O missionário/VI
Saberá V. Rev.ma que já são seis horas.
- E Macário, de servilhas e em mangas de camisa, foi abrindo a porta da alcova à luz suave da manhã. Padre Antônio acordou do sono que o dominara por alta madrugada, depois de uma longa noite de vigília. Já seis horas! As janelas da sala, abertas de par em par, ofereciam franca passagem à brisa úmida repassada de aromas sutis de flores campestres. Da rua vinha um rumor vago de portas que se abriam e de vozes raras e espaçadas. Ao longe chiava um carro de bois, descendo para o pasto, sob o aguilhão do lenhador que fornecia os depósitos da Companhia do Amazonas. No quintal da Luísa Madeirense um galo cantava batendo com força as asas.
- Já seis horas! repetiu padre Antônio, puxando até o pescoço o lençol da cama, numa sensação de frio e sono. Passara mal a noite, e depois, que lhe importava a hora, pois que nada tinha a fazer naquele dia? O melhor era encostar as janelas e aprontar-lhe o café para as oito horas. Sentia-se cansado e moído, ia talvez cair doente, um grande torpor apoderava-se-lhe do corpo, tinha dores vagas, palpitações, um grande peso na cabeça, o melhor era descansar, já que com isso nada perdia o serviço da paróquia.
Macário insistiu. Eram seis horas dadas, e se os hereges maçons abandonavam a vila ainda havia almas cristãs que precisavam do ministério de S. Rev.ma. A Chica da Beira do Lago, aquela velhinha devota, andava mal de sezões e mandava pedir a S. Rev.ma que a fosse ouvir de confissão à sua casa, visto como a moléstia não lhe permitia vir à igreja. E V. Rev.ma devia fazer esse serviço já, a tempo de voltar para o almoço, evitando o sol ardente de junho.
- Um quarto de légua! murmurou padre Antônio, voltando-se para o lado da parede; um quarto de légua na ida, outro na volta, meia légua pelas lamas do caminho do lago!
E acrescentou, como para desculpar-se daquela lamentação que a preguiça lhe arrancara:
- A Chica nada tem que a impeça de vir à vila e a obrigue a confessar-se com tanta urgência. É uma alma simples, gosta de confessar-se todas as semanas, coitada!
E depois, com um largo bocejo, retalhado de cruzes sobre a boca:
- Aposto que padre José não se dava a estas maçadas!
Padre José era padre José, e S. Rev.ma é padre Antônio de Morais, redargüiu Macário com leve impaciência. Também o defunto vigário cantava e dançava lundus e S. Rev.ma não o fazia. Padre José mandava presentinhos às moças, passava os dias aos lagos, ao tempo das salgas, o dinheiro não lhe chegava, porque tinha às três e quatro por sua conta, era uma bandalheira! Ao passo que S. Rev.ma era conhecido como um sacerdote exemplar e o próprio Chico Fidêncio não o negava, posto tivesse o arrojo de dizer que aquilo era manha ou acanhamento de padre novo, que passaria com a idade. Um patife aquele Chico Fidêncio, uma pedra de escândalo para a população, ateu, desbocado, mal-dizente e amancebado!. Era o causador de todos os males da vila, o autor de todas as desgraças, o enredador-mor de todas as tramas e intrigas, aquele excomungado Chico Fidêncio! Por causa dele brigara o Valadão com o Bernardino Santana, a fogo e sangue. Ele instigara o Totônio a desobedecer ao pai, que o queria mandar para o Liceu, a teimar em casar-se com a sobrinha do Neves. O Manduquinha Barata e o Pedrinho Sousa estavam perdidos por culpa dele. Levantara a oposição ao confessionário, impelira o povo a fugir para os castanhais, desamparando a vila e fazendo ouvidos de mercador às prédicas de S. Rev.ma. Era um patife! Era pena, realmente, que um homem tão instruído fosse tão perverso, mas enfim em algumas coisas, forçoso era confessá-lo, o Chico Fidêncio tinha razão e as suas correspondências diziam a verdade, por exemplo, quando falava das bandalheiras do defunto padre José, que Deus houvesse.
- Enfim, terminou Macário, padre José está dando conta do que fez e a velha Chica esperando que V. Rev.ma a vá confessar. Levante-se V.Rev.ma, que o estou desconhecendo hoje, e faça a caridade que lhe pede a pobre da velha, para que morra em paz com Deus.
Padre Antônio, levantando-se de súbito, como se tivesse acabado de tomar uma resolução longamente meditada, fixou a vista no rosto do sacristão:
- Sabes que estou decidido a fazer uma missão ao porto dos Mundurucus?
- Nos mundurucus! exclamou Macário, atordoado com a inesperada revelação. Nos mundurucus! repetiu com pasmo. Mas saberá V. Rev.ma que nos mundurucus não há alma cristã?
Sabia-o perfeitamente, e fora por isso mesmo que formara aquela resolução. Desejava ir ao porto dos Mundurucus, converter os selvagens, trazê-los ao seio da religião católica, e ao mesmo tempo libertar o Amazonas dessa terrível praga de índios bravos que lhe entorpecia o progresso.
Macário não acreditava, pensava que S. Rev.ma estava brincando, queria caçoar com ele para o castigar de o ter acordado tão cedo por causa da velha Chica. Afinal, pensava, ir à casa da velha não era o mesmo que ir ao porto dos Mundurucus, ao centro da Mundurucânia. A Chica não comia gente, e os índios, ficasse S. Rev.ma sabendo, eram antropófagos, como dizia o professor Aníbal, pelavam-se por carne branca. S. Rev.ma não lhe levasse a mal a insistência com que lhe falava na pobre velha da beira do lago, uma cristã que não se podia comparar com aqueles inimigos de Deus que matam e esfolam uma criatura do Senhor por dá cá aquela palha.
