O missionário/IX
O capitão Manuel Mendes da Fonseca acabara de tomar a sua xícara de café, adoçado com rapadura, acendera um cachimbo, e fora para a porta da rua, a conselho de D. Cirila, espairecer a negra preocupação que lhe haviam deixado as Últimas notícias vindas de Manaus pelo vapor Belém.
Seriam cinco horas da tarde. O sol caminhava lentamente para o ocaso, ensombrando mais da metade da rua e dando reflexos dourados à água serena do lago Saracá, tranqüilo àquela hora, como de ordinário.
A vila retomara o seu aspecto normal, com as casinhas bem alinhadas, abertas à viração fresca da tarde, os habitantes a fazerem a digestão do jantar à janela ou à porta da rua, à porta do Costa e Silva ou sob as ramalhudas amendoeiras do porto, cavaqueando pacatamente, no deslizar suave e monótono da vida sertaneja.
Só à porta do coletor ninguém estava, e essa falta, parecendo proposital ao seu espírito atribulado, carregava-lhe o semblante com uma nuvem sombria, e bulia-lhe com o fígado.
Antes de partir para os castanhais havia muito tempo que tal fato não se dera, a não ser em alguma tarde chuvosa. O Valadão, o vereador João Carlos, o juiz municipal e outros que não freqüentavam a loja do Costa e Silva, inficionada de heresia maçônica pela presença do professor Chico Fidêncio, vinham todas ás tardes à porta da coletoria trazer as novidades do dia e conhecer a opinião do dono da casa, levando a dedicação ao ponto de ali ficarem palestrando quando o coletor, a pretexto da necessidade de comprar alguma coisa, fazia uma investida ao antro do maçonismo, para mostrar àquele patife do Fidêncio que não tinha medo das suas criticas ferinas.
Mas agora, depois da volta dos castanhais, o capitão Mendes da Fonseca, sentado na sua cadeira de braços, fumando gravemente no seu cachimbo de taquari, notava a falta dos amigos, e não podia deixar de a relacionar com as notícias trazidas pelo Belém, e que ameaçavam claramente o seu prestígio e a sua posição na sociedade de Silves.
O coletor, isolado, cismava, olhando vagamente para o largo tranqüilo, em que vinham boiando, quase sem esforço de remo, duas ou três montarias de pesca que se recolhiam ao porto. A vista do lago recordava-lhe o tempo passado sob os castanheiros frondosos, à margem dos rios sertanejos, na delícia do viver alegre e despreocupado, passando os dias na colheita, a regalar-se de castanhas e de peixe fresco, de ovos de tartaruga desenterrados da areia com alvoroço de criança, as noites nas festas ruidosas dos lundus e dos cateretês que iam até ao amanhecer, ao som dos instrumentos primitivos dos tapuios, ao perfume irritante da aguardente de mandioca e da catinga das mulatas, enquanto a família dormia em alvas redes de linho, nas barracas improvisadas, cansada de vagabundear na extensão das praias em busca de ovos de garças e de maguaris.
Mas quando relanceava os olhos sobre o seu quarteirão deserto, a falta do Valadão, do João Carlos, do Natividade e do Pereira desfazia de pronto a impressão agradável que aquela recordação lhe dava, e um grande pesar lhe vinha de ter cedido inconsideradamente ao gosto pela pândega dos castanhais e, sobretudo, de se ter lá deixado ficar tanto tempo. Fora para passar o S. João, satisfazendo o pedido da mulher que morria por gozar a festa nas praias, longe das cerimônias e incômodos a que a obrigava a posição do marido em Silves. Passara-se o S. João, viera o S. Pedro, depois o dia de Santana, e dois longos meses se haviam esgotado sem que o coletor, esquecido dos árduos deveres que lhe incumbiam, pensasse em outra coisa senão em colher castanhas para o Elias e em pagodear com as caboclas à beira do rio, vingando-se fartamente do constrangimento da sobrecasaca de lustrina e dos sapatos ingleses que lhe impunha a etiqueta da vila, pelo menos quando fazia visitas e principalmente aos domingos.
Ainda lá estaria decerto, pensava, com um sorriso, se de repente a senhora D. Cirila não se tomasse de ciúmes por uma mulatinha faceira, que lhe freqüentava a barraca, e lhe comia em contas e chitas o melhor do lucro das castanhas. Mas para ter as notícias que recebera ao chegar, antes não houvesse voltado, ou melhor, nunca lá tivesse ido. Fizera sempre muito bom juízo do Pereira, esse rapaz que lhe parecia de bons costumes, e a quem deixara o encargo de o substituir na coletoria dando-lhe dinheiro a ganhar... Pois fora esse mesmo Pereira o principal causador dos dissabores que estava sofrendo. De ingratos andava o mundo cheio!
O capitão sacudira a cinza do cachimbo, renovara o tabaco e acendera-o, e depois que observara que nem o Valadão, nem o João Carlos, nem o Natividade aparecia, pusera-se de novo a ruminar os graves acontecimentos que se haviam dado na sua vida depois que fora aos castanhais. A traição do escrivão José Antônio Pereira pesava-lhe sobre o coração, não porque se arreceasse da influência daquele lagalhé, que ele tirara do tijuco em que vivia para dar-lhe emprego e importância, mas porque as circunstâncias da política favoreciam extraordinariamente as intrigas urdidas contra o coletor por um patife, que pretendia tirar-lhe o emprego, para locupletar-se com ele, dilapidando provavelmente as rendas públicas. Não fossem essas circunstâncias excepcionais, e bem se importaria o capitão Manuel Mendes da Fonseca com as infâmias do tal escrivãozinho das dúzias!
Mas, enquanto o coletor gozava a sua licença, e mesmo, a excedia alguma coisa, à sombra dos castanheiros, o presidente da província do Amazonas deixara a administração sem aviso prévio, e sucedera-lhe interinamente um cônego, que o gabinete Paranhos esquecera na lista dos vice-presidentes, em segundo ou terceiro lugar, e que, por mal dos pecados, era um católico ardente e ativo depositário da confiança da panelinha da Boa nova, o jornal que atiçava a questão religiosa na diocese do Grão-Pará.
O presidente resignatário passara por Silves muito zangado com o governo, que o não satisfizera numas tantas coisas, e que para vingar-se passara a administração ao cônego Marcelino, que mostraria aos amigos do gabinete de que pau era a canoa. Até que chegasse a notícia ao Rio de Janeiro e o ministério pudesse pôr na presidência um dos seus amigos do peito, seriam precisos três meses bons, e isso mesmo se o João Alfredo, atrapalhado com as Câmaras, não se descuidasse da longínqua província que só lhe servia para dar ao governo dois deputados da maioria. Ora, em dois meses padre Marcelino tinha tempo de sobra para reagir contra os que se julgavam obrigados, na qualidade de amigos da situação, a fazer praça de liberalismo, falando mal dos padres e defendendo a maçonaria. Padre Marcelino era cabeçudo, sem entranhas, de poucas brincadeiras, e tinha ódio mortal a tudo que era ou lhe parecia maçom. E o patife do Pereira não se lembrara de escrever para Manaus que o capitão Fonseca era maçom, amigo do Chico Fidêncio e assinante do Democrata?
Aquela infâmia do Pereira desatinava o coletor, dava-lhe uma vontade invencível de agarrar o escrivão da coletoria pelas goelas e de o mandar desta para melhor vida. Ele, maçom! O capitão Fonseca amigo do Chico Fidêncio! Isto só lembrava ao diabo! E o tal escrivãozinho não se limitara a isso, falara em certas irregularidades da repartição, em certos desfalquezinhos, verdadeiras insignificâncias, que nunca apareceriam se o coletor não tivesse caído na asneira de deixar o exercício, porque sabia passá-los de trimestre para trimestre, cuidadosamente velados sob a denominação de - saldo em caixa - e, valha a verdade, dando-se tão bem com esse sistema que até estavam engordando. Ainda acrescentara o cachorro que toda a gente estranhava o dinheiro que o coletor gastava em pândegas nos castanhais, e, requinte de perfídia! ousara aquele incomparável patife, recordar aos inspetores da Tesouraria de Fazenda e do Tesouro Provincial que o capitão Manuel Mendes não tinha fiança, como se um homem da sua qualidade precisasse prestar fiança, como qualquer troca-tintas!
