O missionário/XII
A notícia que o Felisberto trouxera de Maués, na volta de sua ultima viagem, alterara profundamente a preguiçosa tranqüilidade em que vivia padre Antônio de Morais, havia exatamente três meses, no sítio da Sapucaia, em companhia da Clarinha, cada vez mais terna e amorosa, sabendo com segredos feiticeiros avivar-lhe a paixão sensual que o dominava. A narrativa o arrancara de chofre àquela calaçaria monótona em que jazia, bem nutrido, dormindo noites sem cuidado, passando dias sem trabalho nem preocupações, sentindo um bem-estar extraordinário, que satisfazia plenamente a sua natureza de matuto amazonense.
E naquela tarde, ao pôr-do-sol, enquanto a Clarinha ia ao porto ajudar o irmão a descarregar as chitas e os diversos objetos e galantarias que trouxera de Maués, o missionário, sozinho no copiar, sentado junto à mesa, vendo a figura graciosa da moça desaparecer entre as árvores do caminho, tivera um despertar da consciência, e fizera um exame introspectivo daqueles três meses decorridos, com a absoluta segurança de perito desapaixonado. Uma luz nova se fazia no seu cérebro, os fatos evocados lhe apareciam nus, destacados e salientes no exame duma crítica imparcial. O amor-próprio não devia influir na apreciação do seu procedimento. Juiz severo e reto, como se fossem atos de outro, ele os via pela lente fria e segura do observador desinteressado. O seu temperamento, a sua organização íntima, toda a sua individualidade patenteavam-se à lucidez da consciência, sem um refolho, sem um ponto obscuro. Os motivos que lhe haviam determinado o procedimento revelavam-se pela primeira vez à análise fria a que se entregava, lembrando-se, pesando, classificando, filiando os efeitos às causas, com uma penetração, uma perspicácia de que até então não dispunha o seu cérebro, povoado de idéias e sentimentos antagônicos. Tinha naquele momento a percepção exata do que fora, do que era, do que viria a ser, na situação que as circunstâncias lhe faziam, em que o futuro aio era mais do que a continuação indetenninada do presente e a conseqüência inevitável do passado. Como a Clarinha desaparecera entre as árvores do porto, deixando o vago perfume da sua adorada pessoa, cessara a embriaguez da paixão correspondida em que o mergulhara o amor da mameluca, deixando-lhe a sensação agradável do bem-estar gozado, abalado agora por uma notícia inesperada, que lhe despertara a consciência adormecida.
Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular e conter a ação determinante da hereditariedade psico-fisiológica sobre o cérebro do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera? No momento dado, impotente o freio moral para conter a. rebelião dos apetites, o instinto mais forte, o menos nobre, assenhoreara-se daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de S. Sulpício, Em outras circunstâncias, colocado em meio diverso, talvez que padre Antônio de Morais viesse a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral, sem educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de costumes, sem a coação da opinião pública, sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente constituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir.
Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas ardentes sensualidades dum amor físico, porque a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos, tentação demoníaca, e das suas formas esculturais, assombro dos sertões de Guaranatuba.
Dera-se tão bem com aquele modo de viver no sítio da Sapucaia, que o futuro não o preocupava um só instante naqueles rápidos três meses. Passaria naturalmente o resto da existência ao lado da neta gentil de João Pimenta, gozando os inesgotáveis deleites duma vida livre de convenções sociais, em plena natureza, embalado pelo canto mavioso dos rouxinóis e acariciado pelo doce calor dos beijos da sertaneja.
Se alguma vez, no meio daquele torpor delicioso, um sobressalto o apanhava de repente, acordando a idéia do inferno, que lhe atravessava o cérebro como um relâmpago, logo recaia na apática tranqüilidade que era a sua situação normal, adiando - com o movimento impaciente de quem enxota um inseto importuno - o arrependimento que lhe devia remir as culpas, e que reservava para ocasião própria, como o mergulhador que se aventura às profundezas do abismo, confiando na corda que o há-de chamar à tona da água na ocasião do perigo.