- Maior o merecimento e maior o serviço, replicou padre Antônio, enfiando a batina que o sacristão lhe apresentava. E enquanto a abotoava de cima a baixo com gesto lento e grave, começou a falar com uma eloqüência cálida, depositando no seio do Macário os sentimentos que lhe transbordavam do coração e que por muito tempo guardava no íntimo do peito. Sentia uma grande necessidade de expansão, de abrir-se com alguém, de deixar sair os pensamentos recônditos, as idéias vagas, os motivos misteriosos que, fervilhando no cérebro num combate nervoso de todas as horas, impunham-lhe o proceder à primeira vista inexplicável e estranho que desnorteava o amigo. Disse então com toda a franqueza, como se conversasse com um irmão do seu espírito, que aquele era o sonho dourado de toda a sua vida de moço. Missionar, pregar o Evangelho e morrer às mãos dos índios, não podia haver nada mais glorioso para um verdadeiro ministro do altar. Sacrificar a vida ao ensino da religião do Crucificado, nada mais digno dum padre. Converter ao cristianismo algumas almas ignorantes, arrancar ao inferno algumas criaturas de Deus, lutar com o inimigo do gênero humano, vencê-lo pela vida ou pela morte, nada satisfaria melhor os instintos de sua alma ardente e apaixonada. Quando preferira uma vigararia do sertão ao curso das altas classes de S. Sulpício, quando desprezara o futuro brilhante que se lhe antolhava no doutoramento em Roma, nas honras do Cabido, no apreço e na consideração do mundo, pelo exercício das funções mais elevadas do clero diocesano, apanágio dos homens de talento que D. Antônio consagrava e preferia, fizera-o na convicção entusiástica das grandes coisas que poderia obrar, propagando a fé católica entre o gentio do Amazonas, sacrificasse embora a vida miserável a esse generoso empenho. Sim, ele, moço, robusto e são, como o Macário estava ali vendo, tendo diante de si um futuro repousado e próspero, não fazia caso algum da vida, estava pronto a dá-la em troca da salvação de algumas almas do gentio amazonense. Quando pela primeira vez pisara o solo de Silves, sabia que dali a poucas léguas existiam índios selvagens e ferozes, e que evangelizando-os expiaria os seus pecados conquistando fama imorredoura, que levaria o seu nome à remota posteridade, com os de Francisco Xavier e José de Anchieta. Até ali estivera calado e hesitante, consultando as forças, não querendo ceder ao arrastamento dum entusiasmo de mancebo que lhe podia ser fatal. Refletira longamente, pesara bem as dificuldades, os riscos da santa empresa que ambicionava realizar, mas agora estava decidido, nada o poderia demover do seu humanitário projeto. Iria levar aos mundurucus a palavra sagrada de Jesus, e Deus que lê no coração, Deus que conhece e experimenta as vocações lhe daria as forças necessárias a tão grandioso cometimento.
Macário estava assombrado. Nunca lhe passara pela cabeça a idéia de que um padre, um homem qualquer, pudesse conceber em seu perfeito juízo um projeto tão extravagante, mas a figura, a voz, o olhar de padre Antônio tinham tal cunho de convicção e de império, a sua bela fisionomia revelava um entusiasmo tão ardente e sincero, que o sacristão sentiu-se cheio de respeito e de pena por aquele desvio da razão, que atribuía aos desgostos ultimamente sofridos no paroquiato de Silves. Macário tinha vontade de o interromper para o consolar, para dizer-lhe que não fizesse caso daquilo, que com o tempo reconheceriam a injustiça, e outras coisas cordatas que lhe acudiam à imaginação. Mas o padre, de pé no limiar da alcova, com a mão esquerda no portal e a direita descaída ao longo da batina, numa atitude de resignação invencível, com o olhar erguido para a nesga de céu azul enquadrado pela janela que lhe ficava em frente, não dera tempo a interrupções, e continuava a falar em voz firme e mansa, de leve repassada de tristeza, como o lutador que se prepara para um combate heróico sentindo a nostalgia da vida que põe em risco; e dizia agora, provocando lágrimas, as lutas que teria de travar com o selvagem, expondo o peito desarmado e nu às flechas ervadas, combatendo com paciência evangélica os furores da ignorância, o ódio dos pajés, a vingança da raça oprimida e humilhada, vencendo pela palavra de caridade e de amor os espíritos rebeldes e rudes que senhoreavam o sertão; as privações que sofreria, sedes, fomes, tormentos desconhecidos, criados pela imaginação crudelíssima dos tuxauas; o abandono em que estaria, longe do mundo, privado de todo o socorro humano, a centenares de léguas da civilização e do cristianismo, único ser pensante entre brutos, única alma crente entre milhares de entes cegos pela ignorância e pela superstição, e tudo para morrer pregado a uma árvore, desconhecido, obscuro, sem que uma lágrima amiga lhe lamentasse a sorte, sem que a mão dum afeiçoado lhe fechasse os olhos, sem que a oração de lábios católicos derramasse o último bálsamo da fé sobre o corpo estirado e nu no solo da floresta virgem.
- o que mais me pesa! bradou Macário, sacudido por soluços violentos. Pensar que V. Rev.ma entrega-se sozinho a tão grandes perigos!
Padre Antônio pôs-lhe a mão ao ombro, cheio de confiança:
- Não, Macário, não realizarei sozinho tão gloriosa empresa. Pensei em você, Macário, para meu companheiro de jornada. Partilharemos a glória e os perigos da missão.
A compaixão que Macário estava sentindo desapareceu por encanto. As lágrimas, umas lágrimas tolas, secaram-se. O seu pasmo foi tão grande que ficou atordoado, e como se já se visse oferecido em pasto aos selvagens do Amazonas, pôs-se a exclamar repetidas vezes:
- Eu aos mundurucus, eu aos mundurucus!
E aterrado, sentindo fraquearem-lhe as pernas, saiu da sala quase às apalpadelas, e foi refugiar-se na cozinha.
Justamente a Luísa Madeirense, labutando no quintal, cantava em voz fresca e sonora:
Lá nas matas do sertão
encontrei certo gentio,
e com medo da taquara
logo lhe chamei meu tio.