Todas as pequenas faltas que lhe atribuíam não lhe causariam o menor abalo se o Pereira não se tivesse lembrado da intriga do maçonismo, com que o queria deitar a perder no conceito do vice-presidente da província. Outros mais pintados do que José Antônio Pereira já tinham feito as mesmas acusações e nada haviam conseguido. A respeito da tal fiança, a Reforma liberal escrevera notícias furibundas de que os presidentes nenhum caso fizeram. Mas agora, com essa história de questão religiosa, as coisas mudavam muito e o coletor não se sentia tranqüilo. O tal padre Marcelino queria ser um Catão, e tratando-se de maçons, era duma severidade até ridícula!
O que valia era que, tendo notícia dos boatos traiçoeiros do escrivão, o coletor não perdera tempo, escrevera para Manaus, deixara de ir à casa do Costa e Silva e até arranjara meios de levar uma descompostura do Chico Fidêncio, numa correspondência para o Democrata. O trecho fora transcrito, à custa do Fonseca, no Jornal do Amazonas, que era o órgão do governo, precedido duma defesa, em que um amigo dizia que o capitão Manuel Mendes da Fonseca, conhecido em todo o vale do Amazonas pela sua honradez e sólidos princípios, estimava os ataques da maçonaria, porque constituíam uma glória para um verdadeiro católico.
Não contente com isso, Fonseca procurara por todos os meios ostentar os seus sentimentos católicos. Lembrara-se mesmo de fazer reviver a idéia do professor Aníbal Americano. Oferecera-se para custear a tipografia que devia publicar a Aurora cristã.
O professor Aníbal viera à sua casa e combinara com ele a forma que daria ao prospecto a remeter para Manaus, e que devia trazer em letras graúdas:
AURORA CRISTÃ
folha católica, noticiosa e comercial
propriedade do
capitão Manuel Mendes da Fonseca
REDATOR - ANÍBAL A. S. BRASILEIRO
A falar a verdade a coisa era cara, mas também não havia necessidade de a levar a cabo, bastava anunciá-la, fazer constar que o jornal ia aparecer, para dar tempo ao João Alfredo de mandar outro presidente ou de nomear um vice-presidente em substituição ao primeiro da lista que se achava entrevado na cama. Enquanto o pau ia e vinha folgariam as costas. Em vista da demonstração de tão apurado sentimento religioso o terrível cônego Marcelino desprezaria as intrigas do Pereira, e ainda ficaria muito contente com o auxilio que ao partido católico prestaria a adesão do capitão Fonseca.
Apesar dessa convicção que lhe entrara pouco a pouco no espírito, quando recapitulava as providências que tomara para defender-se dos ataques do escrivão e as pesava maduramente na balança da sua experiência de homem prático e de político velho, o capitão Fonseca ainda não estava tranqüilo, e um receio vago ficara-lhe sempre no fundo da consciência.
A tarde adiantava-se. A sombra da cordilheira ia-se estendendo sobre o lago e expelindo a luz branda do sol que se refugiava nas árvores da outra banda. E o capitão Fonseca, já cansado de esperar pelo Valadão, pelo João Carlos e pelo juiz municipal, sentia o coração apertado, como se, à semelhança do dia que ia morrendo, o seu prestigio fosse acabando aos poucos, e tivesse de desaparecer com a noite que se avizinhava para sepultar a negra ingratidão dos amigos ausentes.
Estaria já demitido do cargo de coletor das rendas gerais e provinciais, metido em processo, perseguido, obrigado a refugiar-se em algum sítio do Urubus?
Estaria nomeado em seu lugar o infame José Antônio Pereira, e àquela hora seria à porta dele que o Valadão, o João Carlos e o Natividade palestravam satisfeitos, esquecidos do amigo velho e inteiramente deslembrados dos benefícios recebidos, das atenções e finezas que lhe haviam merecido? O Valadão não se lembraria mais dos bons remédios que lhe receitara para a tosse, e de que obrigara o Bernardino Santana a dar-lhe uma satisfação completa depois daquela história do baile? O João Carlos estaria esquecido dos conselhos que lhe dera para bem administrar as coisas do município, dos despachos que lhe fornecia e do trabalho com que lhe redigia as indicações? O Dr. Natividade não se recordaria mais da pontualidade com que lhe pagava o ordenado mensal, chegando mesmo a fazê-lo adiantadamente?
À medida que se passava o tempo, mais a ingratidão o afligia. Vinham-lhe idéias negras, a mujica de pirarucu que comera ao jantar pesava-lhe no estômago, aumentando-lhe o mau humor. Já se cuidava abandonado de todos, sem apoio, sem prestígio, perdendo por contragolpe a confiança do Elias que lhe dava bons aviamentos e obrigado a fechar a casa e a rebaixar-se, em competência com o Costa e Silva, ao ofício de regatão, impróprio da sua idade e da posição que ganhara.
O lago mergulhava-se em sombra. A vila ficava escura. Os transeuntes rareavam. Pontos luminosos apareciam por janelas e portas abertas, aumentando a escuridão da vizinhança. Bois e cavalos vagabundos passavam lentamente, espichando o pescoço em busca de alguma erva esquecida pelas sarjetas, e bufando gravemente para assustar os cães que lhe saíam ao encontro de quase todas as portas. Ao longe a flauta do Chico Ferreira punha notas melancólicas no vago ruído da vila, ao rápido crepúsculo da tarde. Dentro da coletoria, D. Cirila ralhava com as negrinhas, e a sua voz alta e mordente irritava aos nervos do marido, fazendo-lhe sentir mais próxima a desgraça iminente, de que, por fim de contas, era D. Cirila a causa primeira, pois se não fora a sua mania de passar o S. João nas praias, o Pereira não teria tomado conta da coletoria, não teria ganho o desejo de ser coletor, e não teria lançado mão do infamíssimo expediente de que usara pára o conseguir. Não fora a insistência da mulher em partir para os castanhais, o Fonseca teria seguido os conselhos do padre vigário, não teria abandonado a vila, e àquela hora estaria descansado, com o seu prestígio seguro, o seu lugar garantido e a sua roda de amigos para dar-lhe as novidades do dia. Mas a senhora D. Cirila quisera passar o S. João nas praias, o S. Pedro, e não se contentara com isso, quisera ficar até o dia de Santana! E agora arrumassem-lhe com um trapo quente!
Vinha-lhe grande rancor contra a mulher, cuja voz continuava a irritar-lhe os nervos, afogueando-lhe a bílis. Aí estava em que davam as complacências dos maridos. Tivesse o Fonseca seguido os conselhos de padre Antônio de Morais, e estaria muito descansadinho. Esta idéia acudia-lhe com insistência, acompanhada duma irritação surda contra o vigário que se fora embora, abandonando as suas ovelhas que lhe cumpria guardar e proteger.
O vigário devia-lhe, como toda a gente, muitas obrigações. Dera-lhe um opíparo jantar no dia dos seus anos, encarregara-se de lhe mandar lavar e engomar a roupa, pusera-o a par de todos os negócios da vila, dando-lhe conselhos. No transe aflitivo em que o Fonseca se achava, muito lhe poderia valer padre Antônio de Morais. Bastava uma cartinha sua ao cônego Marcelino e tudo estaria arranjado, o José Antônio Pereira ficaria chuchando no dedo, desmoralizado. Mas não, S. Rev.ma preferira ir converter mundurucus! S. Rev.ma abandonara a paróquia, deixara os seus fregueses privados dos socorros espirituais, e lá fora por esses sertões fora pregar aos tapuios bravos, como se os tapuios o pudessem entender! E iria mesmo pregar aos tapuios, ou, talvez, gozar uma vidinha livre, à maneira de padre João da Mata, vigário de Maués, que fora amigo de viver nas malocas indígenas entre bandos de tapuias, como um sultão da Turquia? Fonseca já estava arrependido de ter defendido o vigário de Silves quando o Chico Fidêncio o atacara com os seus sarcasmos ferinos e as suas críticas audazes. Defendê-lo para quê? De que lhe serviria agora o serviço que em boa fé prestara? O padre estava ausente, metido entre selvagens, morto segundo dissera o sacristão Macário, não lhe poderia valer!