Semanas e meses se haviam passado naquela rápida degradação moral. A sua falta não causara estranheza aos tapuios que o hospedavam, e a nova posição da Clarinha, se vivo prazer dera ao pateta do Felisberto, fora perfeitamente indiferente ao velho João Pimenta. Nem sequer se mostrara surpreso quando a sua inteligência tarda percebera que já não se tratava da viagem ao porto dos Mundurucus. O antigo tuxaua deixara de ocupar-se da partida, e retomara as suas labutações normais, a pesca, a caça e a colheita do guaraná para os suprimentos da família Labareda. Também padre Antônio de Morais não se julgara obrigado a dar-lhe satisfação.
Na verdade, a vida já lhe corria sem aquelas lutas intimas da consciência com o pecado, que se lhe refletiam no semblante, imprimindo-lhe na fronte o sinete do sofrimento mortal. Nobres ambições de glória, ardores de propaganda desapareciam sob a calmaria podre duma consciência adormecida, em que o quase desconhecimento de si mesmo era o resultado dum esgotamento das forças vivas da inteligência e da vontade. O temperamento abafara, no enérgico desenvolvimento das tendências hereditárias e dos instintos famélicos de matuto independente, a moralidade relativa e os sentimentos elevados que a educação do Seminário tentara aproveitar para um fim acanhado, mas que não conseguira disciplinar por insuficiência da doutrina que desconhece a verdadeira natureza do homem; e num rapaz de vinte e três anos, exemplo da sua classe e honra do colégio que o atirara ao mundo como apto para as lutas da vida na espinhosa carreira que procurara, aparecera somente o matuto grosseiro e sensual. Fora bastante o contato da realidade mundana, auxiliado pelo isolamento e pela vaidade, para raspar a caiação superficial que lhe dera o Seminário, e patentear o couro do animal. O hábito fizera o monge. Quem reconheceria no rapaz moreno, de espesso bigode preto, cabeleira penteada, rescendendo a patchuli, com calças e camisa de riscado, o ardente missionário da Mundurucânia, o padre de semblante angélico, a cuja voz as beatas de Silves estremeciam de gozo místico? De vestido talar ou de calças de riscado, Antônio de Morais era fisiologicamente o mesmo homem, mas a diferença que o hábito externo estabelecia entre o presente e o passado duma mesma pessoa exprimia apenas a relação entre o homem que a natureza formara e o indivíduo que a sociedade moldara à sua feição. Tirara a batina e aparecera o filho legítimo de Pedro Ribeiro, o rapazola que levara uma infância livre, satisfazendo o apetite sem peias nem precauções nas goiabas verdes, nos araçás silvestres e nos taperebás vermelhos, tentadores e ácidos.
Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de Morais acordava ao romper da alva, quando os japiins, no alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera-cômica cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora do padre santo João da Mata -, espreguiçava-se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos e depois de respirar por algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canículo enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto por uma árvore; ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando chegavam à casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois duma volta pelo cacaual e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d'água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandriice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar para as sestas do defunto padre santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o padre, deitado a fio comprido, e ela sentada na beira de rede, passavam longas horas num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.
Às vezes saíam a dar um passeio pelo cacaual, primeiro teatro dos seus amores, e entretinham-se a ouvir o canto sensual dos passarinhos ocultos na ramagem, chegando-se bem um para o outro, entrelaçando as mãos. Um dia quiseram experimentar se o leito de folhas secas que recebera o seu primeiro abraço lhes daria a mesma hospitalidade daquela manhã de paixão ardente e louca, mas reconheceram com um fastio súbito que a rede e a marquesa, sobretudo a marquesa do padre santo João da Mata, eram mais cômodas e mais asseadas.