Naquele dia padre Antônio de Morais não fora ouvir de confissão a velha Chica da Beira do Lago. Safra de casa, sem tomar refeição alguma, e como a Matriz lhe ficava em caminho, penetrara maquinalmente no templo. A igreja, toda caiada de branco, estava deserta e fresca. Os morcegos disputando entre si os vãos das telhas, chiavam batendo as asas, e as vespas cruzavam-se no ar, na faina de prover à subsistência da prole, zumbindo alegremente. O sol, entrando pelas janelas laterais, clareava os grandes panos de parede lisa, limpos das parasitas de outrora e curados das feridas que o tempo fizera no reboco; mas punha em evidência, a uma luz crua, as figuras grotescas de santos e demônios, que os quadros parietais ostentavam com uma abundância de cores vivas e de tintas espessas. Através do repintado dos madeiros e da caiação dos muros, a velhice prematura do edifício espiava o abandono da casa de Deus, como se pressentisse o relaxamento da fé entusiástica que a forçara a esconder-se aos olhares ingênuos do povo, cobrindo-se de camadas de tabatinga, oca e alvaiade. Naquela manhã de sol os retábulos grosseiros, as grades toscas, o confessionário repolido, o pavimento remendado com tijolos de fábrica e forma diferentes, os ornamentos do altar-mor, tinham um aspecto velho, gasto, de velhice disfarçada, de arrebiques inúteis. O púlpito parecia cansado de ter-se a pé, à espera do pregador ausente, manifestando o abandono em que o deixavam nas quebras e rupturas da crosta de óleo colorido com que lhe haviam vestido a nudez de velho cedro sujo. A pia batismal, esbeiçada e limosa, guardava semanas uma água grossa e turva, que ocasionava desastres sinistros de baratas afogadas e dramas obuscuros de lagartixas mortas. O assento do confessionário estava cheio de pó. Do teto pendiam já alguns longos filamentos indicando que as aranhas achavam-se a cômodo naquela grande casa e que a vassoura, outrora desapiedada, do terrível Macário, dormia agora escondida a um canto por trás do altar-mor. Mesmo à entrada da igreja um cão vadio e um cabrito vagabundo haviam profanado o asseio do ladrilho, depositando excrementos que pareciam da véspera. No altar do Senhor dos Passos, o santo mostrava-se mais velho e triste do que de costume; a amarelidão da face larga e chata exprimia um desejo ardente de livrar-se da cruz que embalde o Cirineu, teso e de má vontade, procurava sustentar com a mão espalmada e dura; e sobre o altar-mor a própria padroeira, imóvel no seu longo vestido azul-dourado, parecia ansiosa por tirar a coroa e largar o menino, a fim de descansar um bocado ao lado da serpente.
O vigário foi ajoelhar-se sobre os degraus do altar de Nossa Senhora, com o coração confrangido, sentindo-se penetrado por um remorso vago. Naquela manhã não dissera missa, e havia muito que se limitava à missa das nove horas, aos domingos, a única que atraía alguns ouvintes. Começou a rezar, mas a impressão de desânimo e abandono que o apanhara ao penetrar naquele templo mesquinho e sujo, o distraía, impedindo-o de concentrar o espírito na tarefa banal da prece decorada. Quando erguera os olhos para a imagem da padroeira, notara que o dourado malfeito começava a quebrar-se em diversos pontos, deixando a nu o pau de que se fizera a santa. Mais uma despesa ainda, pensara, avaliando o trabalho da nova encarnação, e desta vez não tinha o dinheiro do padrinho. A pintura do altar-mor estava estragada pelas moscas, a toalha de renda roída de ratos, o missal parecia um alfarrábio comido de traças, a prata dos castiçais fora-se devorada pelo uso ou pelo tempo. Quanto seria preciso para renovar tudo isso, para dar alguma decência à igreja? Era um nunca acabar. Fizera muitos esforços, renovara os paramentos, algumas alfaias e vasos sagrados, gastara nisso todo o seu dinheiro e o que lhe dera a pia generosidade do padrinho... de que servira? Seriam precisos ainda alguns contos de réis para que a Matriz de Silves oferecesse a aparência duma casa de Deus, dum edifício em que se praticava o culto divino. Fora talvez melhor levantar um novo templo, uma Matriz nova! Seria um edifício sólido, capaz de resistir ao tempo, e não a miserável barraca de tabatinga e pau-a-pique condecorada com o nome de Matriz de Silves. Teria a forma dum templo grego ou seria a miniatura duma basílica medieval, dessas soberbas construções de pedra, cuja contemplação arrebata a alma às alturas infinitas, mergulhando-a num sonho povoado de visões antecipadas das sublimidades do Empíreo. Poderia ainda buscar no movimento de renovação artística do século XV, o modelo inexpressivo e frio com que a decadência da fé religiosa parodiava a severa correção da forma greco-romana, no desespero de reproduzir o ideal do paganismo morto. Qualquer que fosse o estilo da futura igreja, colunatas gregas, relembrando a harmonia e a graça do politeísmo generoso e fecundo; ogivas góticas exprimindo as ansiedades da alma humana, sedenta dum ideal novo; flechas e agulhas agudíssimas, perfurando o céu para abrir uma entrada à fé do catolicismo ardente; ou zimbórios e abóbadas romanas, aliados às linhas puras, à fria elegância e à pobre correção dos artistas da Renascença, privados do sentimento religioso que inspira e realiza as grandes criações; tudo serviria contanto que o templo fosse grandioso e belo, provocasse a admiração dos passageiros, atestasse o alto conceito do ministro que o servia, os seus esforços, a sua vitória, e a sua poderosa iniciativa. Que importava que essa igreja magnífica fosse edificada à margem dum obscuro lago, num sertão quase desconhecido, num centro quase selvagem, se a beleza e a harmonia das formas atraíssem as vistas curiosas do estrangeiro, a crítica dos artistas e o julgamento dos competentes, vindos em chusma das outras províncias, dos países de além-mar, para admirar a obra gigantesca que a energia e o talento de padre Antônio de Morais alevantara do chão. E como se o pensamento de semelhante glória o dementasse, o padre, de joelhos sobre o primeiro degrau do altar-mor, com a cabeça erguida e os olhos fixos no teto carunchoso da igrejinha, julgava-se já dentro do novo templo. O telhado pouco a pouco ia-se elevando a grande altura, arredondando-se em abóbada imensa que avolumava o eco das vozes harmoniosas de órgãos e de cantores. A nave alargava-se sobre um pavimento de mármore preto, ornado de cruzes e de flores simbólicas, que os fiéis pisavam, como os santos passeiam o tapete florido do céu estendido sobre miríades de estrelas. Como plantas vigorosas, alimentadas pelo sol dos trópicos, os pés direitos, transformados em colunas agrupadas, atiravam-se para o alto a sustentar o peso formidável das arcadas em místico trifólio. Os retábulos toscos abriam-se em nichos povoados de estátuas imponentes, simbolizando na sua bem-aventurança celestial todas as crenças e todos os conhecimentos humanos. Os quadros parietais coloriam-se, cercavam-se de molduras ornamentadas com uma graça delicada, apresentavam cenas da Paixão e da vida dos santos em que a verdade artística combinava com os sentimentos inspiradores. A capela-mor crescia sob os arcobotantes góticos, bela, ornada de mármores rendilhados, suave, elegante e esvelta, realizando o ideal dum estilo novo em que o bom gosto florentino corrigisse as demasias apaixonadas da arte da Idade Média, aliasse, no supremo esforço do sentimento artístico, a fé, a ânsia, o misticismo romântico das catedrais levantadas por gerações de obreiros desconhecidos, à fina e correta elegância dos Médici; em que a mão poderosa de Miguel Ângelo e a maestria de Bramante retocassem os excessos de fantasia, os exageros de imaginação dos grandes construtores medievais. Uma combinação nova, uma arquitetura que exprimisse a perfeita relação entre o culto e o ser supremo, uma arte que fosse humana e divina, participando das duas naturezas de Cristo, Deus pela origem e pela onipotência, homem pelo sofrimento e pelo amor. E ele, sacerdote dum tal culto, ministro dum tal Deus, deslumbrado pelas inúmeras luzes dos grandes candelabros de prata e ouro que lhe pareciam iluminar as naves solenes, sufocado pelo incenso queimado aos pés do altar em turíbulos cinzelados por Benevenuto Celími, vendo a seus pés a multidão enorme, rica, elegante, ávida da palavra sagrada, a admirar o luxo caro da sobrepeliz de rendas finas, da capa-magna bordada a ouro, das vestes pontificais que ostentava garbosamente, coberto de púrpura, ouvia o canto divinal 'dos anjos do paraíso na fresca voz dos sopranos, acompanhada pela melodia grave do órgão. Uma sensação profunda de gozo espiritual perturbava-lhe o cérebro, arrancava-o à terra, levava-o pelas alturas, dando-lhe a prelibação da suprema felicidade, fruída ao som do hino imenso e festival com que tronos e dominações, arcanjos e serafins celebram a glória do Deus uno e trino na serena claridade dos céus.