A sua tristeza aumentava. Uma última esperança, reunida à repugnância de se encontrar cara a cara com a mulher, na disposição de espírito em que se achava, prendia-o à cadeira de braços, à porta da rua, descontente de tudo e de todos, doendo-se profundamente da traição do Pereira e da ingratidão do João Carlos, do Valadão, do juiz municipal, do vigário e de toda a gente. Um grande desânimo o invadia e uma lágrima teimosa, aproveitando a escuridão da noite que fechava a vila num círculo de trevas, descia-lhe lentamente pela face abaixo, vindo perder-se na farta barba grisalha.
As pressas um homem veio do porto, subindo a rampa com muita agilidade, e chegando ao pé do coletor, que se endireitou na cadeira, disse alvoroçado:
- Morreu agora mesmo. Parecia um passarinho!
Era o vereador João Carlos que, cedendo aos hábitos inveterados da sua vida, vinha consolar o capitão Fonseca no seu isolamento.
No dia seguinte, caminhava o coletor para o domicílio mortuário, azafamado e esbaforido, lamentando o caiporismo que o perseguia agora nas menores coisas da vida. Ia quase a correr, para não faltar à cerimônia, ele, o homem grave, sempre pontual, exato, sempre correto na atitude. Que série de calamidades se desencadeara contra ele, de certo tempo àquela parte, que até nas mínimas circunstâncias a sorte se lhe mostrava adversa!
Primeiro, ao abotoar a sobrecasaca enquanto D. Cirila a escovava, tivera de pregar-lhe um sermão para a convencer que não era decente, para uma senhora séria, estar a lastimar a morte do Totônio Bernardino, atribuindo-a ao amor. E então com que maneiras novas dizia aquilo D. Cirila, batendo-lhe no lombo com a escova, sorrindo entre lágrimas, suspirando - ai! coisa rara! morrer um homem de amor!
Fonseca tivera de repreendê-la. Aquilo eram tolices de rapazes vadios e de raparigas delambidas! Totônio Bernardino não morrera de amor, nem isso era coisa de que se morresse. Segundo o parecer de Regalado, o rapaz recolhera uma constipação, que se complicara com o miasma palustre, e dera em resultado uma tísica furiosa e galopante. Demais o Totônio era um criançola, a quem lá no Pará haviam metido coisas na cabeça. Nunca havia de dar para nada. Não safra ao irmão, que tão moço já era tenente da guarda nacional. O Cazuza, sim, era um rapaz trabalhador e sério. Vivia muito bem com a mulher e ajudava o pai na lavoura, ao passo que o outro era um vadio, cheio de idéias esquisitas, um poeta, afinal!
Após essa altercação que tivera com a mulher, já pronto para sair, Fonseca só depois duma campanha, encontrara o seu chapéu de pêlo, um belo chapéu, comprado em 1868, em Manaus, para a posse do primeiro presidente conservador. Zangara-se. D. Cirila gritara conforme o seu costume. As negrinhas tonteavam pelos cantos, vasculhando os armários e as arcas da roupa guardada. Afinal fora o chapéu encontrado dentro da sua caixa verde atrás de uma porta. Parecia caçoada. Atrás da porta!
Em seguida pediu o seu guarda-sol. D. Cirila gritara de novo. As negrinhas corriam em todas as direções, como baratas pressentindo chuva. E nada do chapéu-de-sol!
- Pois havia de ir ao enterro sem chapéu-de-sol? Quem fora o canalha que lhe furtara o traste?
Busca e mais busca. Nada. Talvez o tivesse emprestado ao Valadão.
- Negrinha, gritou D. Cirila, corre à casa do seu tenente Valadão. Dize que vais de minha parte fazer uma visita e saber como passou a família toda. E pergunta se não está lá o chapéu-de-sol do teu senhor.
- Já, sim, senhora, disse a escrava. E saiu correndo.
Não estaria o chapéu na casa do João Carlos? Parecia que na véspera, estando a ameaçar chuva, Fonseca lhe oferecera o chapéu-de-sol quando se retirara. Com certeza lá estaria! Era isto. Querer fazer bem aos outros e passar privações e dissabores! Fonseca arrependia-se' daquela mania que tinha de servir a toda a gente, fazendo sacrifícios. De que lhe servia isso? Era uma súcia de ingratos! Pois agora havia de ir ao enterro sem chapéu-de-sol!
- Negrinha, disse D. Cirila a outra rapariga, vai à casa do seu João Carlos, na carreira. Dize que vais da minha parte fazer uma visita e saber a senhora e os meninos como passaram. Que nós estamos bons, muito obrigados. Que eu mando pedir o favor de mandar o chapéu-de-sol de teu senhor que ele emprestou ontem ao João Carlos.
- Já, sim, senhora, respondeu a escrava. E saiu num pulo.
Fonseca sentara-se desanimado abrindo as abas da sobrecasaca para as não amarrotar na cadeira. O tempo corria. O relógio marcava quatro horas. D. Cirila, por desencargo de consciência, continuava a procurar o chapéu-de-sol por todos os cantos, auxiliada por duas escravas.
Não estaria na casa do Dr. Natividade? Fonseca parecia recordar-se de que, no domingo passado, o juiz municipal lhe pedira emprestado o chapéu-de-sol para um passeio que fizera à outra banda com o professor Aníbal Brasileiro! Era isto. Sempre a mesma coisa! Sempre a mania de fazer bem, em prejuízo próprio. Que lhe importaria a ele, Manuel Mendes da Fonseca, que o Natividade apanhasse sol no tal passeio? Não ficaria mais trigueiro. E que ficasse! Era um ingrato, isso estava provado. Fosse pedir ao Pereira as coisas emprestadas! Estaria bem aviado. José Antônio Pereira não lhe emprestaria coisa alguma, porque não era tolo como Fonseca.
- Negrinha, providenciou pela terceira vez D. Cirila, vai à casa do Dr. Natividade. Dize que teu senhor manda fazer uma visita e saber como ele tem passado. Nós estamos bons, muito obrigado. Dize que teu senhor mandou pedir o favor de lhe remeter o chapéu-de-sol que lhe emprestou no domingo passado para o passeio com seu professor Aníbal na outra banda. Já ouviste?
- Já, sim, senhora, respondeu a negrinha. E saiu a correr.
- Estou bem aviado! gemeu o Fonseca. Primeiro que qualquer desses demônios volte, já o pobre do Totônio Bernardino está farto da sepultura.
- Também é bem feito! acrescentou, dando um murro no espaldar da cadeira. Quem me manda emprestar tudo quanto tenho?
O tempo passava. Fonseca consultava o relógio e ficava cada vez mais zangado. Tudo agora lhe corria mal. Parecia que uma caipora atroz o perseguia. Malditos castanhais! Fora depois daquele estúpido passeio que a sua sina mudara! Visse ali a senhora D. Cirila, naquela série de infelicidades, as conseqüências da sua teima em passar o S. João nas praias!
D. Cirila parecia não esperar por aquela acusação. Estava nessa ocasião espiando o vão entre a cômoda e a parede, porque talvez lá tivesse caído o chapéu-de-sol. Voltou-se muito desapontada para o marido:
- O Manduca! Pois eu tenho culpa de você ter emprestado o chapéu-de-sol!
Tinha, sim, embora indireta. Fonseca contendo a custo o rancor que havia dias alimentava contra a mulher, explicara longamente a teoria do caiporismo, em virtude da qual todos os males do presente se originavam da infeliz lembrança que tivera D. Cirila de passar o S. João nas praias. Acusou a mulher de ser a causadora das intrigas de José Antônio Pereira e da desgraça iminente sobre a cabeça do marido. Mostrou que tudo neste mundo filiava-se a causas certas, embora parecessem sem importância. Que a desgraça era sempre uma conseqüência do erro e do pecado. D. Cirila fizera como Eva. Incitara o marido a comer o fruto proibido, e ele agora, como Adão, teria de ser expulso do paraíso, vergonhosamente. Demonstrou claramente que o fruto proibido eram os castanhais que o vigário lhes proibira num sermão eloqüente e enérgico, e o paraíso que tinham de deixar era a coletoria porque talvez muito breve o Pereira, José Antônio Pereira, seria nomeado coletor das rendas gerais e provinciais de Silves! E tudo isto por quê? Por culpa de D. Cirila, estava claro.