Outras vezes vagavam pelo campo, pisando a relva macia que o gado namorava, e assistiam complacentemente a cenas ordinárias de amores bestiais. Queriam, então, à plena luz do sol, desafiando a discrição dos maçaricos e das colhereiras cor-de-rosa, esquecer entre as hastes do capim crescido, nos braços um do outro, o mundo e a vida universal. A Faustina ficara em casa. João Pimenta e o Felisberto pescavam no furo e estariam bem longe. Na vasta solidão do sítio pitoresco só eles e os animais, oferecendo-lhes a cumplicidade do seu silêncio invencível. A intensa claridade do dia excitava-os. O sol mordia-lhes o dorso, fazendo-lhes uma carícia quente que lhes redobrava o prazer buscado no extravagante requinte.
Mas esses passeios e diversões eram raros. De ordinário quando João Pimenta e o neto voltavam ao cair da tarde, ainda os encontravam na maqueira, embalando-se de leve e entregando-se à doce embriaguez dum isolamento a dois.
Findo o jantar, fechavam-se as janelas e as portas da casa, para que não entrassem os mosquitos. Reuniam-se todos no quarto do padre, à luz vacilante de uma, candeia de azeite de andiroba. Ela fazia renda de bico, numa grande almofada, trocando com agilidade os bilros de tucumã com haste de cedro envolvida em linha branca. João Pimenta, sentado sobre a tampa de uma arca velha, mascava silenciosamente o seu tabaco negro. Felisberto, sempre de bom humor, repetia as histórias de maués e os episódios da vida do padre santo João da Mata dizendo que o seu maior orgulho eram essas recordações dos tempos gloriosos em que ajudara a missa de opa encarnada e turíbulo na mão. Padre Antônio de Morais, deitado na marquesa de peito para o ar, com a cabeça oca e as carnes satisfeitas, nos intervalos da prosa soporifera de Felisberto assobiava ladainhas e cânticos de Igreja.
Pouco mais de uma hora durava o serão. A Faustina trazia o café num' velho bule de louça azul, e logo depois, com lacônico eanê petuna - boa-noite, se retirava o velho tapuio. Felisberto ainda se demorava alguma coisa a caçoar com a irmã, jogando-lhe graçolas pesadas que a obrigavam a arregaçar os lábios num aborrecimento desdenhoso. Depois o rapaz saía, puxando a porta e dizendo numa bonomia alegre e complacente:
— Ara Deus dê bás noites p'ra vuncês.
Isto fora assim, dia por dia, noite por noite, durante três meses. Uma tarde, ao pôr-do- sol, o Felisberto voltara de uma das suas costumadas viagens a Maués, trazendo aquela notícia que arrancara o padre a essa espécie de inconsciência em que jazia. Encontrara em Maués um regatão de Silves, um tal Costa e Silva - talvez o dono do estabelecimento - Modas e novidades de Paris - que lhe contara que a morte do padre Antônio de Morais, em missão na Mundurucânia, passara como certa naquela vila, e tanto que se tratava de lhe dar sucessor, acrescentando que a escolha de S. Ex.a Rev.ma já estava feita. Foi quanto bastou ao vigário para o tirar do delicioso torpor em que mergulhara toda a sua energia moral, na saturação de deleites infinitos, despertando-lhe as recordações de um passado digno. E com o olhar perdido, imóvel, sentado junto à mesa de jantar, uma idéia irritante o perseguia. Teria o Felisberto, trocando confidência por confidência, revelado ao Costa e Silva a sua longa permanência na casa de João Pimenta? Esta idéia lhe dava um ciúme áspero da sua vida passada, avivando-lhe o zelo da reputação tão custosamente adquirida; e que agora se evaporaria, como fumo tênue, pela indiscrição de um palerma, incapaz de conservar um segredo que tanto importava guardar.