O sol, subindo para o zênite, penetrou com mais força pelos óculos do oitão, e um raio ardente veio beliscar a nuca do padre ajoelhado, chamando-o à realidade das coisas. Achou-se de súbito na pobre Matriz de Silves, ajoelhado ante o altar de louro repintado, tendo à sua frente a imagem gasta da santa padroeira, da mãe de Deus que o olhava tristemente, humildemente quase, sem energia para esmagar a cabeça da serpente. Correu os olhos pela igreja toda, com pasmo, como se acordasse dum sonho delicioso e se encontrasse de repente na enfadonha realidade da vida. A cobertura do telhado ali estava, velha e remendada, as paredes caiadas, lisas, duma simplicidade sem graça, os quadros com figuras grotescas de santos e de almas penadas. Sonhara, sim, um sonho louco, de fantasia doente, para todo o sempre irrealizável. Como pudera conceber em Silves a edificação dum templo que fosse um monumento da fé católica e uma prova de poderoso gênio artístico? Jamais, naquele meio atrasado e já corrupto, naquela povoação dominada pela vulgaridade chata dum beatério sem sinceridade e sem elevação, jamais daquelas almas frias de tapuios indolentes, de provincianos vadios, poderia esperar um esforço convicto, um tentame qualquer que exprimisse força e vida, digna submissão à tirania imponente do belo, adoração entusiástica da grandeza imperecível de Deus.
Que sonho aquele! Que idéia disparatada e tola lhe ocupa por alguns momentos, como se um sopro de loucura lhe passado pela fronte no isolamento daquela triste Matriz Não. Era preciso banir para sempre essas fantasias que lhe tiravam a calma e aumentavam-lhe o desânimo do presente, fazei um gozo impossível, sem relação. alguma com a situação que o prendia à tarefa inglória e debilitante livremente escolhida. E devia resignar-se a isso? E agora, além de sentir-se devorado por glória e de renome, reconhecia, com horror, que a pobreza, a rusticidade da sua igreja enchiam-no de repugnância, contrariavam a tal ponto os seus hábitos de elegância, os seus gostos de luxo, o seu ideal artístico, que era como uma repulsão material que sentia por aquela mesquinha casa de oração, por aquele altar despido de ornatos, por aquelas imagens grotescas de santos martirizados pela imperícia do escultor. Mas a consciência dessa fraqueza, ante a evidente tentação demônio da vaidade, aterrava-o. Sentia-se violentamente arrastado para o pecado da soberba, e em vão queria lutar com as tendências do espírito, procurando recuperar a humildade do coração, que lhe ditara outrora a renúncia dos benefícios prometidos pela proteção do senhor bispo, pela estima dos mestres do Seminário. Em vão a procurava readquirir, essa bendita humildade, sobre o pavimento de velhos tijolos remendados, ao som do chiar sarcástico dos morcegos, em face daqueles miseráveis objetos do culto dum povo, que a fé já não alimentava. Teve de sair da igreja, sair da vila, procurar a fresca das matas, achar-se em pleno ar, no meio da vegetação luxuriante das margens do Sacará para recobrar a tranqüilidade de que precisava o ânimo atribulado.
Vagou muito tempo por entre árvores, seguindo a esmo as picadas dos lenhadores, sentindo-se bem, haurindo a brisa embalsamada da floresta.
