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O missionário/X

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Felisberto, entreabrindo a porta do quarto, meteu pela fresta a curiosa cabeça, e perguntou:

- Agora está melhor?

O dia estava alto. Jorros de luz intensa penetravam pela abertura da porta, pelo telhado, pelas falhas da taipa. Lã fora não se ouvia ruído algum, como se todos, homens e animais, se tivessem combinado para respeitar o sono do hóspede. Entretanto padre Antônio de Morais não dormia. Muito cedo, ao cantar do galo no terreiro, ao mugir do gado no curral, abrira os olhos, estranhando a cama, o quarto, as paredes grosseiramente caiadas, esburacadas, e limpas, o ladrilho lavado, as imagens de santos penduradas das paredes em quadros pintados de preto, como se estivesse vendo tudo aquilo pela primeira vez. Notava aquele ar de bem-estar confortável, de asseio cuidadoso, a par da falta de comodidades, e da extrema simplicidade duma habitação sertaneja, e aquilo o impressionava agora, pela primeira vez, depois de três longos dias de estada naquele sítio, em pleno Guaranatuba.

Chegara tão cansado, de corpo e de espírito, tão desnorteado, tão incapaz de pensar e de sentir que entrara maquinalmente naquela casa hospitaleira, maquinalmente aceitara o quarto, a cama, os obséquios que lhe ofereciam, e só naquela manhã recobrara a presença de espírito, a lucidez necessária para relacionar os fatos com as pessoas, religar a corrente das idéias e dos acontecimentos, dar-se contas da sua situação presente e reconstituir o passado de três dias, espaço de tempo que fazia uma solução de continuidade na sua vida mental. Naquele prazo decorrido tudo lhe havia passado, não desapercebido, porque os mínimos detalhes se lhe gravavam na memória, mas vago, obscuro, como em sonho, ou alheio à sua individualidade psíquica, como quadros e figuras dum caleidoscópio gigante, de que ele fosse o espectador único, distraído e desinteressado. A enorme tensão de espírito que os últimos acontecimentos da sua vida lhe haviam produzido, a meditação aturada e constante dum tema único, no meio de vicissitudes e acidentes que o obrigavam a atender às realidades objetivas, haviam-no de súbito mergulhado num colapso profundo, que lhe tirara a noção exata do eu, e o fazia estranho à sua própria personalidade. Agia, falava, movia-se, mas como se um outro por ele estivesse preenchendo essas funções vitais. A sensibilidade estava embotada, o pensamento adormecido. Os fatos, as pessoas, os quadros passavam-lhe por diante dos olhos, mas não sabia dar-lhes a verdadeira significação, ficava indiferente, como se tudo aquilo não tivesse relação alguma com a sua pessoa. Entretanto agora, repousado, tranqüilo, sentindo-se bem naquela cama, em que estirava os membros para verificar se haviam recobrado a antiga energia e elasticidade, naquele quarto onde a luz suave da manhã lhe patenteava o conforto relativo de que se privara por tantos dias, parecia que abria de novo o entendimento à percepção exata das coisas, e que de pronto entrava na posse das suas faculdades mentais. Então queria examinar o passado, informar-se do que o outro fizera, vira e ouvira, para reatar o fio da sua vida, o curso das suas meditações. Começava por querer assenhoriar-se do presente, explicando a sua situação e permanência naquela casa perdida nas brenhas do igarapé da Sapucaia, em pleno Guaranatuba, mas já o aspecto daquela habitação sertaneja, misto inexplicável de atraso e de civilização, de simplicidade rústica e de um confortável estranho naquelas paragens, punha-o em confusão, baralhando-lhe as idéias.

Aquela casa tinha uma história, e a recordação dessa história prendia-se à lembrança de fatos que a tinham antecedido na memória do padre; e não podia acudir-lhe sem que primeiro viessem pela ordem do tempo os acontecimentos que a haviam originado. Quem a contaria? Que série de fatos a tornara necessária? A recordação dessa história lhe daria a razão de ser da sua estada naquela cama e naquele quarto? Os fatos do passado lhe vinham vindo pouco a pouco à memória, porém sem ordem nem clareza, intercalando-se o que vira com o que lhe haviam contado, o que observara com o que ouvira. Faltava-lhe o nexo dos acontecimentos. Via-se na situação de quem lesse o último capítulo duma narrativa sem ter lido os primeiros.