A mulher tentava interrompê-lo, mas na confusão da consciência culpada só conseguia colocar algumas exclamações: ah! Manduca, oh! Manduca! Não diga isso!
- Digo, sim, senhora, continuava Fonseca, implacável, desabafando por fim. E desdobrava ante os olhos atônitos e já lacrimosos da mulher o quadro negro da sua desgraça futura. A vingança do cônego Marcelino, a demissão, o retraimento do Elias, o processo, a falência, o desprestígio, o abandono, o isolamento, a miséria, a necessidade de competir com o Costa e Silva, o desrespeito dos inimigos e o risinho amarelo do Valadão, do João Carlos e do Natividade.
E pior que tudo isso, o José Antônio Pereira, aquele lagalhé que o Fonseca tirara da lama das estradas, repimpado na cadeira de coletor, imparia de bazófia sorrindo nos dentes podres, adulado, festejado, elevado a altura duma personagem!
D. Cirila abrira uma gaveta da cômoda e tirara um lencinho branco para enxugar os olhos, quando à porta apareceu a rapariga que fora à casa do Valadão.
A diversão não podia vir mais a propósito para a mulher culpada.
- Então, que disseram lá? perguntou sofregamente à mensageira.
- A filha do seu tenente Valadão, disse a rapariga, cruzando os braços, mandou dizer que todos estão bons, muito obrigado. Que o seu tenente tossiu muito esta madrugada, mas que tomou duas colheres dum xarope que seu Regalado mandou, e passou melhor. Que estima muito que senhor e senhora tenham passado bem de saúde e fica muito obrigada pela visita.
- E o chapéu-de-sol?
- A filha do seu tenente Valadão diz que lá não tem chapéu-de-sol nenhum.
- Então está em casa do Natividade! dissera o Fonseca. Aquele sujeitinho é um esquecido de conta, peso e medida! Eu bem dizia que não estava com Valadão, mas com o Natividade, a quem o emprestei no domingo passado. A senhora quis por força mandar à casa do Valadão e perdeu o seu latim.
Nesse momento apareceu a serva que fora à casa do juiz municipal.
- E o chapéu-de-sol? perguntara-lhe D. Cirila, impaciente.
A rapariga cruzou os braços sobre os seios, e respondeu, arrastando as palavras:
- Mandou dizer que está bom, muito obrigado. Que já mandou o chapéu-de-sol logo na segunda-feira de manhã, e que, graças a Deus, não precisa ficar com o que é dos outros.
- Patife! dissera Fonseca, zangado, e com toda a razão. Patife! Deve-me mil obrigações, e manda-me um recado assim tão atrevido! E, numa grande desolação, com uma idéia sinistra a atravessar-lhe a mente, lançara um olhar desesperado à mulher aflita:
- Sabe o que isto é, D. Cirila? O Natividade já sabe tudo! Tem ordem para processar-me, e por isso trata-me dessa maneira. E quem é a culpada, D. Cirila? Meta a mão na consciência, senhora, e diga quem é a culpada desta desgraça?
D. Cirila chorava. Nada tinha que opor à evidência daquele presságio funesto. As crioulas, vendo-a chorar, choravam também, ruidosamente. Ouvia-se o voejar sinistro das moscas. Da sala vinha uma luz pálida, do dia que descambava, encoberto de nuvens. As paredes brancas, caiadas de fresco, tomavam de repente colorações sombrias. Pela casa silenciosa perpassava um vento de desgraça. Fonseca estava perdido! Ouviram-se no corredor passos leves de gente descalça.
A porta abriu-se. A rapariga que fora à casa do vereador João Carlos apareceu. Os olhares voltaram-se ansiosos para ela.
- Que disseram? perguntou D. Cirila.
- Que todos estão bons, muito obrigado. Estimam que senhor e senhora estejam bons, e ficam muito agradecidos pela visita. Que seu João Carlos foi para o enterro e levou o chapéu-de-sol do senhor.
- Bonito! uivara o capitão Fonseca, compreendendo a importância daquele novo presságio Pois havia de ir ao enterro sem chapéu-de-sol?
E deixara cair a cabeça, num desânimo.
Mas D. Cirila, assoando-se rapidamente, providenciou, resoluta:
- Negrinha, vai à casa do seu Bernardino Santana. Dize ao seu João Carlos que teu senhor está à espera do chapéu-de-sol para ir ao enterro.
E aí estava a razão por que o grave capitão Mendes da Fonseca caminhava azafamado e esbaforido.
O enterro do Totônio Bernardino estava marcado para as quatro horas.
Era a primeira vez, depois que regressara da missão à Mundurucânia, que o sacristão Macário tinha ocasião de praticar um ato de ofício, pois que até ali, as suas ocupações se haviam resumido em tratar da igreja que o bêbado do José do Lago deixara ficar numa miséria.
O enterro se faria sem padre, mas o sacristão levaria a cruz alçada e a caldeirinha, e a irmandade do Santíssimo Sacramento, a que pertencia o Bernardino Santana, o acompanharia de balandrau e tocha. Macário procurava suprir, como lhe era possível, a falta do senhor vigário.
Tendo dado todas as providências necessárias, Macário aguardava a hora marcada para o saimento. E, bem penteado, de paletó de alpaca, de botas de rangedeiras, camisa engomada, nodoada de anil, passeava sobre os modestos tijolos da igreja a impaciência de entrar em funções, unida ao intenso contentamento de ver-se restituído à sua querida vidinha de sacristão repousado e decente, agora glorificado pela parte que tomara na heróica, embora infeliz, empresa de padre Antônio de Morais.
Não fora sem susto que Macário chegara àquele resultado admirável, excedente de toda a expectativa na sua pobre mas muito acidentada existência. Tivera muito que padecer, sofrera o que não contara sofrer, comera o pão que o diabo amassara. Mas agora satisfeito e risonho, fazendo horas, sentia prazer em recordar as peripécias daquela viagem extraordinária, em que se vira tantas vezes no meio dos maiores perigos, próximo da morte, sem que jamais tivesse desesperado do auxílio de Nossa Senhora do Carmo, nem perdido a confiança no maquiavelismo com que o dotara a pródiga natureza.
O dia estava claro, a vila tranqüila. O José do Lago já tocara no sino grande os primeiros dobres de finados, melancólicos e graves.
Era aquela mesma a sua Silves querida, aquela a casa do vigário, asseada e branca. Lá nos fundos ficava o quintal onde a Luísa Madeirense cantarolava a Maria Cachucha. Não havia dúvida alguma. Macário escapara aos mundurucus, e ali estava são e salvo, certo de que não cairia noutra. Entretanto, por mais de uma vez vira o caldo entornado, principalmente quando, sentado à margem do rio sobre um tronco verde, avistara os dois índios de terçado em punho, avançando para os brancos descuidados, com grande barulho de mato derribado! Oh! nunca pensara o sacristão de Silves ter tão boas pernas para correr! Se lho tivessem dito antes, não se acreditaria capaz de galgar em tão pouco tempo o espaço que o separava do porto, de cortar com tanta segurança a corda que prendia a montaria à terra, de saltar para dentro dela com tamanha agilidade, impelindo-a para o largo com tão extraordinária força. O terror dera-lhe força, agilidade e talento, um talento excepcional, que lhe aguçara o maquiavelismo naquelas apertadas conjunturas. Ah! fora só depois de atravessar o rio Mamiá, ajudado pela corrente favorável do Canumã, que Macário se julgara livre dos malditos índios, e começara a alimentar a doce convicção de que se poderia salvar escorreito e são daquela insensata empresa de padre Antônio, de quem se lembrou então com algum remorso de o ter abandonado sozinho, sem recursos para fugir ou defender-se da sanha dos tapuias. Mas ainda agora, que já o medo lhe não podia obscurecer o juízo, o sacristão reconhecia que aquele remorso não tinha razão de ser. Fizera o mesmo que outro qualquer faria. A sua filosofia prática resumia-se na frase que repetia complacentemente:
- Se ficasse éramos dois a morrer, morrer por morrer, morra meu pai que é mais velho; ou, por outra, morra padre Antônio que estava morto por isso.