Pacificava-o a idéia de que remiria todas as culpas com o sacrifício da vida oferecida na resolução, já agora inabalável de missionar na Mundurucânia. Ali não teria catedrais góticas, nem capelas florentinas, nem lavores artísticos, nem luxos de púrpura e ouro, nem concertos divinais de vozes de sopranos, imitando os angélicos na harmonia grave dos órgãos, nem prodígios do engenho humano embelezando Deus. Mas também, em vez do mesquinho esforço duma religiosidade moribunda, teria, para adorar o Criador do universo, o templo vivo, a Igreja única e verdadeira, a imensa catedral da natureza. A floresta virgem era a basílica enorme que tivera por arquiteto Deus. Tudo mais, templos do Egito, panteões gregos, mesquitas maometanas, pagodes hindus, catedrais da Idade Média, igrejas da Renascença, lúgubres conventos espanhóis, obras do esforço genial dum homem ou lentas construções duma geração de operários, materiais acumulados por um povo no decorrer de séculos, não passavam de imitações mesquinhas, de paródias mais ou menos felizes da arquitetura grandiosa da floresta virgem. Aí, sobre o solo tapetado de rica folhagem, árvores gigantescas investiam para o céu, originais soberbos das pobres colunas egípcias, transformadas pela arte fina Grécia, apresentando todo o desenvolvimento do progresso artístico da Hélade, desde a coluna dórica nos robustos dendezeiros até a coluna coríntia nas elegantes palmeiras-reais. As palmas entrançadas com as folhas formavam a abóbada sombria, as cúpulas, os zimbórios, os tetos de várias formas, sobrepostos às arquivoltas e às arquitraves dos galhos e dos ramos. O canto dos pássaros, as vozes dos animais, o murmúrio dos regatos, o ciciar da brisa, os rumores confusos da mata entoavam o hino da criação num conjunto inimitável de harmonias divinas. só o canto do rouxinol amazonense, no ramo do ingazeiro, valia Stradella executando Palestrina. A luz cambiante do crepúsculo, coada pelas franças do arvoredo, refletindo-se nas águas transparentes de majestosos rios, não invejava o brilho das decorações de púrpura e ouro, sobressaindo iluminadas pelos grandes candelabros, pelos lustres, por centenares de velas de cera perfumada. Tudo ali era grande, majestoso, incomparável, obra direta dum ser onipotente. Um povo jovem, numeroso e livre, enchia a nave imensa esperando a palavra da catequese que lhe devia ensinar a adoração do soberano autor de tantas maravilhas, e ele, padre Antônio de Morais, o pontífice máximo na sublime selvageria da floresta virgem, seria grande também, intemerato e forte. Com a eloqüência da sua palavra, com a santidade da sua fé, seria o traço de relação entre o Criador e a criatura, Anjo do Senhor, baixando à terra para anunciar o Verbo, homem elevado acima da humanidade para prestar serviço a Deus...
Não sem relutância terríveis, sem desânimos profundos, sem hesitações repetidas se resolvera Macário a aceitar a cumplicidade que lhe oferecera padre Antônio de Morais na perigosa tentativa de converter gentios. O primeiro assombro passara, mas ficara o terror da sinistra solidão das florestas, do encontro com índios bravos, cujo primeiro ímpeto é distender o arco e fazer voar a flecha homicida, sem a cortesia de prevenir com uma saudação a vítima descuidada. O mato para o sacristão nada tinha de atraente, era próprio de feras. Como deserto preferia o das ruas alinhadas com renques de casinhas brancas, o das praças vastas, onde pastam vacas de leite e mansos bois de carro, únicas feras de que se não arreceava: como índios contentava-se com os prudentes tapuios de camisa de riscado e calças de algodão, que remam silenciosamente à proa das montarias de pesca, e com as caboclas de saias de chita verde dançando o sairé à porta das igrejinhas sertanejas. À poesia da floresta preferia a placidez da vila, aos encantos da liberdade selvagem a prosa pacata à porta do coletor ou ao balcão do Costa e Silva, entre um golezinho de café perfumado e quente e um cigarro de Borba, maior e mais gostoso do que um charuto baiano, desses que o Dr. Natividade afetava, às tardes, em passeio pelas ruas da vila. Deixassem-no ficar onde estava, sem glórias nem renomes, sendo útil a Deus no zelo dedicado ao serviço da paróquia, e estava muito satisfeito. Mas S. Rev.ma exigia, era forçoso obedecer-lhe. Persistir na recusa seria perder para sempre a amizade do senhor vigário, e com ela ia-se o lugar, a tanto custo conservado, de sacristão de Silves. Padre Antônio andava intratável, possuído da idéia fixa da missão ao porto dos Mundurucus. Outro dia, viera da floresta, com a cabeça exposta ao sol do meio-dia, tendo nos olhos um brilho desusado. Já não parecia o mesmo. Falava com intimativa, não admitia réplicas nem observações, sempre pensativo, taciturno, abrindo a boca só para dizer que seria obrigado a procurar outro companheiro que melhor e com maior dedicação o servisse. Ora Macário, por mais que parafusasse, não descobria em Silves e em toda a redondeza, ocupação melhor do que a de sacristão da Matriz, depois da chegada de padre Antônio de Morais. Bem vestido, bem nutrido, muito considerado, dormindo à farta, fazendo bons ganchos em missas de defunto, em batizados e enterros, sentia-se melhor do que um cônego de prebenda inteira. Quem lhe restituiria todas as vantagens que a resistência à vontade do padre lhe faria perder? Longos anos de humilhação e sacrifício haviam-lhe enraizado no coração o amor do bem-estar que a sua situação representava, e agora que tão prontamente a ela se habituara é que a perderia? Já não lhe faltavam invejosos. O José do Lago sonhava com a substituição do Macário, o Valadão tinha um afilhado para empregar, se Macário insistisse em ficar, era certo perder para sempre o lugarzinho que tanto prezava, e adeus, então, sonhos de prosperidade e de ventura! Iria ser caixeiro do Costa e Silva ou do Mendes da Fonseca, varrer-lhes a loja, trazer-lhes o café, vender cachaça aos tapuios, aturar os desaforos dos fregueses, apanhar a sua descompostura de vez em quando sem dar um pio, ou então, iria fazer cigarros, única prenda que possuía, e se a indústria de cigarreiro de nada valesse, encheria de pernas as ruas de Silves, esfarrapado e faminto, sem consideração social. Nada! Não teria por vinte anos aturado as brutalidades de padre José, que Deus houvesse, não teria ouvido ásperas descomposturas - filho desta, filho daquela, ladrão, velhaco, não teria arrastado a sua humilhação pela vila durante a mocidade toda, por amor do emprego, para agora o deixar por si, só porque lhe falavam em uma missão à Mundurucânia. Lá que era difícil de roer a coisa, era, mas talvez que se estivesse assustando sem motivo. Era até muito provável que o senhor vigário não levasse a fim o seu absurdo projeto. A teima de padre Antônio não podia durar muito tempo. Aquilo passava. Era lá homem para sacrificar-se deveras, metendo-se entre índios bravos, a valer! A sua resolução era filha do despeito, logo que se avistasse cara a cara com as dificuldades de tão irrealizável empresa, recuaria, tão certo como três e dois serem cinco. Coisas de rapaz. Esta convicção grata e a confiança íntima e profunda na sua boa estrela, dando-lhe a certeza de que jamais se veria em conjuntura apertada de que não soubesse sair, decidiram Macário a mostrar boa cara à proposta do padre, muitas vezes e instantemente repetida.
