O missionário/VII
Eram quatro horas da manhã. Espessa neblina erguia-se do rio, cobrindo as árvores da beira, onde despertavam à primeira claridade da aurora as barulhentas ciganas, enquanto a água corria mansamente e a meio adormecida, apenas agitada de vez em quando por algum tucunaré que sem ruído vinha à tona respirar a brisa da manhã. Padre Antônio de Morais, sentado sobre a tolda da igarité, via desaparecer pouco a pouco o casario branco da pitoresca Silves, reclinada à beira do lago Saracá entre verduras eternas. Por último sumiu-se a torre da Matriz. Havia meses que chegara a Silves, cheio de entusiasmo e de fé, dedicando-se ao trabalho de reforma de uma paróquia sertaneja, e já dali se partira, desiludido e triste, mas ardendo no fogo de um novo entusiasmo, porventura mais bem fundado. Mas não era a recordação do que passara em silves, nem tampouco a preocupação do fim da viagem começada, que naquele momento lhe enchia a alma de gratos sentimentos. Achava-se bem, gozava uma delícia, haurindo a pulmões cheios o ar vivificante da madrugada, embalsamado pelo agreste perfume das matas da beira do rio. Sentia-se renascer no meio da natureza que o cercara na infância, e ora lhe avivava a lembrança de um passado já longínquo, de que o separavam sete anos de estudos e de trabalhos, e mais do que isso, a profissão adotada e as ambições da sua alma poderosamente sacudida por duas correntes contrárias que o levavam, todavia, ao mesmo resultado.
Via-se em pleno rio, numa embarcação pequena, surpreendendo o sol no aparato da vestimenta matutina. Ouvia o ruído confuso da natureza mal desperta, e tinha ímpetos de tirar fora a batina, de tomar um grande banho purificador, de nadar atravessando o rio, de ir depois secar-se ao sol sobre algum cedro perdido, e de internar-se então no mato até perder-se no vasto sertão, onde passaria a vida a comer frutos silvestres e a vagabundear pelas campinas, numa orgia de ar e de liberdade.
Era assim na meninice, na fazenda natal do Igarapé-mirim, onde para fugir à presença tristonha e chorosa da mãe e às brutalidades do pai, refugiava-se no campo, nas matas, na solidão do rio, só, sem companheiro, face a face com a natureza. Desse viver ao mesmo tempo ardente e tranqüilo o fora arrancar a solicitude do padrinho, para o meter consigo na galeota de negócio e conduzi-lo ao Pará, obrigando-o a viver entre gente estranha, constrangendo-lhe a índole expansiva, sopitando o ardor do temperamento campônio para reformar as idéias e os sentimentos, adquirir nova concepção do mundo e da vida e formar um ideal novo de espiritualidade e meditação, contra o qual se rebelara embalde o sangue de Pedro de Morais que lhe corria nas veias.
Com que dor de coração se despedira da fazenda!
A mãe debulhada em lágrimas, envergonhada e tímida, transmitira-lhe no último beijo o vago terror das coisas novas com que se ia enfrentar. O pai, indiferente e grosseiro, insinuara-lhe o desprezo dos homens e a filosofia do gozo, acompanhando-o até a galeota com os olhos enxutos, os lábios sardônicos, a palavra cética e dura. A ama de leite, a boa mãe-preta que o criara e protegera, na fraqueza da mãe desmoralizada, contra os irmãos legítimos e naturais, dando-lhe o apoio da sua influência sobre a domesticidade da fazenda, abraçara-o ao embarcar, pondo-lhe ao pescoço um bentinho milagroso e dando-lhe conselhos para evitar os diversos males que por arte diabólica afligem a pobre humanidade.
Quando ficara só com o padrinho e os remadores na galeota de negócio, dera-lhe uma grande dor de perder o seu arco de caça, as suas belas flechas empenadas, o cavalo de campo, a corda de laçar bois, o belo chapéu de couro com que o haviam presenteado no seu último aniversário natalício. Que funda saudade daquela vida livre de campônio desocupado, enquanto a galeota singrava as águas ao som cadenciado dos remos! E depois, quando chegara ao Pará, ao cair da noite, deslumbrado pelos centenares de luzes da grande cidade ativa, quando pernoitara na casa do Filipe do Ver-o-peso, estranhando a cama, a linguagem, os hábitos todos, quando entrara afinal no Seminário, numa grande sala branca e nua, à hora do almoço, tropeçando no limiar com os seus sapatos grossos de Igarapé-mirim, e provocando o riso zombeteiro de algumas dezenas de rapazes famintos e hostis, a negra saudade da sua vida passada o acompanhava, fazendo-o alheio a tudo que o cercava. No correr dos tempos, na marcha gradativa do seu espírito, nas horas de desalento, quando a atenção cansada do agro labor dos estudos repousava na contemplação de um cantinho qualquer da natureza, entrevisto através das vidraças poeirentas do Seminário, a pungente saudade o torturava ainda e o perseguia sempre, no intervalo de projetos ambiciosos, no fim das meditações filosóficas e dos arroubos de entusiasmo místico que entrecortavam a sua existência, toda feita de lutas íntimas e de ansiedades dolorosas. E agora que soube os ardores da mocidade impetuosa passara a calma da reflexão e das conveniências, agora que a realidade desconsoladora e fria devera ter sopitado aquele amor invencível de um passado morto, e a idade, a posição, o hábito que vestia e o destino que a si mesmo traçara, deviam trazer-lhe o completo esquecimento das sensações da infância, voltavam as recordações de chofre, e os quadros da meninice, reaparecendo com todo o brilho e frescura dos tempos idos, de novo e com maior força ainda, evocavam idéias, sentimentos e sensações que em tropel confundiam-se no seu cérebro, e davam-lhe um apetite monstruoso de ar, de gozo, de liberdade sem peias, pondo-o numa espécie de demência, como se um perfume sutil o entontecesse...
O dia ia passando. O ruído cadenciado dos remos, durante horas a fio, embalava o sonho de padre Antônio de Morais. O sol do Amazonas punha cintilações de cobre polido na superfície do rio e aquecia a igarité, cuja tolda de palha dava estalidos secos ao leve balanço que o movimento lhe imprimia.
Macário acordou com a luz do sol a requeimar-lhe o rosto. Mal embarcado adormecera, reatando o sono interrompido, mas agora, tendo completado a sua conta, despertava bem disposto, e achando-se deitado sob a tolda da igarité, vendo a batina do vigário caindo da coberta, e pelas costas as camisas de riscado dos dois remeiros, não pode deixar de pensar com um sorriso de malícia no modo por que a sua diligência conseguira pôr em caminho de realização o sonho extravagante de padre Antônio de Morais.