Não conseguiria jamais coordenar as suas reminiscências, evocar os fatos do passado mais antigo sem que a percepção do presente ou a lembrança do passado mais recente se lhes interpusesse, para desviar-lhe a atenção e obscurecer-lhe a memória? Faria um esforço de abstração, e para a completar, fecharia os olhos, a fim de não ver o quarto, as paredes caiadas, o ladrilho lavado, as imagens dos santos penduradas em quadros de pau pintado de preto.

E então, lucidamente as recordações lhe foram chegando, em ordem, concatenadas, como uma história que lhe tivessem contado. Primeiro, de súbito, nas trevas, procurando remontar-se ao mais longínquo passado, via-se ajoelhado, olhos para o céu numa fervorosa prece, esperando o golpe que lhe deviam dar João Pimenta e Felisberto enquanto o Macário corria para o porto...

Sim, desta vez, a sua memória não o iludia. Os dois tapuios que de terçado em punho, cortando o mato que lhes impedia a passagem, se dirigiam para ele, eram o João Pimenta e o Felisberto. Um era velho, de face enrugada, cabelos pretos e corredios, narinas e beiços furtados, fisionomia de selvagem mal iniciado na civilização, em que sobressaía principalmente a estupidez, estampada numa larga face achatada, sem vida. O outro, o Felisberto, o insuportável tagarela que com a sua verbiagem tola concorria para aturdi-lo, era moço, muito menos trigueiro do que o velho, nariz grosso, olhos pretos e belíssimos dentes, aparados em ponta, o que lhe dava um vago ar canino. Este não mostrava indícios de haver sofrido nos lábios, nas narinas nem nas orelhas as perfurações em voga. Era mestiço, segundo o indicavam a cor do rosto, o leve ondeado da farta cabeleira mal tratada, e tinha também um certo ar palerma, que lhe garantia a consangüinidade com o velho; era mais a simplicidade de espírito do que a estupidez profunda que a pródiga natureza gravara com mão pesada na fronte enrugada do companheiro. Ambos vestiam apenas calças de riscado azul e traziam terçados americanos e espingardas Laporte. Os troncos nus luziam ao sol, destacando-se o do velho no meio da folhagem com uns tons quentes de urucu e jenipapo, cuja tinta o revestia de desenhos caprichosos com antiga e indelével tatuagem, e o do moço desmaiando em coloração branda de entrecasca de canela, nos contornos cheios, de suavidade feminina...

Tendo-os assim retratado complacentemente, começou a vê-los logo em ação, seguindo-os com uma curiosidade nova. Via-os, quando os supunha agressivos e ferozes, caindo-lhe aos pés, extáticos, fascinados, pedindo-lhe a benção, balbuciando palavras de humildade, na crença, como depois lhe disseram, que era a alma do padre santo João da Mata. Eram moradores do furo da Sapucaia, que atravessa do Sucundari para o Mamiá até o rio Abacaxis, e ali viviam desde que o velho, avô do moço, deixara de ser tuxaua duma tribo de mundurucus para batizar-se e vir a ser camarada do vigário de Maués, o santo padre João. Andavam naquela ocasião a colher guaraná e castanhas por sua conta, pois que o padre santo morrera, havia já tempo bastante para estar fedendo de velho lá no céu.

