram num inferno a casa do Bento.

Exigencias, brigas diarias, palavrões immundos e uma lambança das mais sordidas. E como o pae, frouxissimo de caracter, nunca tivesse animo de lhes torcer o pepino, torceram elles o pepino ao pae.

Tratavam-no como se trata cachorro, aos ponta-pés, e por fim, quando a miseria chegou e faltou um dia feijão á panella, foram ás ultimas — espancaram-no.

Bento não reagiu.

Reagir como, se eram tres e elle não chegava a um? Resignou-se, e os filhos, estimulados por tamanha covardia, entraram a repetir as dóses, a amiudarem-na, até o metterem para alli, num canto, bóde expiatorio e armazem de pancadas.

Bento deixou de ser homem. Passou a coisa humana, triste molambo de carne pensante, timida, apavorada, despresado de todos e com o consolo unico do alcool, em cujo sopor vivia agora immerso.

Tal situação durou até á venda da besta. Ahi explodiu. Quando entraram em casa os duzentos e sessenta mil réis, mais a garrucha, o pae annunciou logo que ia applical-os num excellente negocio.

Fartos de excellentes negocios, os filhos oppuzeram-se. Havia que repartir o cobre.

Bento resistiu, retezando as vagas fibras de energia restantes em su'alma. Os filhos quebraram-lhe a cara com o cabo da garrucha e fugiram com o dinheiro.

Datou d'ahi a cegueira do homem, pois do espancamento resultou traumatismo do nervo optico e consequente catarata.

Bento passou a mendigo.

Viuvo que era, sem um cão em casa, arranjou um cão, um porrete, um negrinho sarambé ajustado para guia e iniciou vida nova.

Como em Rio Manso não existissem cégos, todos se apiedaram delle. Davam-lhe roupas velhas, chapeus, mantimentos, dinheiro — afóra consolações verbaes.

Resultou disso que uma relativa abundancia veio bafejar seu casebre até alli ninho de miseria absoluta. Chapeus, possuia-os ás duzias, e de todos os formatos, inclusive cartola! Calças, paletós e colletes, ás pilhas. Até fraques e uma formosa sobrecasaca de debrum vieram enriquecer-lhe o guarda-roupa.

Bento dizia:

— Deus dá nozes a quem não tem dentes. Agora que é um corpo só na casa, tanta roupa, até fraque...

Mas os filhos marotos cheiraram de longe a reviravolta da fortuna e bateu-lhes a paquéra do arrependimento.

Hoje um, amanhã outro, vieram os tres, cabisbaixos, humilimos, implorar perdão ao velho.

Que não perdoará um cégo, inda mais pae? Bento perdoou-os e readmittiu-os em casa. A esmola sempre farta havia de dar para todos.

E deu. Nunca faltou, d'ahi por deante, feijão á panella, nem roupa ao corpo, nem dinheirinhos para o resto, inclusive cachaça, e fumo.

Milagre! Aquelle homem que de olhos perfeitos jamais conseguira coisa alguma na vida, alem do desprezo do publico e da pancada dos filhos, recebia agora provas de carinho, gosava certa consideração, fazia-se chefe da casa, respeitado, ouvido e — até temido!

Acostumou-se a mandar e a ser obedecido. E não o fizessem! E não o fizessem depressa! Sua mão, outr'ora tão frouxa, agora dura, esmagava incontinente a resistencia. Sua vontade encorpou, enrijou, deitou os galhos da veneta.

Até da viuvez remendou-se o Bento. Appareceu logo uma parenta pobre que lhe escreveu propondo-se a morar com elle e cuidar da casa.

Veio a mulher, arrumou-se, deu boa apparencia de limpeza e ordem ao tugurio da lambança e do desmazelo — fazendo coisa fina que a toda a gente causava pasmo.

Bento chegou a pensar na acquisição da casinha, apartando vintens para isso.

Mais tarde, novo parente em petição de miseria veio achegar-se á sua sombra — corujão misanthropo, que lhe contava lorótas e lia capitulos do Bertoldo e da "Historia de Carlos Magno e dos Doze Pares de França".

Bento era fanatico de Oliveiros e nunca admittiu que fosse lida a segunda parte do livro, em que Bernardo del Carpio vence os doze pares.

— Mentira! Não venceu nada, dizia elle. Veja se um Bernardo, seja donde diabo fôr, é lá capaz de aguentar uma só lambada da durindana! Venceu coisa nenhuma...