Depois que o vigário havia recusado o oferecimento do Totônio Bernardino, Macário vira-se novamente entalado entre as pilhérias do Chico Fidêncio e as instâncias do sacerdote que falara em procurar um companheiro mais ativo do que o Macário e menos criança do que o Totônio Bernardino. Havia nas palavras de S. Rev.ma uma referência clara àquele bêbado do José do Lago, que ia visivelmente ganhando terreno. Felizmente Macário tivera uma concepção luminosa, em que punha à prova o seu tão estimado maquiavelismo, salvador das apuradas circunstâncias em que se via. O passo era realmente digno de um rapaz inteligente, de uma sagacidade rara. Tratava-se de satisfazer o senhor vigário, facilitando-lhe os meios de sair da vila, na intenção de dirigir-se ao porto dos Mundurucus, mas era preciso prever o caso, embora improvável, de perseverar padre Antônio naquela loucura de catequese, a qual, era coisa decidida, deveria cessar nos três primeiros dias de viagem,' quando S. Rev.ma se visse sem o belo cômodo da macia rede de linho, sem o pãozinho fresco pela manhã, barrado de alva manteiga inglesa, regado por um delicioso café com leite, feito à moda de padre José, nutriente e espesso. Padre Antônio não resistiria às saudades de tanta coisa boa, todavia era preciso estar de prevenção; S. Rev.ma era um homem diferente dos outros, tinha alguma coisa de esquisito e trazia ultimamente no olhar a fixidez absorvente de uma idéia.
O plano, em si, era duma simplicidade admirável, e consistia em ocultar aos remeiros o fim de S. Rev.ma, fazendo-lhes crer que se tratava duma viagem de recreio aos castanhais do Caruma. Era exatamente o contrário do que Macário fizera até então. De tal arte, tinha padre Antônio muitos dias de jornada para recuperar a calma perdida e, na dureza do lastro da tolda, na monotonia da viagem em canoa, rio abaixo rio acima por entre filas de aningais mirrados, encontraria o desejo da macia cama, dos bons passeios a pé nos pitorescos arrabaldes de Silves, tranqüilo e repousado como um verdadeiro pastor de aldeia. E se por inconcebível pertinácia o padre não descoroçoasse, na resistência assustada dos tapuios, invocando a boa fé dos contratos, veria a impossibilidade de levar a efeito a desmarcada loucura, voltariam todos, honrados e contentes, a gozar em paragens cristãs a suavidade da vida.
Num santo horror do pecado da mentira, Macário tivera escrúpulos de consciência na adoção deste engenhoso plano, pois consistia em enganar ao mesmo tempo o padre e os remeiros, e ele, homem de verdade e de consciência, fora obrigado a valer-se da máxima que o Chico Fidêncio atribuía ao clero católico em geral e aos jesuítas e lazaristas em particular - que o fim justifica os meios. De que se tratava? De calmar a excitação de padre Antônio por meio de uma diversão, de ocultar aos tapuios o fim duma viagem que, na opinião íntima e reservada de Macário, não se devia realizar. Não podia haver mais honestidade, nem mais inocente emprego daquele hábil maquiavelismo com que o dotara a natureza.
As circunstâncias tinham-no servido otimamente.
Dois rapazes de um arraial vizinho, no Urubus, alheios à intenção de converter selvagens alimentada por padre Antônio de Morais, haviam trazido à vila uma canoa de lenha; e Macário, numa das suas explorações pela Rua do Porto, vira-os, e fora logo apalavrá-los para o remo, dizendo que se tratava de ir à boca do Guaranatuba. Em seguida Macário fora levar a grata nova ao senhor vigário. Apalavrara dois rapazes do arraial, robustos e bem comportados, um de nome Pedro, o mais velho, e outro João, o mais magro. Eram caboclos legítimos, da tribo maués, ao que pareciam, mas muito boa gente. Estavam prontos a partir quando S. Rev.ma o desejasse, mas ele tomava a liberdade de recomendar a S. Rev.ma que não conversasse muito com os tapuios, e o melhor, para obedecerem mais facilmente, era não lhes falar na missão.
Padre Antônio soltara um grande suspiro de alívio, acreditando na intervenção da Divina Providência. Aquele fato era sinal iniludível da aquiescência do céu aos seus projetos. Macário sorrira então, e sorria agora com finura, sentindo a igarité deslizar sobre a superfície calma do rio, certo de que a viagem cessaria quando lhe aprouvesse, a ele Macário de Miranda Vale, proferir uma palavra...
Sentara-se e enfiara o olhar pela abertura da tolda. Dois renques de árvores dum verde-claro corriam aos lados da embarcação. A água cor de barro estendia-se numa toalha lisa. O sol dardejava raios de fogo, torrando o japá da tolda. A isto chamava padre Antônio de Morais a grande natureza virgem...
O rumor cadenciado dos remos durou o dia inteiro. À tarde descansaram num sítio de pescador, mas saíram logo depois da meia-noite, pela impaciência em que estava o senhor vigário de deixar quanto antes o Paraná-mirim e de chegar às águas volumosas do Amazonas.
Macário não gostara da lembrança de sair à meia-noite, já por duas vezes seguidas interrompia o sono da madrugada, e a dormida sobre a tolda do igarité não era tão agradável como na casinha do pescador, rústica e pobre, mas que tinha os seus encantos por uma vez.
Não fossem lá pensar que Macário era inimigo da rusticidade campestre, uma vez na vida! Quando amanhecera, já na corrente principal do grande rio, apertado pelas altas ribanceiras que o impedem de invadir todas as terras, padre Antônio gritara aos rapazes que remassem, porque o céu ameaçava tempestade. Macário olhara para o céu. Uma nuvem negra vinha vindo do sul, e com grande velocidade crescia para todos os pontos, alastrando como um borrão de tinta. A perspectiva não era das mais risonhas. Às duas horas da tarde, quando mais intenso era o calor, desencadeou-se a borrasca, mas, por felicidade, já se achavam da outra banda. Como a chuva fora muita, houvera idéia de procurar um abrigo. Não havia ali sítio algum, mas à beira do rio, a meio escondida entre as árvores, uma maloca abandonada erguia-se sobre quatro paus roliços e toscos. Ali desembarcaram. Padre Antônio recebera alegremente o contratempo, como uma provação mesquinha em comparação com o que esperava sofrer na sua excursão evangelizadora. Os canoeiros pareciam indiferentes, aproveitavam a folga obrigada do resto do dia e da noite, sob o reles abrigo da maloca, pacatamente acocorados ao pé do lume improvisado com ramos secos, bebendo chibé e fumando. Macário não estava contente. Não, não estava. Deitado no chão úmido da palhoça, ouvindo a chuva cair torrencialmente durante a tarde e a noite, pensava que se aquelas bátegas de água estivessem lavando as telhas do presbitério de Silves, e ele, Macário, atravessado na boa rede branca, que herdara do defunto vigário, uma doce enfiada de sonhos, provocados pela vizinhança da Luísa Madeirense, teria povoado agradavelmente o sono repousado.