Fizera a viagem até o sítio do Guilherme, com o enorme contentamento de ver-se livre das loucuras do vigário. O seu lombinho rejubilara-se, entumecendo de gozo ao contato do sol que o picava do lado com titilações provocadoras. Os passarinhos cruzavam-se sobre a sua cabeça, como para o saudar pela vitória alcançada, e festejavam-lhe o feliz regresso, pipilando alegremente. Uma viração fresca soprava do Amazonas, acariciando-lhe os cabelos, e pondo-lhe nos membros uma sensação de bem-estar indizível, como se o hálito perfumado da Luísa Madeirense viesse ao seu encontro para o afagar docemente, fazendo-o prelibar as delícias que o esperavam na vila. A canoa cedia facilmente ao remo, se é que o não dispensava, deixando-se arrastar pela corrente na cumplicidade feliz daquela fuga.
Chegara ao sítio do Guilherme - seria talvez onze horas da noite com um luar de quarto crescente. Os cães latiam, mas o dono da casa acudira ao barulho.
- Tome tento na cachorrada, patrício, é gente de paz.
O tapuio não o conhecia, mas a tia Teresa tinha boa memória:
- Gentes, cruzes! É aquele branco do sitro dia que tem o olho tapado!
Até essas palavras tinham-lhe ficado gravadas na cabeça. Não podia esquecer o mínimo incidente do seu afortunado regresso. Desde que deixara a companhia de padre Antônio, tudo lhe correra às mil maravilhas, como se Nossa Senhora do Carmo o quisesse compensar amplamente dos dissabores sofridos. A hospitalidade do Guilherme fora franca e de boa vontade, e a tia Teresa, apesar daquela tolice insulsa com que lhe assinalara a belida, esmerara-se em obséquios e atenções que iam direito ao coração faminto do sacristão de Silves. Todavia a demora no sítio do pescador fora muito longa. O Guilherme tinha de levar ao Ramos uma boa partida de pirarucu salgado, que estava preparando, e não queria fazer duas viagens para aquelas bandas. Quando fosse levar o pirarucu, levaria o branco. E assim obrigou o Macário a esperar cerca dum mês com intensas saudades.
Entretanto a viagem do lago Canumã ao lago Saracá fora feita nas melhores condições possíveis. Macário, refeito das fadigas excessivas que suportara, estirado no fundo da igarité sobre um tupé macio, cruzara os braços e as pernas numa regalada mandriice, resguardando do sol o lombinho com o chapéu de palha, e pensando na esplêndida Luísa, a rainha das formosas. Uma nuvem apenas ensombrava-lhe a alegria de sentir-se deslizar suavemente sobre a superfície do rio, sem que tivesse de calejar as mãos no remo. Era a idéia do embaraço em que se teria de achar para dar explicações aos habitantes de Silves sobre o desaparecimento do vigário coincidindo com a própria salvação.
Mas ainda aí fizera-se sentir a decidida proteção de Nossa Senhora do Carmo, porque ninguém em Silves duvidara da história que Macário contara ao chegar, e de que se não podia lembrar sem que um sorriso de orgulho prestasse homenagem ao seu mais que provado maquiavelismo. Era num aperto destes que Macário queria ver o Bismarck e o conselheiro Zacarias!
O tenente Valadão, João Carlos, o professor Aníbal, o Costa e Silva, o Mapa-Múndi e o Chico Fidêncio cercaram-no no porto, não consentindo que fosse para a casa sem primeiro pôr tudo em pratos limpos. Pois pusera-o, e, gabava-se, fora obra asseada. Fugindo a um ubá selvagem, que os perseguira por duas horas, numa terrível porfia de remos, sob uma nuvem de flechas, tinham ido ele e o senhor vigário abrigar-se num mato cerrado, esperando que os gentios lhes perdessem a pista. Mal se tinham julgado a salvo dos índios do ubá, foram agredidos por um bando de parintintins; que ali se achavam, naturalmente para dar caça aos mundurucus do ubá. Logo ao primeiro golpe os parintintins atiraram ao chão o ardente missionário que se preparava para lhes fazer um discurso evangélico. Então ele, Macário, vendo o seu protetor e amigo, o arrimo da sua vida, o esteio da religião e da moral, banhado em sangue, perdera a noção do número e da força, e num esforço desesperado e louco - confessava-o - investira com os selvagens, armado de remo, e disposto a morrer, vingando o companheiro. Mas o gentio lá de si para si pensou que um homem tão valente como o Macário se mostrava não devia morrer sem as habituais cerimônias selvagens. Macário fora agarrado e amarrado a um castanheiro. Depois os índios retiraram-se muito alegres para o interior da floresta, levando em charola o corpo do missionário para lhe servir de prato de resistência nos seus horríveis festins noturnos. O sacristão ficara por muitas horas atado ao castanheiro, esperando a cada momento ser, como S. Sebastião, convertido em paliteiro, pelas flechas dos parintintins. Mas ao que lhe parecera, ao partirem aqueles selvagens levando o corpo de padre Antônio, avistaram os mundurucus do ubá, e trataram de os apanhar numa cilada, esquecendo o pobre prisioneiro branco. Ou seria outro o motivo da demora que permitira à Providência Divina, a rogo de Nossa Senhora do Carmo e do Senhor S. Macário, realizar em favor do sacristão de Silves um grande e verdadeiro milagre. A embira com que os índios lhe haviam amarrado os pés era muito verde. Uma cutia, que por ali passara, sentira o apetite aguçado pelo cheiro vegetal da fibra tirada de fresco, e a roera de tal sorte que com um pequeno esforço Macário pudera libertar os pés. Conseguira livrar depois as mãos, esfregando com força a embira na aresta duma pedra grande que ali estava, a modo que de propósito, e correra para o porto. Os mundurucus do ubá haviam passado, sem dar pela montaria oculta entre as canaranas. Macário tratara de navegar para o lago Canumã, com um grande pesar de não ter apanhado a cutia, que se fora embora, apenas concluída a tarefa de que parecia incumbida. Era ou não era uma obra asseada aquela história da guerra dos parintintins com os mundurucus e da cutia mandada por Nossa Senhora do Carmo?
De fato Nossa Senhora fizera o milagre, porque afinal milagre fora salvar-se Macário dos dois caboclos do terçado que deram cabo de padre Antônio de Morais. A consciência de Macário estava tranqüila. Não mentira. Houvera ou não o encontro do ubá dos mundurucus? Estivera ou não Macário sentado à beira do rio sobre um tronco verde? Tinha ou não tinha visto caboclos de terçado em punho, que tanto podiam ser maués ou mundurucus como parintintins? Fugira ou não na montaria para o sítio de Guilherme? Quanto à morte de padre Antônio, não podia ser posta em dúvida. Poderia ele resistir à fúria com que vinham os dos terçados? O episódio da cutia era na verdade um exagero, mas milagre por milagre, tanto valia o da cutia como o da retirada do ubá que padre Antônio asseverara ser milagrosa, e aquele tinha sobre este a vantagem de não deixar mal o pobre sacristão que nenhuma culpa tinha de não haver nascido com vocação para missionário.
A história fora acreditada, e isto era o principal, apesar dos muitos oh! oh! ora essa! homem, esta cá me fica! abençoada cutia! malvados parintintins! e quejandas exclamações com que o auditório interrompera o narrador.
Toda a gente considerava agora o Macário um homem favorecido por grandes milagres de Nossa Senhora do Carmo, um favorito do céu. A coisa fizera barulho. Fazendo ranger as botas sobre o ladrilho da igreja, Macário sentia-se possuído de legitimo orgulho.
Estavam longe os tempos em que padre José o descompunha aos olhos de todos, sujeitando-o ao desfavor público! O filho da lavadeira de Manaus era um homem importante, de quem se falaria nas folhas, ao que lhe dissera o professor Chico Fidêncio, que, triunfo incomparável! o tratava com muita distinção. Toda a gente lhe tirava o chapéu: boa-tarde, Sr. Macário, como passou, Sr. Macário? As visitas sucediam-se e Macário nunca em sua vida recebera visitas! Esperava todos os dias a do coletor, homem importante, freguês do Elias, e que o estava enchendo de atenções. O capitão Mendes da Fonseca viria insistir com ele para que aceitasse o lugar do José Antônio Pereira que se tornara um tratante maior da marca. Mas Macário não queria deixar a sua querida igreja! Seria ingratidão para com a sua excelsa padroeira! Contentava-se modestamente com a consideração pública, que o colocava numa situação nova e superior.