O padre, ao recordar a frase, sorria, e logo se lhe firmava melhor na memória a figura do Felisberto, a repetir frases de um latim das brenhas estropiado e ridículo; e a dar aquelas explicações todas, com muita minudência, satisfeito por mostrar que não era um caboclo qualquer, mas um moço que tivera a sua educaçãozinha e até acolitara a padre João da Mata na própria Matriz de Maués, em pequeno, pelo que sabia ajudar a missa, acompanhar um enterro, puxar uma ladainha, e gabava-se de outras prendas... raras nos sertões de Guaranatuba. O sorriso fugira, porém, dos lábios do padre, ao lembrar-se do Macário, do seu pobre companheiro, que embalde procurara por toda a margem do rio, chamando-o em altas vozes, repetidas pelo eco da outra banda, e que talvez àquela hora tivesse naufragado, na frágil embarcação que a precipitação e o medo não lhe permitiriam dirigir com acerto no curso acidentado do Carumã. Depois perdido, sem recursos à beira dum rio deserto, padre Antônio cedera aos rogos do Felisberto que o queria levar para o sitio da Sapucaia, prometendo que o avô o guiaria, depois de algum repouso, ao porto dos Mundurucus, arranjando a condução necessária; e todos três haviam seguido pelo mato dentro, indo sair a um pequeno igarapé, todo coberto de ramagens verdes, onde urna água cristalina corria à sombra de araçás e maracujás silvestres. Um ubá de três bancos estava ali amarrado a um tronco de árvore. Embarcaram, o mestiço à proa, o padre no meio e o velho ao jacumã, e seguiram viagem para o sul em profundo silêncio, navegando cerca de quatro horas por baixo de ramos e cipós que cobriam o igarapé negando-lhe franca passagem. Depois chegaram ao furo da Sapucaia, que corta o Mamiá por ambas as margens, indo encontrar o Abacaxis, em cujo leito despeja as suas águas negras, duma admirável transparência. Afinal foram ter ao sítio de João Pimenta, que tinha um aspecto agradável, com a casa de palha, bem caiada e limpa, os taperebás e mangueiras do terreiro, parecendo mais a casa de vivenda dum cacaulista abastado da beira do Amazonas do que a propriedade dum pobre selvagem meio civilizado dos remotos sertões de Guaranatuba. Era local bem escolhido para uma vivenda de recreio, um bom retiro para o tempo dos tracajás e da desova das tartarugas. Os altos castanhais da margem oposta do furo estreito da Sapucaia proporcionavam ao sítio sombra e frescura nos dias de ardente verão, e ofereciam à vista, além da esplêndida vegetação, do sertão amazonense, a maior variedade de flores silvestres e uma fauna riquíssima com pássaros esquisitos e com caças de todos os tamanhos. Veados, antas, tamanduás, lontras, capivaras, caititus, enormes barrigudos e vermelhos caiararas vinham desassombrados beber a água do furo, animados do silêncio e tranqüilidade do lugar, apenas levemente alterado pelo deslizar suave do ubá de João Pimenta. A margem esquerda, em que estava o sítio, formava um contraste, a modo que de propósito, com a banda fronteira, pois ao passo que esta oferecia um perfeito espécime da mais virgem e rude mata do Amazonas, o que exaltava a imaginação de padre Antônio de Morais, o local do sítio do velho tuxaua fora completamente modificado por mãos inteligentes de homem de bom gosto. As altas sumaúmas, as agrestes embaubeiras, os cedros gigantescos haviam sido substituídos por grande variedade de plantas de cultura, de modo a tornar o sítio uma miniatura de toda a lavoura do Amazonas. A um cacautal de cerca de trezentos pés, que vinha descendo até o rio, unia-se um canavial, cuja cor verde-claro manchava o fundo escuro formado pelos cacaueiros densos; logo ao pé um pequeno pacoval se ocultava por trás dum renque de floridas laranjeiras, onde se aninhavam titipuruís e rouxinóis de peito amarelo, saltitantes e canoros. Dentro dum cercado coberto de grama miúda e vistosa pastavam duas ou três vacas, um touro e alguns bezerros de mama, e galinhas, patos, perus, marrecos e pavões pequenos mariscavam à sombra dos cajueiros, das mangueiras, e dos abieiros que cercavam a casa e desciam pelo terreiro abaixo até à beira da água, onde um arrozal, levantando as cristas das plantas, parecia ali posto para dar uma nota risonha à paisagem sombria das grandes árvores escuras.

Fora ali, contemplando aquele delicioso sítio, que, logo à chegada padre Antônio de Morais vira a Clarinha, a neta de João Pimenta, de pé sobre o tronco de palmeira que servia de ponte ao bem tratado porto. Era uma mameluca, de quinze a dezesseis anos de idade, uma fisionomia petulante e decididamente desagradável, tão desagradável que padre Antônio sentiu uma necessidade imperiosa de não se demorar nesta recordação, desejando já terminar com o passado e chegar ao presente, naquele quarto, naquela cama, para indagar de si, da sua situação e do seu futuro. Chegara doente e bem doente, disso se recordava e fora recolhido àquele quarto, o quarto do finado padre João da Mata, dando-se-lhe a cama que fora do padre João, uma marquesa de palhinha, envernizada de preto, que ele guardava para as noites frias, por causa do reumatismo. João Pimenta e o neto tinham ido buscar a marquesa ao paiol, onde se achava por inútil, e a Clarinha, entretanto, ia e vinha, arrumando o quarto, e, quando a marquesa chegou, pôs-se a fazer a cama, curvando-se e deitando-se às vezes sobre o leito para prender a fímbria dos lençóis de linho, dum luxo raro naquelas alturas.