O primeiro movimento do seu espírito, acordado por aquela brusca evocação do passado, do marasmo, em que o haviam sepultado três meses de prazeres, era o cuidado do seu nome. Não podia fugir à admissão daquela dolorosa hipótese que a conhecida loquacidade do rapaz lhe sugeria. A sua vida presente teria sido revelada aos paroquianos, acostumados a venerá-lo como a um santo e a admirar a rara virtude com que resistia a todas as tentações do demônio. A consciência, educada no sofisma, acomodara-se àquela vilegiatura de ininterrompidos prazeres, gozados à sombra das mangueiras do sítio. A rápida degradação dos sentimentos, que o rebaixara de confessor da fé à mesquinha condição de mancebo de uma mameluca bonita, fizera-lhe esquecer os deveres sagrados do sacerdócio, a fé jurada ao altar, a virtude de que tanto se orgulhava. Mas na luta de sentimentos pessoais e egoísticos que lhe moviam e determinavam a conduta, mais poderosas do que o apetite carnal, agora enfraquecido pelo gozo de três meses de volúpias ardentes, punham-se em campo a vaidade do seminarista, honrado com os elogios do seu bispo, e a ambição de glória e renome que essa mesma vaidade alimentava. Confessava-o sem vergonha alguma, analisando friamente o seu passado: caíra no momento em que, limitado a um meio que não podia dar teatro à ambição nem aplausos às virtudes, isolado, privado do estímulo da opinião pública, do ardor do seu temperamento de matuto criado à lei da natureza, mas longamente refreado pela disciplina da profissão, ateara um verdadeiro incêndio dos sentidos. A mameluca era bela, admirável, provocadora, a empresa fácil, não exigia o mínimo esforço. E agora que para ele o amor já não tinha o encanto do mistério, agora que sorvera longa e gostosamente o mel da taça tão ardentemente desejada, os sentidos satisfeitos cediam o passo a instintos mais elevados, posto que igualmente pessoais.
Mas vinha o pateta do Felisberto com a sua habitual tagarelice, e desmoronava aquele tão bem arquitetado edifício da reputação do padre Antônio de Morais, precioso tesouro guardado no meio da abjeção em que caíra. O missionário ia ser abatido do pedestal que erguera sobre as circunstâncias da vida e a credulidade dos homens, e, angústia incomparável que lhe causava o triste clarão da condenação eterna surgindo de novo quando se rasgava o véu da consciência - a inconfidência de Felisberto vinha até impossibilitar ao padre o arrependimento, com que sempre contara como o náufrago que não deixa a tábua que o pode levar à praia. Como arrepender-se agora que a falta era conhecida, que o prestígio estava reduzido a fumo? Iria buscar a morte às aldeias mundurucuas? Ninguém acreditaria que um padre devasso e preguiçoso pudesse sinceramente fazer-se confessor da fé e mártir de Cristo, e se viesse a morrer naquelas aldeias, não celebrariam o seu nome como o de um missionário católico que a caridade levara a catequizar selvagens, mas todos atribuiriam a tentativa a uma curiosidade torpe, se não vissem no passo uma mistificação nova, encobrindo a continuação da vida desregrada do sítio da Sapucaia.
Voltar para Silves e dar ali o exemplo da castidade e da dedicação ao serviço divino pareceria arrependimento sincero? Não se sentiria com forças para arrostar com um povo que o sabia vulgar e desmoralizado, repugnava-lhe invencivelmente apresentar-se aos seus antigos paroquianos em atitude humilde de pecador arrependido. O episódio do sítio da Sapucaia não seria mistério para pessoa alguma, porque o Felisberto contara provavelmente, devia ter contado, não podia deixar de contar ao Costa e Silva a permanência do padre na casa e as conseqüências que se lhe seguiam. Todos em Silves, o Mapa-Múndi e o Neves Barriga, o Mendes da Fonseca e o Valadão, o Aníbal Americano e até o patife do Macário, se é que lá chegara, todos deviam estar a rir daquela famosa catequese, iniciada com tão grande ardor religioso e tão patuscamente terminada. O Mapa-Múndi negaria, invocando o testemunho do Costa e Silva, que tivesse chorado ouvindo o famoso sermão sobre a eternidade; o Neves Barriga lamentaria os obséquios feitos a um pândego da ordem de padre Antônio; o professor Aníbal Brasileiro diria que desconfiar a do padre quando o vira opor-se à publicação da Aurora, e o Mendes da Fonseca e o Valadão esgotariam o cômico incidente, comentando o caso com a profundeza dos seus conceitos e acabando por dar razão aos ataques do Chico Fidêncio contra o clero. As mulheres também não o poupariam. A D. Dinildes afirmaria que lhe dirigira gracinhas, uma vez, ao confessionário e a D. Prudência que deixara de o presentear porque soubera das suas relações com a bisca da Madeirense... O arrependimento era, pois, inútil, porque não lhe salvaria o nome, pensava ele, confundindo o interesse da salvação da alma com o da reputação mundana.