E não queria mudar de vida, amava o seu emprego, e se Deus algum dia o favorecesse com um filho, legar-lhe-ia essa profissão honrosa e decente. O cheiro do incenso e da cera queimada, a frescura da igreja, o som argentino dos sinos, a gravidade das ocupações, a importância dos detalhes do serviço agradavam-lhe.
Depois aquele lugar proporcionava-lhe uma influência crescente, e agora que Silves estava outra vez sem pároco, e que seis meses pelo menos se passariam antes que a solicitude de D. Antônio remediasse a falta, o sacristão era como vigário leigo, sem tonsura, sem batina e sem direito de dizer missa, mas com todo o encargo espiritual daquele rebanho amado, com todas as vantagens do paroquiato. Era o único a dirigir o serviço do culto, reduzido embora a ladainhas e a enterros, governava a igreja, distribuía ceras e registros, emprestava as cadeiras, as toalhas e os castiçais da Matriz sem dar satisfação a pessoa alguma. Não podendo confessar as beatas, ouvia-as sem mais sigilo do que a sua discrição, aconselhava-as, dava-lhes remédios. E até já se lembrara, por amor à instrução pública da vila, de continuar com a escola de catecismo dos pequenos que ultimamente padre Antônio abandonara.
Macário embebido nestes pensamentos passeava na sacristia, aguardando a chegada dos irmãos do Santíssimo para ter o prazer de distribuir entre eles, ao sabor das suas preferências pessoais, as tochas, e as cruzes. Era regalia que tinha em muito apreço e que não deixava de mão. O Chico Fidêncio seria naturalmente o mais favorecido. Era preciso corresponder!
Ele estava deitado, e parecia dormir no seu caixão forrado de belbutina preta e ornado de largos galões dum dourado tirante a cobre, afogueado e velho.
A cabeça, coberta de cabelos castanhos anelados, que deixavam a testa livre e vasta, estava voltada para um lado e ligeiramente inclinada para trás; por efeito dum último espasmo tetânico, ou por compostura que mão estranha dera, salientando o magro perfil de tísico e emprestando uma audácia de atitude àquele corpo de vadio que resumira a vida numa única paixão. No rosto comprido e macilento manchas azuladas destacavam-se. Nos lábios finos, sombreados por um nascente buço castanho, vagueava um sorriso, como se no momento supremo do trespasse uma idéia feliz lhe tivesse alegremente colorido o quadro de além-túmulo. Ou talvez a certeza e a aproximação da morte tivesse tornado grato o instante que punha fim às tribulações da vida. Sobre o peito cavado pela moléstia a alva camisa francesa, engomada com esmero, bombeava o plastron de seda preta, amarrotado de leve pelas mãos cruzadas, brancas, diáfanas, veiadas dum azul escuro.
O resto do corpo perdia-se na frouxidão das roupas elegantes e caras, terminando pelos sapatos novos de polimento, entrelaçados por um lenço branco, para que os pés se não separassem. Pobre Totônio! Inutilmente lhe prendiam os pés. Já não poderia fugir em busca do pitoresco sítio do Urubus, onde solitária e triste gemia a sua adorada Emília, de quem para sempre o separava agora a terrível fatalidade da morte. Ao menos o seu juramento fora cumprido!
A sala branca, séria, desguarnecida de móveis? tinha uma melancolia que assaltava o coração da gente, logo à entrada. Da parede do fundo pendia um grande crucifixo amarelado, com chagas hediondas. Sobre pequena mesa coberta de pano preto duas velas de cera alumiavam a face esbranquiçada e menineira duma Senhora das Dores. Quadros com imagens cinzentas de santos milagrosos rodeavam o caixão mortuário, descansando na grande mesa de pinho sem lustre, forrada de pano preto, pingado de cera e picado de traças, e os santos, retratados em litografias baratas, com legendas místicas por baixo, cruzavam os olhos brancos por cima do cadáver, numa desolação. Às cabeceiras da essa improvisada três círios queimavam os longos pavios resinosos, pingando lágrimas amarelas sobre os tocheiros de pau preto, colocados no chão. A luz baça das velas perdia-se na claridade decrescente da tarde. As três chamas, privadas de toda a irradiação, pareciam três brasas oscilando no ar. Um cheiro enjoativo de cera e alfazema enchia a casa e vinha até à rua. Pelas janelas semicerradas entrava a viração da tarde. Lá dentro, nos aposentos da família, ouvia-se um soluçar contínuo e monótono, mas moderado e tímido. Num quintal vizinho cantava um galo melancólico. Na sala fizera-se um silêncio quando Macário entrara. Depois um murmúrio começou, acentuou-se e se transformou em conversação cortada, a trechos, em voz baixa, como para não perturbar a solenidade triste da ocasião.
A casa já estava cheia. Junto ao caixão, mexendo distraidamente no lenço que atava os pés do cadáver, o Pedrinho Sousa, muito bem vestido de preto, chorava. Estava pálido e com olheiras pelas muitas noites que velara à cabeceira do amigo, cujo confidente era. Do outro lado do caixão, o Manduquinha Barata, também de preto, forcejava por guardar a seriedade que a ocasião exigia, mordendo os beiços para não rir de qualquer coisa de extraordinariamente ridículo que descobria no vestuário do vereador João Carlos. Valadão contava os seus padecimentos ao Dr. Natividade, que muito penteado, com os cabelos úmidos, parecia ter saído dum banho, e de mãos atrás das costas, bamboleando uma perna, dava conselhos de medicamentos usados em Pernambuco. O Mapa-Múndi, o Costa e Silva e o Regalado conversavam baixinho, em grupo, perto da janela. O Felício boticário murmurava ao ouvido do tenente Pena e do Bartolomeu de Aguiar, alternadamente. Os velhos, ouvindo, sacudiam a cabeça, muito convencidos. O Cazuza Bernardino, de pé à porta da sala, vestindo a bela farda de tenente, com fumo no braço, tinha uma atitude de dor resignada e forte. Quinquim da Manuela entrava e saía, atarefado, cuidando dos últimos arranjos, com interesse e dedicação de bom rapazinho. O senhor vereador João Carlos, atordoado, perseguido pelos olhos insolentes e brejeiros do Manduquinha Barata, procurava disfarçar; abrindo conversa com o professor Aníbal. Mas este, muito preocupado, virava-se para um e outro lado, concertava os óculos e cuspia, sem lhe dar atenção.
Macário, depois de deixar a cruz ao Quinquim da Manuela, foi contemplar o pobre finado, de quem guardara uma impressão de pena e simpatia, misturada duns longes de inveja e desprezo ao mesmo tempo. Sim, era uma coisa assim esquisita o que Macário sentia por aquela criança de dezoito anos, roubada à vida, ao que se dizia, por uma paixão amorosa, e que tão vivos e salientes deixara os traços do seu caráter. Quando o vira pela primeira vez no baile do casamento do irmão, a impressão que lhe causara fora desfavorável. Era um pelintra, um vadio que perdia o tempo palestrando na roda do Chico Fidêncio. Demais, era bonito moço e só vestia roupas feitas no Pará, umas coisas elegantes e novas, que Macário admirava, mas que não teria jamais a coragem de pôr em si. E Macário, até então humilhado, e visto com sarcasmo pelos rapazes alegres da roda do Chico Fidêncio, embirrava solenemente com aquelas elegâncias. Depois vira-o pálido, abatido, com um raio de loucura no olhar, as roupas em desalinho, narrando a desgraça da sua vida e falando em morrer para não suportar os tormentos da separação da sua amada. Agora que pela terceira vez o via era frio e imóvel naquele caixão mortuário, audacioso e terno ao mesmo tempo na sua rigidez cadavérica. E aquela transformação rápida, efetuada em tão poucos meses, como numa vertigem assombrosa que se apoderara daquele mancebo de dezoito anos, elegante e frívolo, apaixonado e ardente, devorado pela lava incandescente duma paixão súbita e mortal, enchia de pasmo e confusão o espírito de Macário. Francamente não o compreendia. Morrer pelo amor duma mulher! E morrer amado! Moço, elegante, instruído, pertencendo a uma boa família, renunciar à vida, deixar-se apanhar estupidamente por uma tísica ou coisa que o valha, só porque o papai não consentiu no casamento com uma matutinha do Urubus, era por demais inexplicável.