Mas para ganhar tempo Macário, mostrando-se desejoso de o acompanhar, salientara as dificuldades e embaraços que se opunham a uma partida breve. Primeiro era preciso deixar a igreja entregue a uma pessoa de bastante zelo e probidade, e na opinião de Macário não havia naquela miserável vila um homem de quem se pudessem confiar as novas alfaias e os novos vasos sagrados, as riquezas da nave e da sacristia.
- O Cazuza Penteado? Um sujeito que furtara a tesoura com que a parteira lhe cortara o umbigo.
- O José do Lago, um bêbado que dava cabo de todo o vinho branco da sacristia.
A Matriz não podia ficar abandonada. Era preciso que uma pessoa a zelasse na ausência de Macário. Enquanto não vinha a licença impetrada por padre Antônio para deixar a paróquia, Macário procurava. Veio de Manaus a licença e Macário ainda não pudera descobrir uma pessoa de bastante zelo e probidade... Cada vez que o sacristão passava pela porta do Costa e Silva, ouvia sair de lá a voz zombeteira do Chico Fidêncio:
- Então, Macário, quando parte a missão?
A coisa transpirara. Toda a vila conhecia o projeto de padre Antônio de Morais, mas não acreditava na sua realização. Era uma idéia de moço inexperiente. Quando mesmo chegasse a partir de Silves, não chegaria a atravessar o Amazonas. Era lá homem para deixar os cômodos da vigararia e aventurar-se pelos sertões fora em busca de mundurucus! Demais' essa tarefa maçante de catequese pertencia de direito aos padres que nos vinham de fora, e que rareavam cada vez mais. Um padre brasileiro catequizando! Parecia uma pilhéria inventada pelo Chico Fidêncio para caçoar da religião de Cristo. Macário cansava-se em esforços vãos para convencer a população rarefeita de Silves, de que a coisa era verdadeira e de que padre Antônio pensava mesmo em atirar-se aos mundurucus selvagens. E, por sinal, que Macário também ia, sim, senhores, Macário de Miranda Vale ia missionar na Mundurucânia, e o seu nome viria nos jornais, S. Rev.ma lho prometera. Padre Antônio até já queria entregar a Matriz ao José do Lago, para poder sair mais depressa, mas o diabo é que não havia remeiros que se prestassem a conduzir S. Rev.ma ao porto dos Mundurucus. Coisa notável, mal O sacristão chegava-se a um tapuio:
- Patrício, você quer levar o senhor vigário ao porto dos Mundurucus?
- Uai! onde é isso?
- O porto dos Mundurucus é lá no fim do mundo, nem eu mesmo sei, explicava Macário. É lá uma coisa que se meteu na cabeça do senhor vigário. Quer ir por força à terra dos gentios que comem gente, para servir a Nosso Senhor Jesus Cristo!
O tapuio que isso ouvia, dava de andar para longe, silenciosa e apressadamente, receando que o obrigassem a pegar no remo. E Macário, mostrando muito desânimo, ia dizer ao vigário:
- Saberá V. Rev.ma que não é possível obter remeiros.
Canoa havia, uma bela igarité grande, com tolda de japá, fixa e cômoda, de sólida construção e marcha regular, mas remeiros não apareciam. Nem dinheiro nem promessas, nem a lembrança do serviço de Deus, nem mesmo o prestígio do senhor padre podiam decidir os tapuios timoratos e preguiçosos a tão longa e perigosa jornada. Padre Antônio impacientava-se, acusava a desídia e a má vontade do Macário, falava em irem os dois sozinhos numa montaria rio fora, em busca de melhor meio de condução. Macário invocava todos os santos e santas da corte do céu em abono da sua boa vontade e diligência. Mas não havia mesmo quem quisesse ir. Era falar-se no porto dos Mundurucus e os tapuios largavam a correr como desesperados.
Pela centésima vez, Macário, por ordem do vigário, passara pela Rua do Porto, procurando remeiros, até que parara casualmente, muito cansado, absorto nesses pensamentos, à porta do Costa e Silva. De repente uma voz sarcástica saiu da loja:
- Então, Macário, sai ou não sai a missão?
Era o Chico Fidêncio, sentado junto ao balcão, chupando um cigarro apagado.
Macário impaciente, compreendendo a necessidade de acabar com aquela dúbia situação em que o punham as insistências do padre e os sarcasmos do Chico Fidêncio, respondeu com muita dignidade:
- Saberá V S.a que não é da sua conta.
Era numa tarde de fins de julho. Um chuvisqueiro miúdo começava a cair, esbranquiçando a massa da floresta e a lombada longínqua da cordilheira. A areia das ruas assentara, convertendo-se numa pasta flácida em que os pés escorregavam. A vila quase deserta enchia-se da tristeza sombria das noites invernosas. Macário tinha ojeriza às umidades, não se davam com o seu gênio nem com o seu reumatismo. O melhor era dar por concluídas as diligências daquele dia, e recolher-se a quartéis.
Padre Antônio não estava em casa, não voltara ainda do passeio, com que costumava combater a dispepsia nascente. Mas, disse o preto velho, um moço bonito estava esperando na sala, para falar com o Sr. Macário. Um moço queria falar-lhe, quem seria? Provavelmente o afilhado do Valadão que vinha empenhar-se pela substituição do Macário, durante a missão à Mundurucânia... Que esperasse! Primeiro o Macário queria mudar as meias e beber um copito de vinho branco para afugentar um resfriamento. Não havia de sacrificar a sua saúde preciosa para ouvir as lengalengas do afilhado do Valadão!