De nada serviria ser bom e virtuoso, desde que os outros o consideravam mau. Assim era forçoso tirar esta conclusão lógica: se o tratante do Felisberto dera com a língua nos dentes a respeito da Clarinha, o que não podia deixar de ter acontecido, ele, padre Antônio de Morais, estava perdido para sempre, em pecado mortal, incapaz duma regeneração perfeita.
Esta conclusão que claramente lhe figurava a sua irremediável desgraça arrancou-o à reflexão calma, com que procurava estudar a situação presente. As idéias baralharam-se no cérebro. Um desânimo profundo apoderou-se dele.
Passou a noite mal, muito agitado pelos terrores do inferno, e mordido no amor-próprio pela idéia da má opinião que os outros estariam tendo dele em Silves. A Clarinha achou- o frio, preocupado, nervoso, movido por impaciências bruscas que pela primeira vez lhes separavam os corações. Ela pôs-se a chorar silenciosamente, doída daquele abandono que não tinha explicação para a sua simplicidade, crente na duração perpétua daquela paixão que soubera inspirar ao senhor padre, o qual, ainda na véspera, a manifestara por beijos ardentes de amor e de volúpia.
Ele deixou-a chorar. Um ressentimento lhe vinha contra aquela rapariga que o havia seduzido e arrastado ao precipício, em cujo fundo se revolvia num leito de espinhos e de lama; um ressentimento que não podia deixar de considerar injusto, mas que por isso mesmo mais o irritava, gelando-lhe o coração. Sentia uma repugnância súbita daqueles deleites que tanto o haviam subjugado, e ora lhe pareciam sem atração e sem calor. Como se uma névoa lhe tivesse caído dos olhos, percebia que o prazer físico daquele amor de mameluca não lhe bastava para encher o vácuo do coração, donde arrancara a confiança no futuro.
Chegou a manhã sem que tivesse conciliado o sono, excitado ainda mais contra a Clarinha que adormecera afinal, cedendo às exigências da natureza, como se lhe tivessem bastado aquelas poucas lágrimas que vertera para a justificar do crime cometido. Levantou-se de mau humor, e no copiar, encontrando o Felisberto, deu-lhe uma descompostura.
Fizera-a boa, o Felisberto, não havia dúvida! Agora ele, padre Antônio de Morais, estava com a sua carreira cortada! Havia de passar toda a vida no sertão do Guaranatuba a beber vinho de cacau, a chupar laranjas, a dormir com a sirigaita da Clarinha, e a aturar as maçadas do idiota do Felisberto, em vez de continuar a sua carreira honrosa, podendo vir a ser cônego e talvez que bispo um dia! Estava enganado o pateta se pensara que ele voltaria para Silves, depois que ali se soubera que não fora a porto dos Mundurucus, e ficara de namoro com a Clarinha no furo da Sapucaia. Nada. Ou seria vigário com a força moral que soubera adquirir ou não seria mais nada neste mundo! E que diria o Chico Fidêncio? Que escreveria aquele patife para o Democrata? Vamos! Dissesse o Felisberto o que escreveria o Chico Fidêncio! Bandalheiras, mentiras, mentiras, desaforos! E quem era culpado de tudo isto? Aquela besta que logo havia de encontrar em Maués um morador de Silves com quem desse à taramela!