E Macário, contemplando o bonito fraque azul-ferrete que o cadáver tinha vestido, o colete de gorgorão preto, a bela gravata e os finos sapatos de polimento, pensava que os rapazes educados nas capitais não têm a mesma têmpera que os da vila, e que o Bernardino Santana, não pela proibição do casamento com a Milu, mas pelas larguezas e facilidades que permitira ao filho era culpado daquela morte prematura...
Nisto Q Bernardino Santana, todo de preto, com a calva descoberta à viração da tarde, numa das mãos uma tocha e na outra uma coroa de latão, aproximou-se dele, e pôs-se a dizer com os olhos rasos de lágrimas:
- Ora está vendo, seu Macário sacristão? É uma desgraça! O rapazinho morreu como um passarinho. E não havia modos de lhe fazer tomar o remédio. Desde que adoeceu, não se lhe pôde pôr na boca uma colher do remédio. É uma desgraça!
Puxou do bolso da sobrecasava um grande lenço de chita, enxugou os olhos, assoou-se e continuou:
- E você que o conheceu, seu Macário sacristão, lembra-se dele? Como era alegre, e bom menino! Se não fossem aquelas tolices com a Milu, eu nunca teria tido ocasião de zangar-me com ele. Pois, desde que caiu na cama mudou como uma coisa extraordinária. Não falava, não respondia à gente, e não queria tomar remédios. E olhe que não eram remédios de cacaracá, de pouca monta... Eram remédios caros... e o rapazinho nada! Por mais que eu gritasse, ralhasse, nada! Uma teima assim, nunca vi em dias de minha vida!
E o Bernardino Santana deixou a coroa de latão sobre a mesa, entregou a tocha ao Pedrinho Sousa e foi perguntar ao Quinquim da Manuela se a cova estava pronta.
Macário também afastou-se de junto do cadáver, e procurou saber qual a razão da demora, pois julgava que seria o último a chegar.
- É por causa do Fonseca, disse-lhe o Costa e Silva, ainda não chegou e Bernardino quer que se espere por ele.
Nesse momento o professor Aníbal acercou-se do grupo do Costa e Silva.
- Morreu de amor, o coitadinho! disse ele concertando os óculos e cuspindo longe.
- Qual morreu de amor! exclamou o Regalado. O que ele teve foi uma boa galopante, posso asseverá-lo! E se não fosse tão teimoso, se tivesse tomado os remédios que lhe dei, teria ficado bom. A moléstia começou por uma constipação desprezada. Sobreveio uma febre palustre, e em poucos dias a febre tomou o caráter tífico e... os tubérculos logo se declararam... enfim uma embrulhada! Se o pai o tivesse obrigado a tomar os remédios, teria ficado bom.
- Pois eu, tornou o professor Aníbal, como ouvi dizer que ele morrera de paixão por não casar com uma sobrinha do Neves Barriga, fiquei com pena e arranjei uma nênia para o caso. Não é lá coisa como de Lamartine ou de Casimiro de Abreu, porque eu não sei fazer versos e nunca fui poeta. Mas por pena do pobre do Totônio labutei toda a noite e compus a nênia...
Aníbal Brasileiro concertou os óculos, cuspiu, e meteu a mão no bolso da sobrecasaca para tirar alguma coisa, dizendo:
- Trago-a aqui para ler no cemitério. Intitula-se: Morto por amor!
- E o senhor a dar-lhe! exclamou o Regalado impaciente, levantando a voz para ser ouvido do Bernardino Santana que vinha nessa ocasião do interior da casa, trazendo um mocho de pau e dois grandes castiçais com velas de cera. Já lhe disse ao senhor professor, que o rapaz não morreu de amor, mas duma galopante.
- É o mesmo, murmurou desapontado o Aníbal, deixando a nênia no bolso e afastando-se para o lado do vereador João Carlos.
Então o Costa e Silva quis saber do sacristão se o enterro seria acompanhado pela irmandade do Santíssimo.
- Sem dúvida, respondeu Macário, alisando o cordão da opa.
O Bernardino Santana é irmão do Santíssimo. A irmandade aí vem toda com o Chico Fidêncio à frente. O Chico Fidêncio é quem traz o pendão.
O Regalado, admirado, exclamou:
- O pândego do Chico Fidêncio de pendão em punho!
E sorriu, pasmado.
Mas nem o Costa e Silva nem o Mapa-Múndi o acompanharam na surpresa. Nada mais natural! O Chico Fidêncio era maçom, inimigo dos jesuítas, mas não era contrário à verdadeira religião!
Macário ponderou, convicto:
- O professor não é tão ateu, como geralmente se diz... Ele lá tem a sua história de não querer saber de padres, mas acredita na religião, e é boa pessoa.
- Isso na sua boca, senhor Macário, aplaudiu o Costa e Silva agradecido, é um bonito elogio.
Macário confessou então que andava enganado com o Chico Fidêncio por causa daquelas histórias do defunto padre José, que Deus houvesse. Agora o desejo dele Macário, que tinha sobre os seus débeis ombros o encargo espiritual de Silves enquanto o senhor bispo não mandava outro vigário - era restabelecer a harmonia, a paz na sociedade de Silves. Para isso empregaria todos os esforços e sacrifícios. Felizmente as coisas iam bem encaminhadas porque o Chico Fidêncio também agora confessava que se enganara com o santo padre Antônio
- Macário enxugou uma lágrima e com o sacristão, ao qual fizera muitas injustiças.
O Costa e Silva e o Mapa-Múndi apoiaram as palavras do sacristão com sinais de deferência. O perfume sutil da lisonja entontecia o sacristão, dando-lhe vertigens. A casa parecia andar à roda. Na claridade baça da sala, pontos negros espalhavam-se. Macário naquele lugar, naquela ocasião, era incontestavelmente a primeira pessoa.
Ia ficando tarde. A irmandade do Santíssimo chegara, de opa encarnada e tocha na mão e rodeava o cadáver.
- Ora até que enfim! suspirou o Bernardino Santana, vendo chegar o capitão Mendes da Fonseca, o último que faltava. O coletor vinha esbaforido, suado, de chapéu alto - o único - e guarda-sol debaixo do braço. E logo à entrada da sala teve uma ligeira altercação com o Dr. Natividade, que cresceu para ele:
- Ora diga-me, senhor capitão, que história de chapéu-de-sol é uma? Fique V. S.a sabendo, senhor capitão, que graças a Deus, eu não preciso de ficar com os chapéus-de-sol dos outros. Graças a Deus, eu não preciso! exclamou, voltando-se para o Macário, que se aproximava para os harmonizar.
O capitão mastigara uma desculpa. Eram coisas de senhoras. Não fora ele, fora a senhora D. Cirila que teimara que o chapéu-de-sol estava na casa do juiz municipal - mas não era verdade. O chapéu estava com o João Carlos.
- Ora muito bem, peço a V. S.a que para outra vez não repita a graça. Graças a Deus, não estou acostumado a receber desfeitas, e não preciso ficar com o que é dos outros. O governo ainda me paga para comprar um chapéu-de-sol. Sou pobre, é verdade, sou de família obscura, mas graças a Deus, sempre gozei em Pernambuco da maior consideração. Nunca ninguém pôs em dúvida o meu caráter.
E o Dr. Natividade, nervoso e impressionado, tirou o lencinho da algibeira do fraque e enxugou o rosto e as mãos. Depois tirou o pincenê e pôs-se a limpar-lhe os vidros com o lenço, murmurando:
- Graças a Deus, é a primeira vez que isto me acontece. Mas o Bernardino chegava carregando a tampa do caixão mortuário. João Carlos ajudou-o a encaixá-la nos machos, e os preparativos para a saída começaram.