A viagem continuara por três longos dias, depois de terem, à boca do Ramos, encontrado um regatão de nome José de Vasconcelos, que lhes ensinara o caminho para chegar ao grande rio Abacaxis, enfiando pelo extenso e piscoso furo de Uraná. O descontentamento do Macário crescia, com a diminuição constante de víveres que lhe punha em risco a reputação de previdente e arranjado. Faltava principalmente a farinha porque o malditos tapuios não perdiam ocasião de esvaziar grandes cuias de chibé, fazendo consistir a sua alimentação quase exclusivamente nessa mistura refrigerante de farinha com água de que o sacristão também gostava - principalmente com açúcar - mas se privava estoicamente, pensando no tempo a gastar na volta. Não se renderam os rapazes às razões com que o vigário lhes recomendava não abusassem do chibé - mas como o sacristão fosse cautelosamente pondo a farinha a bom recado, começaram a espreguiçar-se, a fazer pausas longas, e a olhar atentamente para o céu, na esperança de nova tempestade que lhes proporcionasse o apetecido descanso ao abrigo de alguma das malocas da beirada.
Seria talvez tempo de proferir a palavra eficaz que devia determinar a volta da igarité às margens pacatas do lago Saracá? Macário hesitava, receando o desapontamento de padre Antônio de Morais, embebido na contemplação ardente e entusiástica daquelas árvores sem frutos, daqueles cipós intrincados, daquela massa de água intérmina e monótona. O vigário não falava, quase não se movia, passando a maior parte do dia sentado sobre a coberta da tolda, expondo-se ao sol tórrido do Amazonas, com risco de alguma febre. Comia muito pouco, ao contrário do que lhe sucedia de costume. Seria fastio do pobre pirarucu e da carne salgada do farnel, ou, na contemplação da natureza virgem, esquecera as necessidades corpóreas! Havia na sua fisionomia uma resolução tal que Macário sentia-se sem coragem de proferir a palavra fatídica que o devia arrancar àquele sonho perigoso. Que sucederia quando o padre se visse impossibilitado de prosseguir na empresa? Padre Antônio era um homem delicado, cortês, manso, falando baixinho e doce, mas desde que se lhe metera nos cascos a idéia de converter selvagens parecia transformado. Um receio vago apoderava-se do coração de Macário, obrigando-o a contemporizar, a adiar a volta. Entretanto a brincadeira já se ia mudando em maçada. Quatro noites contara ele pelos dedos, e cinco dias já se iam passando, que se achavam ali no duro estrado daquela igarité, sentindo as pernas entorpecidas pela falta de exercício, e o estômago a acusar as saudades da carne verde e do pão fresco. Os víveres escasseavam, teriam de ver-se em breve reduzidos a duras privações, muito fora de propósito naquela viagem que ele imaginara toda de passeio e de prazer. Era tempo de proferir a grande palavra, arrostando com a zanga de padre Antônio de Morais.
Mas como fazê-lo? Nada mais simples. Na primeira pausa que os remeiros fizessem para descansar, Macário disfarçado e sagaz chegar-se-ia a eles, e com o modo mais natural deste mundo, diria animando-os: - Vamos, rapazes, remem! Pouco nos falta para chegarmos ao porto dos Mundurucus. E devemos lá chegar quanto antes. Quem sabe se algum cristão não está lá à nossa espera para o salvarmos de ser comido pelos gentios? O efeito seria infalível. Os tapuios, irados, pediriam satisfações, e então Macário, complacente, explicaria: - Não se assustem. Vamos ao porto dos Mundurucus, mas indo o senhor vigário conosco não há perigo algum. Se os índios pegassem a qualquer de vocês desgarrado, comiam-no com certeza assadinho de espeto, está claro. Mas em companhia do senhor padre, isso não, não há perigo. S. Rev.ma vai mandado por Deus Nosso Senhor e por Nossa Senhora do Carmo converter os mundurucus ao cristianismo. É certo, portanto, que os mundurucus não o hão-de querer matar! Então o Pedro e o João pegariam os remos e virariam de bordo, proa para baixo, apesar de todas as instâncias de padre Antônio de Morais. Toda a dificuldade estava, apenas, em sofrer as conseqüências prováveis do desespero de S. Rev.ma! Macário hesitava, e enquanto isso, a canoa continuava, impelida pelos remos. À proa da igarité o grande rio Abacaxis corria para o sul, a perder de vista, fechando na espessura das altas florestas da sua margem a boca do Uraná. Na vastidão do rio, nenhuma canoa, nenhum sinal de vida aparecia, e a espessura da floresta ocultava a solidão ignota do deserto amazonense. Começava a selvageria ali. A impressão que padre Antônio recebera, absorvia-o no pensamento religioso da missão. Acudia-lhe a idéia de encontrarem breve os ferozes munducurs.
A imaginação exaltava-se. Já cuidava em dirigir a palavra aos índios, chamando-os ao seio de Cristo, persuadindo-os a abandonarem a vida errante de guerras e roubos para se entregarem ao doce jugo da civilização brasileira. Previa-os relutantes, ébrios de ódio, ardentes de vingança, agarrando o missionário, amarrando-o a uma árvore, crivando-o de setas como a outro S. Sebastião. E aquele martírio prelibado entusiasmava-o, achando-se grande e só na vasta amplidão do deserto. Aquele, sim, era um ideal digno de padre Antônio de Morais! Aquele o templo para as suas orações, aquele o teatro para os seus merecimentos, aquela a preocupação para o seu espírito religioso e austero. Uma ambição desmarcada enchia-lhe o cérebro e o perturbava. Mártir de Cristo, o seu nome, até ali obscuro, ressoaria pelo mundo, levando os ecos às gerações da posteridade. Seria o Francisco Xavier das florestas amazônicas, o Apóstolo das Índias Ocidentais, e um dia o Hagiológio romano contaria outro Santo Antônio, que não fora vítima resignada das tiranias de Ercelino.
De súbito a igarité parou.
- Que é isto, patrícios? perguntou.. padre Antônio, descendo da tolda e aproximando-se dos remeiros. Por que deixaram de remar?
- Mundurucu, responderam ao mesmo tempo, o João e o Pedro, apontando a esteira do Abacaxis, à proa, unindo-se ao céu azul.
- Que estão dizendo, exclamou Macário, sem poder endireitar as pernas.