Mas, enfim, mudada a roupa e bebido o vinhozinho do Filipe do Ver-o-peso, ocuparia o tempo até a volta de padre Antônio de Morais, ouvindo o pedido do candidato a sacristão interino. Tratá-lo-ia bem, mas o iria desde já prevenindo que os deveres do cargo eram muito sérios, e era preciso medir bem as forças, antes de aceitar a responsabilidade da posição solicitada. Não pensasse que ser sacristão de Silves, e ainda com um sacerdote como Antônio de Morais, fosse alguma sinecura! Devia desde já habituar-se à idéia da importância das funções de acólito e de zelador do culto, de mestre-sala e ordenador do serviço divino. Em primeiro lugar era preciso saber latim. Não poderia ajudar a missa em português, isto estava claro. A ele, Macário, custara-lhe muito o aprender o latim, não fora biscoito, ouvira muita descompostura do defunto padre José, que Deus houvesse, e levara mesmo algumas palmatoadas! Depois era preciso conhecer o serviço, saber quando devia pronunciar os latinórios, quando devia ajoelhar-se, erguer-se, carregar o missal do lado da Epístola para o lado do evangelho, trazer as galhetas, servir o vinho e a água, enfim estar senhor de todos os detalhes do santo sacrifício. É verdade que estando padre Antônio ausente não se diriam missas em Silves... mas podia haver algum enterro, e para acompanhá-lo precisava o sacristão conhecer o seu ofício. Havia ainda as ladainhas, que não seriam interrompidas durante a missão à Mundurucânia. E finalmente requeria-se para sacristão um homem honrado e inteligente, incapaz de se deixar tentar pelo ouro do cálice, pela alvura das rendas da sobrepeliz ou pelo aroma delicado do vinho branco, mas que também soubesse cuidar disso tudo, tendo-o sempre em boa conservação e asseio. O afilhado do Valadão seria o homem necessário? Eis um problema que Macário não poderia resolver senão depois de ouvi-lo, de sondá-lo bem, estudar-lhe a fisionomia, os modos e o vestuário. Em todo o caso já o fato do pretendente ter procurado falar-lhe o preveniu em seu favor. Outro fosse ele e ter-se-ia dirigido diretamente a S. Rev.ma, sem fazer caso do sacristão, como no tempo do defunto padre José, em que Macário não tinha voz ativa. O afilhado do Valadão devia ser um rapaz cheio de tino, se por si resolvera aquele passo de pedir ao santo em vez de pedir a Deus, ou então, e era o mais provável, o tenente Valadão, o subdelegado de polícia, assim o aconselhara, reconhecendo a incontestável influência de que gozava Macário. Sim, provavelmente preferiria o protegido do subdelegado ao José do Lago, que era uma lesma, mas queria antes de comprometer-se por uma promessa formal, expor-lhe com franqueza o modo por que entendia as funções dum acólito pontual e zeloso. Chovia ainda. Tinha tempo. Padre Antônio, provavelmente, surpreendido pela chuva, entrara em alguma casa, e esperava a estiagem para voltar ao presbitério. O pobre pretendente já esperava muito tempo.
Macário atravessou o corredor, abriu a porta da sala, e recuou espantado, vendo sentado numa cadeira, com o chapéu entre os joelhos, um moço de dezoito anos, pálido e franzino.
- Uai! é o senhor que quer substituir-me! exclamou o sacristão, cheio de surpresa.
E logo fino e atilado, não querendo ser vítima duma mistificação evidente, acrescentou com um sorriso:
- Já sei, é uma pilhéria do Chico Fidêncio! Aquele tratante não descansa! Mas desta vez teve graça! O Sr. Totônio Bernardino feito sacristão da Matriz!
O moço ergueu-se, acanhado e sério. Macário notou que tinha emagrecido e estava muito triste. Nos olhos brilhava-lhe um relâmpago.
- Não sei de que fala, disse, nada tenho com o Chico Fidêncio, e nem desejo ser sacristão da Matriz.
Ora essa, não queria ser sacristão, e que diabo queria ele?
- Venho fazer-lhe um pedido, murmurou o Totônio Bernardino, pondo os olhos no chão.
Um pedido! Pois não, estava às suas ordens, contanto que fosse para bem. Não se negara nunca ao que exigiam dele para o bem, era da sua natureza, não poderia reformar-se. O Sr. Totônio podia falar que Macário o estava ouvindo, pronto ao seu serviço. Não se trata do lugar de sacristão interino, de algum batizado, de algum Nosso-pai a levar? Ah! Já sabia, a coisa era um casamento!
E Macário, feliz por ter achado afinal a explicação do caso, acrescentou com malícia:
- Invejas do mano, pois não é?
Uma contração fechou o rosto expansivo do jovem. Um profundo suspiro levantou-lhe o peito.
- Não, Sr. Macário, não se trata disso. Mas já me explico. Padre Antônio vai em missão à Mundurucânia...
- Vamos, pois não! interrompeu Macário.
- Pois é isso, tornou o Totônio, sei que S. Rev.ma tem demorado a viagem por falta de remeiros...
- Ah! Já sei, o Sr. Totônio sabe de alguns tapuios que se prestam a remar até o porto dos Mundurucus? Pois olhe, admira-me muito isso. Tenho procurado tanto! Quando sabem que é para ir até às tabas de selvagens que comem gente, todos fogem. E o senhor sabe de gente que se preste a isso?!
- Sei. Estou pronto a remar na canoa de padre Antônio, e tenho um companheiro.
- O Sr. Totônio remando na canoa de padre Antônio!
E Macário, no auge do espanto, voltou-se para a porta, escolhendo saída. Não havia que ver. O Totônio enlouquecera, estava doido de pedras! Bem lhe parecera diferente do que era. Trazia a cabeleira mal penteada, a gravata mal atada, o fraque mal escovado. Estava muito pálido, com olheiras fundas, e no olhar tinha um brilho estranho, um fogo que abrasava. Pobre Totônio!
O moço, percebendo o efeito das suas palavras, tentou explicar-se. Era estranhável que ele, moço de boa família, tendo recebido uma educação, tendo cursado aulas do Liceu, viesse oferecer-se para remador da igarité de padre Antônio? Certamente que não buscava uma profissão, um meio de ganhar dinheiro. Era certo também que não procurava uma penitência de pecados mortais. Não. Nada disso. Também não era um ato de loucura, mas uma resolução fria e inabalável que livremente e no gozo inteiro das suas faculdades adotara.
- Mas como se explica? perguntou Macário, serenando o ânimo, e chegando-se para o simpático rapaz.