Nessa ocasião o professor Aníbal Americano aproximou-se do capitão Fonseca e perguntou-lhe baixinho:
- Devo ler agora a nênia, ou deixo-a para o cemitério?
- Que nênia, seu Aníbal?
- Uma nênia que fiz pela morte do Totônio. Não é obra-prima, mas fiz o que pude.
- Acho melhor no cemitério, opinou o Fonseca. É mais solene.
Bernardino Santana convidou o Costa e Silva, o Mapa-Múndi, o Pedrinho Sousa, o João Carlos, o Bartolomeu de Aguiar e o Dr. Natividade para carregarem o caixão.
O Dr. Natividade escusou-se, sem dar as razões. O Bernardino foi convidar o capitão Fonseca que aceitou. Mas o Natividade veio confiar ao Macário os motivos da recusa.
- O senhor compreende? Vim ao enterro por obra de caridade, e porque, graças a Deus, não levo o meu ressentimento até o túmulo. Mas a dignididade impedia-me de carregar um rapazola que há tão pouco tempo foi o causador de me fazerem uma desfeita.
Macário não se lembrava. O Dr. Natividade, de mãos atrás das costas, pincenê fixo nos olhos, auxiliou-lhe a memória:
- Na noite do casamento do Cazuza... aqui... no baile... a desfeita da Milu?...
Macário já se lembrava. O juiz municipal resumiu, numa convicção profunda:
- Já vê que a dignidade me impede.
O Bernardino Santana despedia-se do filho, apertando nas mãos as mãos geladas do cadáver. O velho chorava, numa dor expansiva:
- Pobre rapazinho! Tão moço, tão bonito e tão esperto! Ele vai-se, eu, traste velho, é que fico! Coitadinho! Até parece que está dormindo!
E impressionado com a causa a que atribuía aquela morte tão sentida, repetia:
- Tudo foi ele ficar tão teimoso, a ponto de não querer tomar os remédios! Remédios tão bons e tão caros!
E num soluço dolorido:
- Pobre rapazinho! Tua mãe que está no céu há-de perguntar por que não tomaste os remédios. Mas que culpa tenho eu, fiz tudo, tudo.
O Valadão e o Fonseca agarraram-no, dando-lhe coragem:
- Tenha ânimo, homem! A morte é obra de Deus. Resigne-se e lembre-se que ainda tem outro filho!
O Cazuza aproximou-se do pai, pálido, sem lágrimas. Era uma dor forte. Filho e pai abraçaram-se junto ao cadáver de Totônio.
- Agora só me restas tu, meu filho. Desculpa o meu sentimento... mas ele também era filho.
E o Bernardino desatou de novo a chorar. No meio da sua dor, a lembrança duma providência a dar acudiu-lhe. Voltou-se para o Quinquim da Manuela, e recomendou por entre lágrimas:
- Olha o Filipe que leve o mocho atrás do caixão, para o descanso.
Uma senhora, toda de luto, entrou, seguida de três ou quatro mucamas. Era a D. Mariquinhas das Dores que vinha dizer o último adeus ao cadáver do cunhado. Os que cercavam o caixão afastaram-se para dar-lhe lugar. A jovem senhora descansou um braço sobre a borda do caixão e pôs-se a chorar, assoando-se de vez em quando num lencinho rendado.
- São horas! disse suspirando o Bernardino Santana. Pelas janelas entrava, acentuada, a viração da tarde. O Cazuza Bernardino arrancara a mulher de junto do cadáver. D. Mariquinhas saiu soluçando gritos. As mucamas choravam ruidosamente, em coro. Fechou-se o caixão à chave. Organizou-se o préstito. O José do Lago ia à frente com a caldeirinha. Macário seguia-o com a cruz. Vinha logo após a irmandade do Santíssimo, com o Chico Fidêncio à frente, empunhando o pendão. Depois era o féretro carregado por seis amigos do pai do finado. O preto Filipe vinha logo atrás, carregando o mocho. Os convidados cercavam o préstito, sem ordem.
Quando o caixão transpunha a porta da rua, ouviu-se no interior da casa um grande grito de mulher.
- É a D. Mariquinhas que está com um ataque, disseram.
- Aquela está pronta, notou o Regalado. O Cazuza bem mostra que é trabalhador.
O enterro seguiu pela segunda rua até ao cemitério. Havia mulheres às janelas e crianças às portas das casas. Ouviam-se expressões de pesar por toda a parte. Coitadinho, tão moço e tão bonito! E dizem que morreu de paixão!
Uma grande tristeza envolvia a vila. O tempo mudara por volta de cinco horas, e o céu estava toldado. Um vento carregado de umidade soprava do lado do sul. O sol escondia-se lentamente por trás da serra.
No caminho os homens que carregavam o caixão renovaram-se duas vezes. Quando o préstito parava, a conversação estabelecia-se a princípio em voz baixa, e depois em tom natural, como num passeio.
No cemitério, quando depuseram o caixão de Totônio Bernardino no fundo da cova escura e fresca, o professor Aníbal Americano Selvagem Brasileiro recitara uma poesia que começava assim:
MORTO POR AMOR
NÊNIA
E morreste na flor da mocidade,
Teu pai, coitado, aí ficou chorando...
Macário não se recordava do resto. Mas eram versos muito bonitos que o Costa e Silva prometera mandar para o Diário do Grão-Pará, apesar do Regalado dizer que o tal professor era um idiota.
O Costa e Silva, porém, confirmara a promessa. Ficasse o Sr. Aníbal descansado. Havia de mandar os versos, e os mandaria já, porque queria ter o gosto de os ler impressos antes de sua partida para o Madeira.
Quando o pobre do Totônio Bernardino ficou bem enterrado sob uma grande camada de terra negra e úmida, e os convidados começaram a retirar-se, o Chico Fidêncio passou o pendão do Santíssimo às mãos do Quinquim da Manuela, e chamando o sacristão Macário, levou-o para um canto, passando-lhe um braço pelo pescoço, numa familiaridade agradecida.
Queria mostrar-lhe uma cópia da correspondência que enviara pelo último paquete ao Democrata de Manaus. Tratava da missão à Mundurucânia.
E naquele canto do cemitério, à fraca claridade do crepúsculo da tarde, o Chico Fidêncio leu o seguinte trecho:
"O escritor destas modestas e despretensiosas linhas gaba-se de não se deixar iludir pelos homens de roupeta e chapéu de três bicos que o senhor D. Antônio encomenda para Roma, ou forja no Seminário maior para a obra da romanização (permitam-me o vocábulo) da sua diocese; mas sabe curvar-se diante dos verdadeiros apóstolos do Nazareno, que não vendem indulgências, mas expulsam os vendilhões do templo.
Por mais livre-pensador e despido de abusões ridículas que um homem se preze de ser, não pode deixar de admirar o zelo (digno de melhor causa!) desses ministros de Cristo, que, desprezando os regalos da vida que lhes facilita o erário público, fornecendo-lhes um excelente lugar à mesa do orçamento, atiram-se aos perigos da catequese dos íncolas da floresta, através de mil privações e misérias, para granjearem a palma dum martírio sublime, mas inútil para á sociedade, porque os índios são uma raça decadente e refratária ao progresso, e que, conforme já se provou na grande República Americana, só podem ser civilizados a tiro. Padre Antônio de Morais era um desses raros exemplos de abnegação e culto do Evangelho. Era um soldado da idéia (antiquada!) que soube morrer no seu posto, e que deve servir de modelo aos carcamanos que nos mandam de Roma. O escritor desta, mais do que qualquer outro, tem o dever de fazer-lhe justiça, porque, vendo os seus ares modestos e os seus olhos baixos, cometeu o erro de tomá-lo por um desses muitos hipócritas que zombam da religião e da sociedade, introduzindo a discórdia no seio das famílias, e que tanto abundam no clero paraense. Felizmente, para que os ilustres feitos desse apóstolo da fé de nossos pais não ficassem desconhecidos, o Acaso conservou-nos o seu modesto, mas digno companheiro, o honrado e zeloso sacristão da freguesia, Sr. Macário de Miranda Vale, salvo da sanha dos parintintins pelo cego instinto roedor dum pobre animalejo, no qual o povo ignorante e embrutecido pelos padres quer ver um enviado da Providência Divina..."