Padre Antônio olhou sofregamente para todos os lados, esperando ver realizar-se naquele momento o seu sonho de martírio. Não viu mais do que as duas margens do rio, prolongando renques de árvores até acabarem numa fita negra. A igarité uma vez cessado o movimento impulsor, descambava, cedendo à força da correnteza. Toda a vastidão do rio respirava o mais absoluto sossego.
- Onde estão os mundurucus? perguntou Macário, com dolorosa ansiedade.
Pedro deu uma gargalhada e explicou o caso. Não havia ainda mundurucus, mas dobrando uma ponta do Abacaxis, que já se avistava ao longe, entrava-se no Guaranatuba, e ia-se direito às paragens infestadas por índios bravos. Ora João e Pedro não queriam continuar a viagem. Preferiam voltar para o Amazonas, não estavam para ser flechados como tartarugas. Uma gargalhada de João fez ressaltar a tolice de se exporem ao risco que indicara a comparação achada pelo companheiro.
- João e Pedro, continuava este com loquacidade desusada, são maués, cristãos, graças a Deus, mas ainda maués. A tribo de maués desde que o mundo é mundo e o mar cercou as terras, vive em guerra com os mundurucus. Maué que visse mundurucus quebrava logo o cachimbo e não comia mais farinha. João e Pedro ainda queriam comer farinha e fumar tabaco.
Macário triunfava. O seu plano surtira bom efeito, e, admirável resultado do seu engenhoso maquiavelismo! nem fora preciso proferir a palavra! Agora contra a relutância invencível daqueles tapuios teimosos e prudentes, quebrar-se-ia a vontade do senhor vigário. Mas para não descobrir ao padre o expediente o sacristão começou a blaterar contra a inconstância dessa súcia de caboclos vadios e medrosos cuja vida se resume em comer e dormir, e cujo egoísmo preguiçoso põe em apuros os brancos confiantes.
- Ora que tinha, terminou Macário, que fôssemos todos às tabas mundurucuas, embora arriscássemos a vida? É verdade que podíamos ser comidos, mas seria no serviço de Deus Nosso Senhor!
Padre Antônio, desesperado, tentou vencer a resistência de João e de Pedro com rogos, ameaças e promessas. Foram inabaláveis. Somente pôde S. Rev.ma conseguir que, mudando de rumo, remassem até o próximo lago de Canumã, onde poderiam encontrar algum sítio de gente civilizada.
- Ara vamos lá, senhor padre, disse o Pedro fazendo valer a condescendência.
E começaram a remar molemente. Ao cair da noite acharam-se à boca do lago, no porto dum pequeno sítio de pescador, sentinela perdida da civilização naqueles ermos.
Padre Antônio desembarcara com o Macário, a fim de ver se acharia por ali dois rapazes que quisessem substituir o João e o Pedro na condução da igarité ao porto dos Mundurucus. Padre Antônio entrou na casinha de palha, barrada de preto, situada a meia encosta duma ribanceira suave.
Uma tapuia, ainda moça, vestida com uma simples. saia de chita pirarucu, acocorada nos calcanhares, atiçava fogo a uma panela de peixe, e duas crianças nuas, de duras melenas negras caídas sobre os olhos, rojavam-se pelo chão úmido da casa, brincando com três cachorros magros, que se quiseram lançar sobre os visitantes, apenas os avistaram.
- Tá quieto, Jaguar, sossega, Pretinho, tá quieto, Paqueiro, disse a mulher, ameaçando os cães com uma colher de pau.
As crianças cessaram de brincar, pasmando para os dois desconhecidos que tão de improviso as perturbavam. Padre Antônio com a mão direita arredondou no ar o sinal da cruz:
- A paz do Senhor seja convosco, irmã.
- Amen, dico vobis, acudiu Macário com gostosa reminiscência.
A tapuia rojou-se aos pés do padre, balbuciante e trêmula, e veio beijar-lhe a fímbria da batina. Os pequenos, acocorados no chão, olhavam, espantados. Os cães cercavam o sacristão, cheirando-o desconfiados.
Padre Antônio expôs então o motivo da visita. Mas a tapuia o desenganou logo, muito tímida, pedindo mil desculpas. Não era culpa dela! A não ser o marido, o seu Guilherme que estava ausente e só voltaria na outra semana, ninguém por aquela redondeza se atreveria a adiantar-se pelo Abacaxis acima, e menos pelo Canumã, que devia ser agora o caminho preferido, por ficar mais perto, desde que a igarité, em vez de navegar direito pelo Abacaxis, subira até o lago do Canumã. Seu Guilherme fora à salga no furo de Uraná, e ela, a Teresa, ali ficara com os dois filhinhos, sem medo nenhum, já acostumada, porque sabia que os tapuios bravos nunca chegariam à boca do lago, e quando chegassem não lhe fariam mal algum, porque o seu Guilherme era amigo deles, fornecia-lhes aguardente e tabaco a troco de castanhas e de guaraná. O marido conhecia muito bem o caminho do porto dos Mundurucus, e poderia levar o senhor padre até lá, se não estivesse agora na salga do pirarucu.
Padre Antônio agradeceu a boa vontade da Teresa, e voltou a entender-se com o João e o Pedro. Procurou convencê-los a continuar a viagem, dizendo-lhes que não lhes sucederia mal algum. Ele, padre Antônio, ia como missionário a chamar os índios para o grêmio do cristianismo. Ia pregar-lhes a verdadeira religião e o João e o Pedro, associando-se a esta nobre empresa, ligariam para sempre o seu nome à gloriosa catequese dos mundurucus, prestando um grande serviço a Deus Nosso Senhor, que morreu na cruz para nos salvar, a nós todos, brancos e tapuios, das garras do demônio.
Macário seguira os passos de S. Rev.ma e muito resignado, juntou as suas instâncias às exortações de padre Antônio de Morais. Provavelmente morreriam todos naquela santa empresa, disse ele, antes que a palavra de paz e amor que S. Rev.ma levava pudesse chegar aos ouvidos dos mundurucus, porque as flechas andavam mais depressa do que as vozes. Mas uma tal morte seria muito meritória, faria do João e do Pedro santos da Igreja, S. João Maué, S. Pedro do Urubus, tais como os da Matriz de Silves. Demais se morressem iriam para o céu em companhia de S. Rev.ma e dele, Macário de Miranda Vale, que tinha tanto amor à própria pele como qualquer outro.
- Muito bem, Macário, disse padre Antônio, satisfeito e admirado. Nunca esquecerei os teus bons serviços.
- Saberá V. Rev.ma que ainda não fiz nada.
E Macário continuou a apertar com os maués. E como se lhe ocorresse de súbito um argumento de peso, foi à tolda, muniu-se de uma boa ração de fumo e aguardente e ofereceu-a aos endurecidos rapazes.