Ele, numa expansão, contou a desgraça da sua vida, sem ocultar coisa alguma, como se se confessasse. Desde a noite do baile do casamento do irmão, em que pela primeira vez depois de anos, vira a irmã da noiva, a adorável Milu, sentira que uma vida nova começara para ele. O seu coração abrira-se a sentimentos desconhecidos, um afeto forte o enchera, assenhoreando-se pouco a pouco, como numa embriaguez crescente, de todo o seu organismo. Quando o baile acabara, não havia para o Totônio Bernardino outra criatura no mundo senão a graciosa Emília, a rapariga de olhos pretos e boca perfumada. Que dizia? Não havia em todo o vasto universo senão o seu olhar travesso e o seu sorriso divino. Ela era o seu amor, a sua vida, o seu fim, a sua salvação. Amara-a doida e apaixonadamente, e desde logo esse amor dera-lhe a convicção profunda e inabalável de que não poderia viver sem ela. Não exagerava, não estava louco, não se tratava de criançada, como lhe haviam dito os amigos. Debalde o pai, o irmão e os amigos haviam tentado afastá-lo da rapariga, ridicularizando aquele namoro de criança, metendo à bulha a sua paixão ardente, censurando-a e punindo-a por fim. Tudo era inútil. Estaria privado de razão, seria um louco, mas amava, e esse amor era a sua vida. O pai quisera levá-lo para os castanhais em companhia do irmão e da cunhada, mas ele fugira de casa, e sozinho, embarcara numa pequena montaria de pesca, e seguira a galeota do Neves Barriga, em demanda do rio Urubus. Ali tivera a inefável ventura de achar-se muitas vezes a sós com o ídolo de sua alma, e ouvira a grata confissão de que correspondia ao seu amor. Imaginasse Macário se fora ou não feliz, e se essa doce intimidade de longos dias sob as laranjeiras em flor, devia ter aprofundado ainda mais o sentimento que os unia. Oh! era para a vida ou para a morte! Jurara, solenemente jurara à escolhida de seu coração um amor e uma fidelidade eternos, e ali, sem rebuço, falando a uma pessoa estranha que tinha o direito de duvidar da sua sinceridade, o Totônio Bernardino confirmava a santidade do seu juramento, e declarava que estava perdido, para todo o sempre perdido, se a sorte cruel o separasse da sua querida Milu.
O rapaz fez uma pausa, sufocado de emoção. Uma lágrima furtiva brilhou-lhe um instante nos olhos, mas ele enxugou-a disfarçadamente, e procurando dar firmeza à voz, continuou a narração dos seus tormentos de amor.
Tinham sido dias de inexprimível ventura os que gozara à sombra dos arvoredos à margem do pitoresco Urubus. A mãe de Emília acolhera benevolamente a aspiração do moço e com o seu sorriso bondoso e meigo o protegia, dando-lhe esperança. Entregue todo à adoração da formosa rapariga, Totônio não sentia correr o tempo. Entretanto os dias sucediam-se, as horas voavam. Uma tarde o Neves viera ao sítio da irmã e tivera com ela uma longa conferência, a sós, na varanda. Depois o Neves saíra carrancudo, e a irmã ficara abismada em pensamentos tristes, fora uma nuvem no céu dos jovens namorados. Passaram-se dias e a mãe de Emília contara, uma noite, à ceia, que o Bernardino Santana desaprovara muito o procedimento do filho, e ele e o Cazuza haviam escrito ao Neves, pedindo-lhe que acabasse com aquela criançada que podia ser perniciosa tanto a um como a outro. O Neves viera e quisera obter da irmã uma oposição formal ao enlace dos dois namorados... e a despedida de Totônio! A pobre senhora recusara, mas estava receosa. O Bernardino era terrível quando o contrariavam e o Neves, principalmente depois do casamento do Cazuza, fazia tudo quanto o Bernardino queria. Fora uma noite de maus sonhos aquela! No dia seguinte, sob uma grande mangueira à beira da água, Totônio e Emília haviam chorado muito, sentindo pela primeira vez a possibilidade duma desgraça. Totônio jurara que preferia a morte à separação, e ela, a formosa, a incomparável Milu prometera que ficaria solteira toda a vida, se lho não dessem por marido. Mas a irremediável desventura não vinha longe. Nessa mesma tarde, ao voltar para a casa, Totônio fora agarrado por quatro homens robustos, amarrado como um criminoso, atirado ao fundo duma canoa e trazido para Silves. O autor dessa inqualificável violência era sem dúvida o Neves Barriga com o ar pacato e a cara de carneiro manso. Aqui Totônio encontrara o pai irritado ao último ponto, falando em açoitá-lo, e declarando-lhe terminantemente que o Totônio para casar passaria por cima do seu cadáver, e que primeiro se arrasaria Silves do que se celebraria tal casamento. Já a esse respeito se entendera com o juiz de órfãos, o Dr. Natividade, que primeiro o recebera mal, mas sabendo que se tratava do Totônio e da Milu, cedera a tudo que o Bernardino quisera. Totônio pensara enlouquecer de dor. Que rápida e terrível mudança se dera na sua vida! Lá as laranjeiras em flor, a sombra espessa da mangueira, o canto mavioso das sabiás e dos titupururuís, e a figura esbelta e graciosa de Emília animando o quadro, dando vida a tudo. Aqui a estupidez da vila, o isolamento, a hostilidade, a má-vontade, o sarcasmo e o pai, severo e implacável, prometendo pancada e fechando desapiedadamente o futuro. O coração do Totônio não podia resistir. Demais jurara. A morte, a morte só podia extinguir aquele amor e por fim aos cruéis tormentos que o açoitavam...
- A morte na sua idade?! exclamou Macário, sentindo-se comovido.
- Morre-se em todas as idades, respondeu o Totônio Bernardino, com a voz embargada pelo pranto.
E depois dum repouso, continuou.
- Queria e quero morrer. A vida é-me insuportável. Jurei a Emília que preferia morrer a separar-me dela. Que posso contra o destino que nos separa, senão cumprir o meu juramento? Estou, pois, decidido a morrer, mas não queria ter uma morte inteiramente inútil como foi a minha curta vida. O meu desejo era morrer prestando um serviço, fazendo alguma coisa de bom, para deixar de mim alguma memória. Se ainda durasse a guerra do Paraguai, ir-me-ia alistar como voluntário, e daria o meu sangue pela integridade da minha pátria. Infelizmente. essa morte gloriosa está-me interdita. Que fazer! Hoje soube do grandioso projeto de padre Antônio de Morais, e disse comigo:
se não morrer pela pátria, morro pela religião.
- E aí está, terminou com um sorriso angélico, porque eu vim fazer-lhe o pedido de aceitar-me como remeiro.
Macário, comovido até ao fundo da alma, tirou o lenço de assoar para enxugar as lágrimas. Não atinava com o que dissesse ao rapaz para o dissuadir do seu louco projeto. Felizmente para o sacristão, ouviram-se passos no corredor, a porta abriu-se e a alta estatura de padre Antônio de Morais destacou-se da meia sombra da tarde.