Passeava agitado na varanda, com as mãos atrás das costas, carrancudo, irritado, reproduzindo na fisionomia os traços duros do caráter paterno. Desabafava a ira em palavras grosseiras, que pela primeira vez saíam daquela boca acostumada aos doces fraseados com que captava os ânimos do auditório. Sentia uma grande cólera contra aquele estafermo que ali estava, estúpido e mole, sem ânimo de protestar contra os insultos que ele lhe atirava, e gozava um alívio cada vez que um palavrão porco ou indecente lhe caía dos lábios. O Felisberto, atônito, punha os dedos em cruz, e beijando- os, jurava que não dissera nada ao Costa e Silva, mas S. Rev.ma não o ouvia e continuava a descompostura que só cessou quando o tapuio, corrido e atemorizado, fugiu, receando o castigasse mais severamente do que com palavras.
S. Rev.ma durante todo o dia evitou a Clarinha, que, sentada na maqueira, balançando-se de mansinho, com os olhos baixos, sem ânimo de dizer palavra, curtia a primeira mágoa que lhe amargurava a existência depois da morte de sua querida mãe.
À noite, por força do costume, reuniram-se no quarto do padre, que mudo e carrancudo, vagamente arrependido dos excessos a que se entregara, quedava-se estirado na marquesa, a parafusar sobre a solução do intrincado problema que a indiscrição do Felisberto lhe dera a resolver. Clarinha trocava os bilros da almofada, mordendo os beiços de despeito, pela mudança que se operava no amante, e alternava os alfinetes, cravando-os com força nas casas novas, como se aquela vingança contra o papelão da renda lhe satisfizesse a zanga com que estava. João Pimenta, indiferente, como se não tivesse percebido aquela súbita catástrofe que tão inesperadamente perturbara a paz gozada pela família, mascava o seu tabaco forte, salivando a miúdo. Somente o Felisberto, que a cólera do hóspede não conseguira fazer calar por muito tempo, papagueava, como de costume, muito interessado em fornecer pormenores sobre o seu encontro com o Costa e Silva, para provar que nada lhe dissera sobre o modo de vida de padre Antônio no sítio da Sapucaia, tendo-se limitado a contar-lhe apenas que o conhecia e o sabia vivo. Nem mesmo houvera tempo para mais, valha a verdade, por Deus Nosso Senhor o jurava. O encontro dera-se na casa da família Labareda, onde o Felisberto fora receber dinheiro e o Costa comprar vinte libras de guaraná para o Elias, um sujeito do Pará. Por sinal que a família Labareda era muito ladrona, pois que vendera ao Costa e Silva o guaraná por muito mais dinheiro do que lhes dava a eles que o colhiam. Fora a primeira vez que o Felisberto vira esse desaforo, de que não fazia idéia, e se não fosse o medo de perder a freguesia, teria reclamado. O Costa lhe perguntara, quem és tu? Sou neto do meu avô João Pimenta, Jiquitaia, da tribo mundurucu. Saberá V. M.ce que meu avó era tuxaua, valente, e governava todo o Carumã.
— Pois vai-te queixar ao bispo, dissera-lhe o Costa e Silva.
O bispo estava muito longe, lá para as bandas do Amazonas, e não valia a pena. Então o Felisberto declarou que pediria a S. Rev.ma, padre Antônio, que quando fosse para esses lados, falasse por ele ao bispo, para acabar com a ladroeira da família Labareda, que estava tirando dos pobres tapuios o suor do seu rosto, que lhes custava tanto a ganhar trabalhando no sertão e arriscando a sua vida para colher o guaraná para aquela família de unhas-de-fome. O Costa ficou muito admirado e perguntou:
— Que padre Antônio é esse?
— É S. Rev.ma, padre santo muito bom, que se chama padre Antônio de Morais.
— E tu conheces a padre Antônio de Morais, mentiroso? disse o Costa e Silva.