O João e o Pedro, com lágrimas nos olhos, prometeram continuar a viagem na seguinte madrugada, com a condição, porém, de que se lhes daria licença de voltar logo que avistassem o aldeamento.
O Padre e o sacristão fariam o resto do caminho por terra.
Pela primeira vez naquela viagem padre Antônio conseguira conciliar o sono. Estava prestes a realizar o seu grandioso projeto. Estava contente consigo mesmo. A melancolia desaparecera como por encanto, não mais as tristes idéias de aniquilamento e morte lhe ensombravam a imaginação, não mais estremecia de terror pensando na vida eterna. A fadiga da viagem, a novidade macia da rede e a idéia de estar livre das mesquinhas ocupações da sua modesta vigararia, causavam-lhe uma satisfação íntima, uma alegria plácida que o convidavam a um sono tranqüilo.
Quando acordou os primeiros raios do sol douravam os ramos de pindoba nova que cobriam a casa, e enchiam o negro quarto de uma claridade tênue que mal anunciava o dia. A fresca da madrugada induzia a continuar o sono interrompido por força do hábito matinal do Seminário, e as umidades da noite não absorvidas ainda, prendiam o corpo à rede por uma sensação de agradável frio.
Mas dormira muito. Um projeto elevado e nobre engastara-se no seu cérebro, e não dava tréguas à indolência. Não podia ficar entregue a repouso sonolento quem pretendia o martírio na catequese de selvagens bravios.
Sentia o peito dilatar-se a cada pensamento elevado, o coração tinha sobressaltos entusiásticos que não permitiam descanso aos nervos excitados. O movimento e a ação tornavamse necessários como diversão à atividade desordenada do espírito, o alvoroço interior tinha de traduzir-se forçosamente na agitação externa. Mal percebeu que raiava o dia, saltou fora da rede, e foi acordar Macário que roncava todo envolvido nas varandas da maqueira.
Abrindo a porta do quarto, que dava para o terreiro, entrou por ela o dia, um esplêndido dia de agosto, cheio de vozes de pássaros na floresta e de ruído de peixes no rio. O sol parecia sair de um banho voluptuoso com os raios brilhantes mitigados pelas umidades da atmosfera, impregnada de vapores aquosos que surgiam do Canumã. As árvores, o capinzal, o terreiro estavam cobertos de abundante orvalho. As árvores da beirada recendiam. A natureza amazônica revivia com mais pujança aos beijos do sol bem-amado.
Padre Antônio exaltado por um sentimento religioso ante o espetáculo daquela manhã, dirigiu-se ao porto a chamar os camaradas, que deviam ter pernoitado na canoa. Na superfície calma e lisa do lago, na esteira sombria do furo do Uraná, abrigado da luz matutina pelas árvores da beira, nenhuma embarcação se divisava. O porto estava deserto. O vigário e o sacristão, numa terrível ansiedade, correram pela margem, chamando em altas vozes os remeiros pelos nomes, mas somente o eco lhes respondia, o eco da outra banda, entrecortado pela gargalhada zombeteira da maritaca.
A situação era clara como o dia que se levantava por entre os aningais da vargem.
Os tapuios haviam fugido na igarité de padre Antônio, levando-lhe a roupa, as previsões, tudo.
Passados os primeiros assomos de indignação e o abalo da surpresa, o sacristão a custo continha 'a alegria, apesar da perda da roupa e de um belo chicote de tabaco de Irituia, furtado pelos camaradas. O João e o Pedro teriam sido perfeitos e mereceriam todos os aplausos se tivessem esquecido à beira da água a roupa e o tabaco. Mas, em todo o caso, que valia um tal prejuízo em comparação com o malogro da insensata tentativa do senhor vigário? Logo que voltasse a Silves iria ao tenente Valadão, queixar-se do furto, e obteria a reparação do agravo, apesar da moleza habitual do subdelegado. Macário era esperto e havia de descobrir o paradeiro dos ladrões, ainda que tivesse de recorrer à Chica da Beira do Lago para fazer a sorte do balaio. Descobriria tudo porque os maués eram uns pacovas sem habilidade alguma, capazes de ir oferecer a igarité ao próprio Valadão. Então Macário vestiria a sua roupa e fumaria o seu tabaquinho cheiroso do Tapajós muito a salvo dos tais mundurucus, gente da sua especial ojeriza, se gente se podia chamar. Isto de missões e catequeses não fora feito para um homem pacato e temente a Deus, que nada mais queria do que levar a sua vida descansada. Metera-se a acompanhar a V. Rev.ma naquela inaudita excursão pastoral, pelo receio de perder com a recusa o emprego rendoso e cômodo. Mas desde que a Providência arranjara tudo do melhor modo, com um macavelismo invejável, salvando o amor-próprio do padre e livrando o sacristão de ser comido por selvagens, o que na verdade era pior do que perder dois ternos de riscadinho e um chicote de tabaco, Macário devia, como bom cristão, curvar-se ao decreto divino e resignar-se à modesta ventura de não vir a figurar no calendário romano. Não devia imitar o desespero de padre Antônio de Morais, que cismava encostado a uma árvore do porto, com o olhar embebido na superfície do lago, procurando ali a solução de um problema insolúvel. Para Macário estava claro. Não havia outra solução senão voltar para Silves. Para cortejar a dor do senhor vigário, como moço bem-criado, mostrou-se contrariado com o resultado daquela infeliz viagem. Tomou um ar de resignado desgosto e um tom de irremediável pesar:
- Então, senhor padre vigário, não há remédio senão voltar para a vila?
- Não, nunca! exclamou padre Antônio, como se acabasse de tomar uma resolução enérgica.
E vendo o efeito da negativa no rosto de Macário, desculpou-se:
- E como voltar sem canoa?
- E como continuar a viagem sem canoa? perguntou o sacristão meio desanimado.
- Deus Nosso Senhor providenciará, sentenciou padre Antônio, com muita confiança.