E daí em diante, nos dias seguintes, sempre aquele vulto de mulher, indo e vindo pelo quarto, cuidadosa, falando meigamente, e com uma solicitude incômoda. E então a figura de João Pimenta, calado e estúpido, limitando-se a duas saudações por dia, a do Felisberto, falando sem parar, curioso, impertinente, fatigante com o seu latim das brenhas e as suas receitas da mãe Benta de Maués para todas as moléstias, e a da Clarinha, a mameluca, a irmã do Felisberto, com a sua saia de chita verde sobre a camisa, sem anáguas, e o seu cabeção rendado que, num descaro impudente, deixava ver a pele acetinada e clara, trotavam-lhe na cabeça, num vaivém contínuo de entradas e saídas, entremeadas de palavras ocas duma sensibilidade extrema, de cuidados excessivos que lhe deixavam, sobretudo as palavras e os cuidados da rapariga, uma impressão penosa. Aquela mameluca incomodava-o, irritava-lhe os nervos doentes, com o seu pisar firme de moça do campo, a voz doce e arrastada, os olhos lânguidos de crioula derretida. Não lhe parecia formosa, tanto quanto podia julgar olhando-a por baixo das pálpebras, porque jamais fitara de frente a uma mulher qualquer, ou pelo menos, a sua beleza, se beleza tinha, não o atraía, achava-a petulante demais, provocadora, quase impudente, com o seu arzinho ingênuo, visivelmente enganador, como devem ter todas as mulheres que o demônio excita a tentar os servos de Deus. Não sabia por que, mas antipatizara com ela, recebia-a agressivo e brutal, como se receasse um ataque à sua, aliás invencível, castidade. Entretanto, francamente, sem vaidade nem falsas modéstias, nada tinha a recear da neta de João Pimenta, da matutinha de saia de chita e cabeção rendado. Quem no Pará entrevira as mulheres do mundo, luxuosas e apetecidas, sem quebrar o voto sagrado que fizera, quem na vila de Silves se vira alvo das atenções de muitas senhoras brancas, de posição, formosas e dedicadas, sem ceder à tentação de lhes sorrir ao menos, não podia duvidar de si, quando se tratava duma simples mameluca, perdida nas brenhas do Guaranatuba. Não, não era isso. Não sentia, à vista da neta de João Pimenta, emoção alguma que pudesse sobressaltar a sua dignidade de padre severo e consciencioso, e demais tinha bastante confiança em si e na proteção de Nossa Senhora, para poder estar tranqüilo a esse respeito. Mas, positivamente, aquela rapariga incomodava-o. E como explicar isso? Ela era dedicada, serviçal, quase extremosa, cuidava-lhe da saúde como se aquele hóspede inesperado fosse seu irmão ou seu pai. Por que o aborrecia? Incongruências dos seus nervos abalados, efeito da moléstia que o abatera, tirando-lhe a compreensão exata das coisas, causando-lhe verdadeiras aberrações de sentimento. Mas tinha fé em Deus que isto passaria com o restabelecimento da saúde. Sentia-se melhor, quase bom, em breve partiria para o seu glorioso destino, e a figura da neta de João Pimenta se apagaria da sua lembrança, como a de tantas outras mulheres que entrevira na vida austera que dedicara a Deus.

Agora o que convinha, já que o sentimento da realidade lhe voltava, agora que estava senhor de todas as suas faculdades, e via claramente as coisas e os homens, era exigir dos tapuios do Sapucaia o cumprimento da promessa de o levarem ao Porto dos Mundurucus, ou, ao menos, ao Rosarinho, onde lhe parecia existir uma aldeia dirigida pelos padres da Companhia.