— Mentiroso, ele, Felisberto, não, nunca mentira, porque sabia que isso era um pecado mortal. Conhecia padre Antônio tão certo como ter sido Jiquitaia seu avô, catequizado pelo padre santo lá da Sapucaia. E por sinal que padre Antônio tinha-se encontrado com ele e o avô João Pimenta à margem do Sucundari, sozinho, muito assustado, porque havia escapado dos parintintins ou mundurucus, o Felisberto já não se lembrava bem...
— Dos parintintins, disse o Costa e Silva, foi dos parintintins!
Nesse momento o filho mais velho do Labareda, aquele que quis casar o ano passado com a filha mais moça do Francês, chamou-o para ver o guaraná que estava saindo do forno. O Costa saiu apressado e gritou do corredor ao Felisberto:
— Deixa estar que no Madeira hei-de saber notícias dele.
O Felisberto saiu, e não se encontrou mais com o regatão que nesse mesmo dia seguia viagem, ao passo que o rapaz ainda se demorara uma semana em Maués, por causa dum
....... Era coisa que não perdia, um sairé. Se esta não era a verdade, Deus Nosso Senhor o castigasse por aquela luz que os estava alumiando, e que lhe faltasse à hora da morte.
— Que estás tu aí a falar do Madeira, perguntou padre Antônio, que afinal prestara atenção à tagarelice do tapuio, e sentiu que uma idéia luminosa lhe atravessava o cérebro. Pois o Costa e Silva, perguntou ainda, sentando-se na marquesa, pois o Costa e Silva não voltava para Silves?
— Não voltava tão cedo, afirmou Felisberto, levantando-se e apontando de novo para a candeia de andiroba, jurava por aquela luz. O Costa e Silva seguira para o Madeira, onde poderia estar há uns quinze dias e onde havia de demorar-se mais dum mês. Por sinal dissera que havia de perguntar por S. Rev.ma lá no Madeira, e se ele voltasse para Silves, que é que ia perguntar no Madeira?
Mas então, em Silves ainda ninguém sabia a verdade! Então padre Antônio de Morais podia voltar para a sua paróquia, sem receio de que lhe descobrissem o segredo que tanto lhe importava guardar, e do qual dependia o seu futuro! Voltaria, pois, e sem demora, para evitar que o Costa e Silva regressasse à vila antes dele lá estar. Partiria quanto antes, pois que o pateta do Felisberto gastara tanto tempo em Maués, 'ria surpreender os seus ingratos paroquianos, que já se preparavam para receber de braços abertos o sucessor que a solicitude do senhor bispo não tardaria em nomear, zelando das suas obscuras, mas nem por isso menos queridas ovelhas! Partiria e ninguém, ninguém em Silves era capaz de duvidar de que padre Antônio de Morais tivesse gasto aqueles três meses na catequese de índios bravios, em pleno sertão do Sucundari e do Guaranatuba.
Pensava, rejubilando-se com esta solução tão fácil que a bendita tagarelice do Felisberto lhe tinha feito brotar no espírito abatido, e enquanto os outros prosseguiam no insípido serão, ele, cheio de coragem, criando alma nova, combinava, refletia, pesava todas as hipóteses que se lhe apresentavam, resolvia as dúvidas, discutia consigo mesmo as probabilidades, e assentava finalmente na resolução firme de partir no dia seguinte pelo rio Abacaxis fora em busca do lago Saracá e da vila que à sua margem repousa entre eternas verduras.
Quando se recolheram todos, e o padre ficou só com a mameluca, uma última luta se travou entre e a ambição e o amor a que se acostumara na posse daquela rapariga gentil, cujo amuo passageiro, cujos olhos vermelhos de lágrimas, cujo retraimento inesperado. naquela noite de despedida lhe incendiavam de novo os sentidos, despertando a paixão adormecida, como se já há muito tempo estivesse privado do gozo do seu corpo.