E acrescentou falando muito tempo e desabafando a contrariedade sofrida no incidente, que estava resolvido àquela história de catequese, e a levaria a efeito, custasse o que custasse. Não perderia cinco dias de viagem. Que diriam na vila se o vissem voltar da foz do Canumã sem ter avistado um só mundurucu? Pensariam que inventara a história da fuga dos canoeiros e o cachorro do Chico Fidêncio divertir-se-ia com o episódio no Democrata de Manaus, fazendo-o passar por um charlatão religioso. Não era homem que prometesse fazer uma coisa e a não fizesse, principalmente tratando-se de coisa tão santa como a conversão de selvagens ao cristianismo e à civilização, a ponto de o senhor bispo pretender ocupar-se dela muito a sério. S. Ex.a Rev.ma imaginara a construção de um navio-igreja, que se chamaria Cristóforo, isto é, o que leva a Cristo, e navegaria todos os grandes afluentes do Amazonas, evangelizando os povos. Era uma idéia grandiosa, digna do cérebro do ilustre prelado paraense, e, levada à prática, prestaria os maiores serviços à civilização daquelas paragens. Infelizmente a construção demandava muito dinheiro; era preciso fazer um grande barco a vapor, apropriado às solenidades imponentes do culto católico, com o luxo que o senhor bispo gostava de desenvolver nas cerimônias cultuais para exaltar a imaginação dos crentes e agradar aos indiferentes de bom gosto que o lado estético da cerimônia atrai e concilia. Enquanto o fervor religioso, invocado pelo senhor bispo, não vinha derramar na Caixa Pia as quantias necessárias à construção do Cristóforo, forçoso era que os missionários isolados, para não deixar interrompida a obra de catequese, se aventurassem pelos sertões ínvios do Amazonas com o meio de locomoção que as circunstâncias lhes deparassem, pois quanto maior fosse o sacrifício mais meritório seria e mais digno da consideração de Deus.
- Demais, concluiu, gesticulando animosamente, para voltar a Silves é preciso uma canoa, e desde que eu a tenha à minha disposição, nenhuma razão me impedirá de prosseguir na viagem.
E andaram ambos para a casa, padre Antônio cabisbaixo e pensativo, Macário sentindo que não tinha a energia necessária para resistir à vontade do superior, acostumado, como estava, a respeitá-lo, não só pela posição como pelas suas raras virtudes entre as quais sobressaíam, impondo-se à sua profunda admiração, a castidade e o desinteresse nas coisas de dinheiro. Um padre que era uma coisa espantosa, mas que infelizmente dera agora para aquela história de catequese, que não havia como tirar-lhe da cabeça. Mas in petto Macário afagara a esperança de, com alguma nova artimanha do seu maquiavelismo, safar-se da rascada, para o que ia desde já prometendo dez réis a Santo Antônio, não duvidando chegar ao sacrifício das suas duas patacas se não soubesse que o santo só recebia dez réis.
A tia Teresa, a mulher do pescador, ficara muito admirada da fuga dos remeiros, mas não vira remédio pronto. O seu homem estava no furo de Uraná ou no lago da outra banda, e só poderia regressar daí a uma semana, se não ficasse lá todo o mês.
- Não haverá aqui por esta vizinhança alguma embarcação? perguntou padre Antônio de Morais.
Não havia. Onde havera de sê incontrá ua igarité por estes mondo? respondera-lhe a tapuia na linguagem dura e arrastada.
Para cima do rio, continuou, gesticulando gravemente, cantando as palavras uma a uma, prolongando as vogais, na impassibilidade de quem fala somente para se ouvir a si próprio; para cima do rio não havia morador nenhum, e lá para baixo eram poucos, o Chico Pequeno, o Pipirioca e o Jacaretinga. E depois, respondendo a uma pergunta que adivinhava nos olhos do padre:
- 'Stão na sarga, disse com um gesto largo, indicando distância.
E prosseguiu no tom dolente e monótono das caboclas, cortando as frases para acentuar uma palavra, prolongando o som das vogais até penetrarem bem no ouvido do interlocutor.
- Havera de achá ....... canua. Só sê fosse alguma... montarizinha... de pescá, como seu Guierme... tem... uma... munto... velha, bem velhi....nha.... que nem nhá vó.
- Onde está essa montaria? indagou sofregamente padre Antônio.
- 'Stá nu purto, respondeu a tia Teresa. E continuou a deleitar os ouvidos do Macário com a sua melopéia plangente.
- Saberá vence, nhã branco... que é...p’ra ....... us la... drão dus ta. .. puios... não ....... 'stá iscondidi....nha.... nas cana... rana...
E voltando-se para o vigário, a convencê-lo da inutilidade da pesquisa:
- Havera dê... servi... não serve. O dia... cho da muntari... a é ve... lha, e peque... tita, que só p'ra cu.... . rumi.
Macário e padre Antônio foram ver a canoa. Era um pequeno casco, feito toscamente de um tronco de cedro, medindo doze palmos de comprimento sobre dois e meio de boca. Estava encalhada entre as canaranas do porto. Era velha, como dissera a tia Teresa, e tinha apenas um banco além do jacumã. Era impossível arriscar a continuação da viagem naquela casca de noz. Padre Antônio voltou para a casa, impaciente.
Aquela noite não dormira, nervoso e agitado pela impossibilidade material de prosseguir no seu elevado intento, burlado pela reles traição de dois caboclos estúpidos e medrosos. Examinara uma por uma as probabilidades de sair daquela conjuntura difícil, procurando dominar a indignação que lhe subia do peito ao cérebro, numa onda efervescente de projetos de vingança. Mas não vira outra solução senão esperar pacientemente no sítio da Teresa a volta do pescador Guilherme, que mais tarde ou mais cedo regressaria depois de esgotar em tabaco e aguardente o produto da sua demorada pesca. Esta solução indeterminada e dependente do capricho do pescador ausente era a que menos lhe sorria. Vinha-lhe um vago receio. Não confiava demasiado na firmeza das próprias resoluções, e cobrando medo às tentações do Inimigo, cada vez que percebia em si a dúvida, a hesitação, a fragilidade da vontade que formavam talvez a base do seu caráter, julgava que o único meio de dominar o seu organismo contraditório e inconseqüente era forçá-lo a uma atividade devoradora que não desse tempo às paixões nem azo ao demônio de lhe senhorearem o corpo.
Comera mal aquele dia, ou antes não comera nada, e velando até alta noite, as exigências dum estômago acostumado a nutrição abundante causavam-lhe uma fraqueza física, cuja origem não percebera a princípio, mas que o lançara num desânimo profundo. Acreditara por momentos que teria de renunciar para sempre a sua querida missão evangélica. Adeus, glória e sonhos dum porvir grandioso! Adeus, ilusões da mente criadora! Adeus, templos colossais, florestas enormes, povos conquistados pela palavra, puras invenções dum espírito reduzido à impotência! Antônio de Morais, o padre sonhador, voltaria à vida pacata, monótona e vegetativa de pároco de aldeia, coberto do ridículo da sua missão falha. Seria restituído às ladainhas, cantadas numa voz fanhosa pelas pretas velhas, de lenço branco à cabeça; à palestra insípida das tardes à porta do coletor; aos longos dias sem ocupação e sem trabalho, em que se embalaria suavemente na maqueira da sala de jantar, para refrescar a calma dum verão equatorial, numa sonolência mórbida, com o corpo fatigado de repouso e o espírito a vagabundear nas regiões escuras de teorias extravagantes e heterodoxas; a preguiça a tolher-lhe os membros e a fechar-lhe os olhos para não ver o breviário caído relaxadamente abaixo da rede, de capa para o ar e folhas amarrotadas; e o demônio a insinuar-lhe no peito o ardor da concupiscência no olhar provocador e no sorriso desvergonhado da Luísa Madeirense, a passar e repassar pela cerca divisória, cantarolando a Maria Cachucha e levantando bem alto as saias para as não macular na lama do quintal. E a um canto, os olhinhos maus do professor Fidêncio, a perscrutar-lhe os mais íntimos pensamentos, a adivinhar-lhe as fraquezas sob a aparência severa de padre de S. Sulpício, para as estatelar ao comprido numa coluna do Democrata.