Sentia-se forte, confiante, com a idéia de cumprir a resolução heróica que tomara em Silves, realizando a missão aos mundurucus, depois de tantos acidentes e perigos, e na sua cabeça ainda fraca o entusiasmo exaltara-lhe a imaginação, evocando os mesmos sentimentos e idéias que o tinham trazido àquelas paragens longínquas.

O fio das suas idéias foi cortado pela aparição do Felisberto na abertura da porta:

- Agora está melhor?

Estava melhor, sim, estava quase bom. Apenas lhe restava um peso na cabeça e alguma debilidade, devida provavelmente à dieta. Com um dia de alimentação mais forte, estaria pronto para seguir viagem, e esperava que Felisberto não lhe faltaria à promessa de o mandar conduzir ao porto dos Mundurucus ou ao Rosarinho, conforme fosse mais cômodo.

Felisberto protestou. Era homem de palavra, incapaz de faltar ao que prometera. Sabia muito bem disso o defunto padre João da Mata, o santo padre que o criara e o educara para seu acólito, nas missas da Matriz de Maués, e mais a Clarinha, a afilhada do padre santo. Mas antes de se meter em nova viagem, era preciso que o senhor padre ficasse bom de todo, ficasse capaz de apanhar sol e chuva sem perigo de uma recaída. O senhor padre tivesse paciência, esperasse mais alguns dias, e acabasse de tomar o remédio da mãe Benta de Maués, que não se havia de arrepender. E então tratado pela Clarinha que a modo que tinha uma queda por S. Rev.ma!

O Felisberto ria alvarmente, encantado daquela descoberta que lhe viera de momento ao espírito, e repetia, gozando:

- A modo que ela tem a sua queda por S. Rev.ma!

Padre Antônio achou a idéia risível. Inspirar paixão a uma mameluca, esta só daquela besta do Felisberto!

Depois o neto de João Pimenta continuou com a loquacidade acostumada, abundando na conveniência de permanecer mais alguns dias no sítio, naquele paraíso, como lhe chamava o defunto padre santo, porque, ficasse S. Rev.ma sabendo, quem fizera aquele sítio, aquilo tudo, não fora o João Pimenta, mas o finado vigário de Maués, para gozar, como ele dizia, algumas semanas tranqüilo e repousado no seio dos seus mundurucus, como lhes chamava por caçoada. Nesse tempo, a mãe do Felisberto ainda vivia, uma cabocla de truz, palavra de honra! Era filha duma moça de Serpa que aquele velho João Pimenta furtara, no tempo em que era tuxaua, antes de ser convertido pelo padre João da Mata. Quem diria vendo aquele caboclo velho que fora tuxaua e furtara uma moça clara? Pois era o avô dele, Felisberto Pimenta da Mata, um criado de S. Rev.ma para o servir em tudo e por tudo. Padre João, que era um homem esquisito em Maués, gostava muito de ali estar, no furo da Sapucaia, passando os dias a pescar tucunarés de caniço e as noites a ensinar à Clarinha tudo quanto ele sabia. Por isso também a Clarinha lia, escrevia e contava como talvez nenhuma moça da vila o fizesse! Pois se o padrinho tinha tanto cuidado com ela, e eram mimos e mais mimos que até parecia uma princesa! E que cuidados com ela! Nem o avô João Pimenta podia dizer-lhe coisa alguma, e o Felisberto chuchara muito bons cachações só porque lhe tocara com um dedo. Safa, exclamava o rapaz, também não sabia para que aqueles luxos! Para uma mameluca, não valia a pena. Por isso a Clarinha não parecia o que era, e, a falar a verdade, nunca tivera inclinação alguma! Pois ali só apareciam tapuios e

de ano a ano algum regatão mais arrojado. Mas a afilhada do padre santo não fora feita para tapuios nem regatões!

Padre Antônio distraído, enfastiado, ouvia pela vigésima vez a história do padre João da Mata, mas quando Felisberto começou a falar da Clarinha, uma vaga curiosidade o agitava. A Clarinha fora educada pelo padrinho com tanto esmero e cuidado, não podia ser, como padre Antônio supunha, uma mameluca como as outras.