Já agora deixá-la era impossível. Depois que a notícia da viagem do Costa e Silva ao Madeira lhe reanimara o ânimo abatido, mostrando que não estava impossibilitado de regressar à sua paróquia com o mesmo prestígio de outrora, a alegria e a esperança extinguiram o ressentimento contra a linda mameluca que lhe revelara as delícias inefáveis dum amor correspondido. Pensando em partir, em a deixar para nunca mais a tornar a ver, em abandonar por seu gosto aquele tesouro inapreciável de encantos que só ele, ele só, conhecera e gozara, sentia um grande abalo que lhe tirava a firmeza da resolução que acabara de tomar. Os ressaibos dos beijos da Clarinha chocavam-se com as recordações dos tédios de Silves, e a sua natureza sensual reagia em favor dos doces prazeres que a moça lhe proporcionara. O quê! Voltaria a levar a vida estúpida e monótona de pároco da aldeia, a cantar ladainhas, a confessar negras velhas, feias e repelentes, a doutrinar crianças, a morrer de tristeza e de aborrecimento na vastidão daquela vila deserta, onde não tinha para o consolar nas horas de freqüente desânimo, em que a herança materna sobrepujava a fortaleza viril, para povoar o seu isolamento, para lhe suavizar as agruras da vida, o olhar meigo e carinhoso, a fala doce, o amor incansável da sua querida Clarinha, da única mulher que seriamente o amara. Deixá-la- ia naquele sítio solitário, para morrer de saudades, ou - coisa horrível que o fazia estremecer - para cair nos braços de algum tapuio boçal que a cobiçasse para mulher, ou de algum regatão atrevido que a tomasse para o duplo emprego de amante e de criada! Partiria tão às pressas, quando os encantos daquela mulher incomparável lhe prometiam ainda tantos dias vividos à sombra das mangueiras em flor, na intimidade, tantas noites repletas de delícias que jamais encontraria em outra! Tinha visões eróticas, pensando nos prazeres que gozara. Recordava o cacaual, a bela carne clara destacando- se do amarelo avermelhado das folhas secas; o capinzal verdejante do campo, espigado e fino, emoldurando a redondeza palpitante das formas; o furo de água negra, transparente e límpida em que os membros gentis tomavam figuras vagas, fantásticas e vacilantes; a maqueira de tucum, refrescando o calor dos corpos unidos em apertado abraço, na ausência do Felisberto, do João Pimenta e da Faustina, a rede, a macia rede, tentadora e provocante, embalando suavemente os amantes no vaguejar dos sonhos... Mas que perigo em se deixar ficar ali, naquele viver sensual e mole, enquanto a história da sua queda podia chegar a Silves e matar para sempre a aspiração dum futuro glorioso!
Lutava enleado nas pontas daquele dilema terrível, com a cabeça perdida, procurando embalde no arsenal dos seus sofismas, no manancial de argúcias da sua filosofia egoística e chicaneira, um meio de sair daquele embaraço cruel que lhe esmagava o coração. Sentia-se incapaz de sacrificar o futuro àquela mameluca simples, e mais incapaz ainda de desprender-se dos braços dela para salvar a honra de seu nome e o brilho da carreira que imaginara poder percorrer na vida. Entre o presente, representado pelo amor da neta do João Pimenta, pela vida fácil, cheia de gozos e de inação, que tanto satisfazia o seu temperamento de matuto grosseiro e preguiçoso, e o futuro, visto pela lente da ambição que o exaltava nas grandezas e dignidades da Igreja, na confiança depositada na própria inteligência, saber e ilustração adquirida à custa de tantos esforços, a sua alma se balançava hesitante. Toda a fraqueza de caráter que o sangue materno lhe transmitira, se revelava naquela conjuntura da vida. Pálido, arquejante, sem saber o que fazia, atirou-se à cama, cobriu o rosto com os lençóis, e rompeu num choro convulso de criança contrariada.
A Clarinha, que o espiava silenciosa, chegou-se a ele, abraçou-o ternamente, e segredou-lhe ao ouvido com uma meiguice incomparável na voz:
— Levas-me contigo, sim?