Esses pensamentos aumentavam-lhe o mal-estar ocasionado pela crescente sensação de debilidade.
Levantou-se, riscou um fósforo e depois outro; e à luz rápida e intermitente de fósforos sucessivos, enganou a fome com uma boa cuia de água, precedida dum punhado de farinha que fora buscar ao paneiro da Teresa, a um canto da sala. Sentia-se confortado. As idéias tristes e desanimadoras fugiram à claridade da luz, como assustados morcegos.
Padre Antônio, ao romper do dia, fora ao porto ver se aparecia alguma canoa. Ficara muito tempo passeando à beira do lago, molhando os pés na umidade das canaranas, atento ao menor ruído de remos, alimentando uma vaga esperança de ver romper à boca do furo de Urariá a sua igarité remada pelo João e pelo Pedro, tocados de sincero arrependimento; ou fantasiando um regatão que o ardor do ganho trouxesse àqueles confins da civilização para vender as suas chitas de ramagens e os seus terçados americanos; ou ainda acreditando que o pescador Guilherme, sentindo súbitas saudades da mulher e dos filhos, largara a vida regalada das salgas, o lundu e as cuias de aguardente para regressar ao sítio na sua excelente canoa veloz e segura, experimentada nos tropeços da navegação fluvial. A superfície do lago continuava deserta e lisa, agitada, apenas, de vez em quando, por algum pirarucu que vinha à tona da água respirar a brisa da manhã.
Macário, depois duma noite bem dormida, chegara ao porto fresco e bem disposto, de mãos aos bolsos, assoviando o Vinde espírito de luz. O vigário parecia desacoroçoado. Todavia, como por desencargo de consciência, S. Rev.ma convidou-o a examinar de novo a montaria de pesca que na véspera a tia Teresa lhe mostrara, oculta entre as altas canaranas.
- Saberá S. Rev.ma que está de todo imprestável, sentenciou Macário depois. de desdenhosa vistoria.
Padre Antônio não se deu por convencido. Convinha saber se a tia Teresa teria algum breu e um bocado de estopa.
Teresa viera ao porto buscar água. Tinha o breu e a estopa, nem poderia a casa dum pescador estar desprovida daquelas coisas indispensáveis. Voltava já e havia de trazê-las ao senhor padre.
Então padre Antônio de Morais dissera sorrindo que ia fazer-se calafate. Não que se quisesse realmente servir daquela canoinha de criança, mas para matar o tempo e prestar um serviço ao dono da casa, porque, enfim, a montaria ainda podia servir para os curumins se divertirem a pescar de caniço, enquanto não chegava o tempo de irem com o pai às pescarias longínquas.
- Ainda estão muito pequetitos, observou Macário.
- Hão-de crescer. Ande, Macário, largue essa preguiça e ajude-me.
Puxaram a canoa para terra, e colocaram-na sob uma árvore do caminho, a cuja sombra padre Antônio lhe fora calafetando o costado, aberto em diversos lugares pela ação do sol e do tempo. Padre Antônio, parecendo esquecido da contrariedade que sofrera, alegre e risonho, trabalhava brincando com os filhos da Teresa, que a alguns passos de distância assistiam nus e pasmados àquele espetáculo surpreendente dum branco vestido de preto a calafetar a velha montaria.
Macário, ajudando o senhor vigário naquela fastidiosa e longa tarefa, que durara até à hora do jantar, estava tranqüilo. Não se podia tratar de outra coisa senão dum passatempo, e posto que notasse o olhar de satisfação e de amor-próprio que o padre lançara ao trabalho ao despedir-se dele, comera com muito apetite e contentamento.
Ao cair da tarde, antes de se recolherem à casa, para fugir à perseguição dos carapanas e à insipidez duma noite sem lua, foram ainda ao porto correr a superfície do lago com a vista ansiosa.
Nada ainda. A noite caía, ensombrando o lago e mergulhando nas trevas a floresta de tucumas e muritis que circundava a cabana.
O sacristão de Silves tocava o primeiro sinal da missa conventual nos pequenos sinos da Matriz, num domingo de festa. A população, de volta dos castanhais, corria pressurosa ao templo, enchendo o adro de sobrecasacas de lustrina compridas e respeitáveis, de jaquetas de ganga, de saias de chita verde e de cabeções bordados à moda da Madeira, deixando entrever a pele morena e acetinada das mulatinhas faceiras e das caboclinhas sérias, de pisar duro que lhes faz tremer os seios. O capitão Manuel Mendes da Fonseca, de largas calças brancas engomadas, sobrecasaca aberta, chapéu de Manilha rico e raro -última lembrança do Elias - cavaqueava à porta da igreja com o tenente Valadão, que lhe contava como apanhara o João e o Pedro com a boca na botija, pretendendo vender ao Mapa-Múndi um chicote de tabaco de Irituia e dois ternos de riscadinho, novos em folha. O Dr. Natividade dizia numa roda, em que estava o professor Aníbal, que o Bernardino Santana conseguiria dele tudo quanto quisesse em castigo do Totônio, pois não esquecera a noite do casamento do Cazuza, e, graças a Deus, não estava acostumado a receber desfeitas. O Regalado dizia ao Costa e Silva muito mal do Felício boticário, que, magro, seco, parecendo filho do Valadão, receitava uns emplastros ao Neves Barriga para a cura completa de tumores. D. Prudência chegava, conversando com D. Dinildes sobre uma receita nova para fabricar cocada amarela. Estavam ambas vestidas com muito luxo, assim como todas as senhoras que aquele domingo concorriam à Matriz de Silves, enquanto o sacristão, olhado com inveja pelo José do Lago e pelo afilhado do Valadão, tocava alegremente os pequenos sinos musicais. Mas entre todas as mulheres sobressaía a rainha das formosas, a esplêndida Luísa, de vestido de lá, refolhado e rico, de botinas de duraque cor de canário, chapelinho à Garibaldi, vistoso e novo, lançando ao Macário um olhar de fogo que o obrigava a repicar os sinos, com entusiasmo dobrado, como se só para a Luísa repicasse, e quando mais enlevado estava, sentindo-se atordoado pelo ruído argentino dos sinos, e excitado pela presença da formosa criatura que lhe ocupava os pensamentos, ouviu a voz sonora e grave de padre Antônio de Morais, cortando subitamente o ar, como se o chicoteasse em pleno rosto:
- Sabe que mais, Macário? Vamos continuar a viagem, esta madrugada.