Vinha-lhe um desejo de vê-la melhor, sem a prevenção injustificável que nutria desde que a avistara pela primeira vez de pé sobre o tronco de palmeira; de examinar-lhe as feições, sondar-lhe com o olhar o coração para saber se, aquela ingenuidade aparente era real ou simulada Ao mesmo tempo a sua curiosidade revestia-se, com grande espanto seu, duma ligeira malícia, a que se não podia furtar ouvindo tantas vezes a história de padre João da Mata e da Benedita, a filha da moça furtada por João Pimenta em Serpa. Ao chegar a Silves, havia seis ou sete meses, ouvira falar da morte do vigário de Maués, de quem se diziam coisas realmente esquisitas, falando-se vagamente dum sítio, um verdadeiro paraíso, perdido nos sertões do Guaranatuba, onde o João da Mata escondia com intransigente ciúme uma formosa mameluca, que os regatões, que por acaso se haviam aventurado àquelas remotas regiões, entreviam apenas de longe, passando como uma sombra esquiva pelos vãos das portas interiores. Â existência dessa criatura, a quem a imaginação popular dava prodígios de formosura, se atribuíam as freqüentes ausências de padre João da Mata, que não parecia comprazer-se na convivência dos seus paroquianos, antes, demorava-se na vila somente o tempo indispensável para não faltar de todo às exigências do culto divino. Entretanto, um dia o velho tuxaua João Pimenta trouxera em uma rede o corpo duma mulher que dizia ser sua filha, e que declarara querer ser enterrada em sagrado. Apesar da enorme curiosidade que o fato despertara, ninguém se atrevera a ir espiar o rosto da morta, envolvido numa grande mantilha de linho branco, e nos assentos da paróquia, afirmara o sacristão Firmino, em íntima palestra, padre João da Mata inscrevera o nome de Benedita Pimenta, solteira, de vinte e dois anos de idade. Mas, coisa que desnorteara os curiosos habitantes da antiga aldeia tapuia, nem por esse fato deixara o reverendíssimo vigário de freqüentar o sítio da Sapucaia, onde com o correr dos anos, parecia demorar-se mais tempo do que em vida da famosa mameluca, até que um dia, fora no mês de fevereiro, o João Pimenta, desta vez acompanhado pelo seu neto Felisberto, viera trazer à vila o corpo de padre santo João da Mata, para ser enterrado em sagrado. Os habitantes de Maués e de Silves numa puderam saber o que prendia tanto padre João da Mata àquele sítio do remoto sertão da Sapucaia, pois não era crível que só a recordação da Benedita lhe tornasse agradável aquele retiro selvagem, e desse enigma que por tanto tempo desafiara a argúcia dos bisbilhoteiros do alto Amazonas, julgava padre Antônio possuir a solução na existência da neta de João Pimenta, de quem estava agora o Felisberto dizendo maravilhas. Mas então não podia ser uma simples mameluca como as outras essa criança que soubera cativar dum modo tão absoluto o velho padre João, fazendo-o esquecido dos sagrados deveres do seu cargo. Alguma coisa de extraordinário teria, que lhe passara desapercebido ou que a sua prevenção o impedira de ver. Não levaria muito tempo em descobrir a razão de ser daquele fato que começava a interessá-lo descomunalmente, chegando a causar-lhe sérias apreensões sobre a serenidade do seu espírito. Já o prestar benévolo ouvido às histórias do Felisberto, o relembrar as maledicências de Silves sobre o seu finado colega, era um pecado que estava cometendo, e de que se arrependia ao mesmo tempo, pesando-lhe como uma falta grave.

Aquele romance de amor sacrílego, de que não podia desviar a atenção, atraía-o poderosamente, posto que a consciência lhe remordesse o erro, advertindo-o da insânia que se ia pouco a pouco apoderando da sua mente, levando-o a um desregramento grave na sua austera vida de ministro duma religião de paz e castidade. Bem conhecia o erro, a que o forçava o persistente inimigo da sua alma, querendo arrastá-lo para o mal, que pressentia já, vago e indefinido; mas sentia ao mesmo tempo um prazer estranho, uma volúpia nova, na satisfação daquela curiosidade doentia, que o levara a ocupar-se de negócio tão indigno de si, da sua missão, e do caráter que a sua profissão lhe impunha. E enquanto o Felisberto falava interminavelmente, à beira da cama, com os olhos parados e o seu sorriso de pobre de espírito, padre Antônio de Morais pensava no atrativo que prendera padre João da Mata ao sítio da Sapucaia.