Uma nuvem apenas toldava a paz da familia restaurada. Bento bebia e se errava de dóse, sorvendo a mais um martello que fosse, esquentava de cabeça. O quadro da vida antiga vinha-lhe á memoria, o caso da besta, a scena da pancadaria, e Bento, com grande furor, apostrophava os filhos criminosos. Em seguida castigava-os. Corria os ferrolhos das portas e, chispando maldições tremendas, deslombava-os á céga.

Os filhos suportavam o tratamento sem a minima reacção. Mereciam-no e, além disso, era tão gostosa aquella vidinha esmolenga...

Foi por essas alturas que cheguei a Rio Manso, e o caso do Bento, que me interessara á curiosidade desde o primeiro dia, interessou-me depois á piedade.

Resolvi cural-o.

Examinei-o e vi que cegára em virtude de catarata de origem traumatica, sob forma de facil remoção. A faca de de Graefe punha-o bom em tres tempos.

Propuz-lhe o tratamento.

— Deus que o abençôe! Que vontade tenho de ver de novo o sol! O sol, as cores, as gentes... Só quem perdeu a vista sabe o que valem os olhos. Esta noite sem fim...

— Terá fim a tua, meu velho. O caso é simples e tenho a certeza de por-te sãozinho como dantes. Aprompto-te um quarto em minha casa e só sahirás de lá curado.

— Deus o ouça! Sempre pensei em procurar curar-me. Mas não havia medico por aqui, era preciso ir longe, viagem cara... Se os "videntes" soubessem o que é a cegueira...

"Videntes!" Elle chamava videntes aos que enxergavam... Pobre Bento!

— Pois está combinado Amanhã cedo vaes ao meu consultorio e amanhã mesmo te opéro. E verás de novo o sol, as flores, o céo...

A physionomia do cégo irradiava.

— Sabe o que mais desejo ver? disse, revirando nas orbitas os olhos branquicentos. A cara dos meus filhos. Eram tão maus e são hoje tão bomzinhos...


No dia seguinte, cedo, preparada a ferramenta, fiquei á espera do meu homem.

Oito, nove horas, dez, onze e nada. Não apparecia.

— Geremario, apromptaste o quarto do cégo?

— Não senhor.

— Porque? Não te ordenei isso hontem?

Geremario sorriu maliciosamente.

— O homem não vem, sêo doutor. Vae ver que não vem. Pois se a sorte delle é ser cégo...

Revoltou-me aquelle cynismo de opinião e ordenei-lhe com rispidez que cumprisse minhas ordens sem mais philosophias. E inda de vincos na testa sahi de rumo á casa do Bento.

Encontrei-a fechada. Bati e ninguem me respondeu. Insistia nisso quando á janella do casebre fronteiro assomou a trunfa duma bodarrona em camisa.

— Pode dizer-me que fim levou a gente desta casa?

— São Bento? São Bento foi-se embora. Alli pelas dez da noite os filhos "vinheram" com um carro de boi e um recado seu.

— Meu!...

— Seu, sim! Que o doutor mandou dizer que fosse já, já, por causa da operação — uma historia comprida. Sêo Bento trepou no carro, com aquella coruja que móra com elle. mais o ledor de livro, e as roupas, e o cachorro, e o negrinho, e a cacaria inteira. Até uma cartola desta altura levaram! Depois o carro seguiu por esse mundo fóra...

Fiquei parvo, inteiramente desnorteado de idéas.

A bóda proseguiu:

— Eu bem que vi o que era. Curar sêo Bento! Mas se elle só presta porque é cégo... Se sarasse toda a familia cahia na miseria outra vez...


Meu primeiro impeto foi dar queixa á policia e arrastado por elle disparei para a casa do delegado. A meio caminho, porém, estava arrefecida essa inspiração e ao chegar á delegacia, gelada de todo. Parei á porta. Vacillei.

Em seguida dei de hombros, convencido de que o Geremario tinha razão, e tinha razão a bóda, e os filhos tinham razão e todo o mundo tem razão.

Policia! A policia viria romper ineptamente esse maravilhoso equilibrio das coisas de que resulta a harmonia universal.

Rodei para casa.

Logo ao entrar appareceu-me o Geremario, com ar de quem adivinhou tudo.

— Ponha o almoço, ordenei-lhe seccamente.

— Sim, senhor. E... e posso desarrumar o quarto do cégo?

Olhei bem para elle, inda irritado. Mas a irritação cahiu logo. Que culpa tinha Geremario de conhecer a vida melhor do que eu?

Humilhei-me e respondi apenas:

— Desarrume...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.