Macário despertou esfregando os olhos. A Luísa, os sinos, o adro, o capitão Fonseca, o Dr. Natividade, o povo todo sumiu-se na penumbra. Macário pulou da rede, ainda entontecido pelo sonho em que se deleitava. Sonhara mesmo, ou estava sonhando agora, ouvindo falar em viagem aquela madrugada? Fora um pesadelo que lhe dera pela muita banana que comera ao jantar? Ai, não! À beira da rede estava o padre, de olhos febris e fisionomia dura, a repetir-lhe:
- Vamos continuar a viagem esta madrugada.
Macário não acreditava. O ardor do sol que o senhor vigário suportara durante o dia, na faina de obsequiar a hospedeira, calafetando-lhe a montaria, ter-lhe-ia transtornado a bola? Continuar a viagem, como, se não tinham embarcação, nem camaradas, nem víveres? Chegara o Guilherme, aparecera algum regatão, o tenente Valadão por acaso surpreendera a igarité furtada e a mandara ao padre por homens de confiança? Esta hipótese era inadmissível porque o tempo não permitiria tão rápida diligência.
Padre Antônio achou que as perguntas de Macário revelavam pouca fé. Não chegara ninguém, não havia notícias da igarité, mas tinham a montaria do pescador que, calafetada como se achava, serviria perfeitamente para duas pessoas. Víveres não faltavam. A dona do sítio fornecer-lhes-ia anzóis e linhas de pesca, com isso ninguém morria de fome no Brasil. Em vez da boa farinha-d'água que os tapuios haviam furtado, comeriam o seu peixe com bananas verdes assadas, petisco delicioso, capaz de despertar a gula dum santo. De resto bananas não faltavam no sitio e já cortadas. A tia Teresa ceder-lhes-ia facilmente dois magníficos cachos que estavam pendurados no teto da cozinha. E enquanto a remeiros, que falta faziam João e Pedro, se estavam eles ali, Antônio e Macário, dois rapazes vigorosos, capazes de manejar um remo? Tinham uma boa lasca de pirarucu seco, sal, bananas e anzóis, que lhes faltava? E, por fim, quanto maiores fossem os sacrifícios, tanto mais mereceriam do Senhor, em cuja vinha trabalhavam e maiores seriam a glória e o renome de que infalivelmente gozariam.
E terminou com intimativa:
- Vamos, Macário, não me seja mole, mexa esse corpanzil, deixe-se de preguiça. Hei-de seguir a viagem. Se for preciso partirei sozinho, aconteça o que acontecer.
Macário viu nos olhos ardentes do padre uma resolução inabalável, embora sem calma, misturada com a agitação da impaciência, como se o amor-próprio forcejasse por esconder uma vaga desconfiança de si mesmo, ansiando por sepultá-la sob o peso do fato consumado. Partir sozinho, loucura! Exigir que Macário partisse também, que falta de caridade evangélica! Nada o demoveria desse propósito insensato? Que mal viria à catequese dos mundurucus da paciência empregada em esperar uma condução mais segura e cômoda do que a reles montaria, inabilmente calafetada por S. Rev.ma? A nada atendia, nada podia acalmar-lhe uma impaciência inexplicável S. Rev.ma era bem capaz de partir sozinho? E que diria Silves? Não faltaria ali quem acusasse o Macário de tê-lo abandonado, e quem sabe mesmo de que horrores seriam capazes as línguas viperinas de José do Lago e do afilhado do Valadão!
Macário resistia e cedia ao mesmo tempo. Não se sentia com forças para aquele sacrifício, mas não tinha a energia precisa para dizer não. Ainda se a missão se fizesse a bordo do Cristóforo! Mas qual! era numa canoinha de criança, numa casca de noz, que podia fazer água por todos os lados! O Cristóforo ainda não estava feito, e quem sabe se se faria! Se algum dia o senhor bispo levasse a efeito a sua execução, não lhe aproveitaria mais, ao triste Macário de Miranda Vale! Enchia-se de ciúmes da fácil glória dos sacristães vindouros. Esses viajariam no Cristóforo, a ele, a ele sozinho cabia a infelicidade de missionar numa montaria de pesca, abandonada pelo próprio dono. Entretanto os outros, os que tinham de gozar as comodidades do navio-igreja, seriam elogiados, gratificados, canonizados talvez!
A atitude severa e o silêncio resoluto do vigário, dominavam-no. Obedecia, resistindo sempre, resmungando, andando pelo quarto, preparando-se para a viagem, parando subitamente, decidido a ficar, num grande esforço de vontade, e logo, apenas o feria o olhar frio e penetrante do padre, continuando a arrumar as coisas necessárias, ora com maneiras bruscas de revoltado, ora com submissão resignada de vitima, já derramando uma fonte de lágrimas que enxugava raivosamente na manga da camisa, já ativando febrilmente os preparativos, como se a obediência desesperada protestasse contra a violência que se lhe fazia. Padre Antônio cruzara os braços, não proferia palavra, não fazia um gesto, mas o seu olhar implacável seguia todos os movimentos do Macário, causava-lhe impaciências nervosas, quando o sacristão o sentia espetar-lhe a epiderme, forçando-o a levantar-se, a pôr-se em andamento, a engolir frases cheias de justa indignação, que o engasgavam e lhe teriam valido a vitória se ele as pudesse proferir claramente, se a maldita garganta não as retivesse, se a endiabrada língua não se gelasse na boca sob a ação daquele olhar dominador, que o abatia como a uma criança medrosa. No meio dos arranjos, quando tudo parecia pronto, o sacristão sentiu voltar a liberdade da fala e dos lábios lhe saiu como um protesto solene:
- Saberá V. Rev.ma que havemos de remar com as mãos.
Padre Antônio saiu do mutismo que guardava para responder sorrindo:
- Sossegue, Macário, a tapuia vendeu-me dois remos novos.
- Não é isso, tornou Macário, vitorioso, o breu está muito fresco, o sol o derreterá e teremos de ir a nado para o porto dos Mundurucus!
Era um dia que se ganhava, e nesse espaço de tempo, o mundo dava muitas voltas... pensou o sacristão em desespero de causa.