O missionário/XIII

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Quando o ubá chegou ao sítio do Tucunduva, no rio do Ramos, seriam três horas da tarde, e havia três dias que viajavam, descendo o rio Abacaxis, na esguia embarcação selvagem, bem provida de todo o necessário que era possível acomodar sob a estreita tolda de japá, improvisada para resguardar a Clarinha do sol ardente de dezembro.

Fora uma partida alegre, despreocupada. A família deixara o sítio da Sapucaia como se fosse fazer uma pequena viagem de recreio. João Pimenta, na indiferença da sua estupidez de antigo tuxaua convertido ao cristianismo, acostumado à subserviência as ordens de padre João da Mata, não achara palavra no seu pobre vocabulário para opor à deliberação dos netos, e concordara com a viagem como se se tratasse da coisa mais simples e natural do mundo. No furo da Sapucaia, no pitoresco bom retiro do defunto padre santo, apenas ficara a Faustina, a preta velha, para cuidar dos numerosos xerimbabos que a moça sustentava.

O Felisberto, remando à proa, vinha alegre, duma alegria ruidosa. Era o mais feliz de todos quantos haviam deixado o sítio do furo da Sapucaia no ubá de João Pimenta.

Quando soubera que o hóspede regressava ao exercício das suas funções paroquiais em Silves, Felisberto gargalhara o seu contentamento numa risada convulsa, que expandira a sua fisionomia de jovem tapuio civilizado, numa expressão alvar de orgulho satisfeito. Havia muito que nutria secretamente o desejo ardente de ver o hóspede voltar às funções da vigararia, ambicionando a continuação da gloriosa ocupação que iniciara sob os auspícios do defunto padre santo. Ia agora talvez conseguir a honra de acolitar o novo padre santo, com o tal Macário ou sem ele, não na indiana Maués, mas num povoado muito mais importante, na civilizada Silves, cuja população branca ele cuidava deslumbrar com as mesuras e salamaleques que aprendera no ofício com o latinório de contrabando que padre Antônio escutara maravilhado nos sertões de Guaranatuba.

Maior fora ainda o seu prazer quando, risonha e feliz, a mana Clarinha o certificou de que o senhor padre a queria levar consigo para lhe lavar a roupa e tomar conta da casa, porque S. Rev.ma, coitado! não tinha jeito nenhum para o governo da casa, que o Macário deixava andar à matroca, e a respeito de lavagem de roupa era uma ladroeira monstruosa em Silves, além de uma pouca-vergonha na demora e porcaria do serviço. A princípio a Clarinha ficaria num sítio do rio Ramos, no Tucunduva, enquanto o senhor padre arranjasse casa e dispusesse tudo para a receber e agasalhar dignamente; mas, havia prometido, a demora não seria longa, porque S. Rev.ma estava resolvido a não continuar sem mulher em casa, por causa das perdas e transtornos que essa falta lhe ocasionava. Ouvindo isto, o Felisberto não se pudera conter, pulara como uma criança. A dupla decisão de padre Antônio de Morais fazia antever um futuro de honras subidas e de prazeres incomparáveis, realizando o sonho com que se pagara a sua imaginação de tapuio, vaidoso da consideração que lhe dava o namoro de S. Rev.ma com a Clarinha.

Por isso, remando à proa do ubá, descendo a corrente do rio Abacaxis, o Felisberto antegostava o prazer de repenicar, com a força dos pulsos acostumados ao corte das rijas maçarandubas, os sinos afamados da Matriz de Silves, que o padre santo lhe descrevera como de verdadeiro bronze, de som argentino e de bela aparência dourada. Já se imaginava de opa encarnada, carregando o missal de um lado do altar para outro, com mesuras graciosas e latinórios difíceis, balançando o turíbulo cheio de sufocante incenso queimado, numa gravidade solene, e às ocultas, depois da missa, por detrás, do altar-mor, fingindo apagar as velas de cera com o apagador de couro preto pregado à comprida vara, devorando silenciosamente as hóstias da caixinha de lata, regando-as com o vinho branco das galhetas, na satisfação da sua gulodice de tapuio, não acostumado à farinha de trigo e ao vinho estrangeiro, alcoolizado e doce.

João Pimenta governava o jacumã, silencioso e apático, mascando tabaco, e embebendo o olhar na contemplação passiva do céu, das águas, das árvores da beirada, da grande natureza que amesquinhava a sua personalidade embrionária de mundurucu batizado.

Padre Antônio de Morais, meio deitado no fundo do ubá, ao lado da apaixonada Clarinha, com o chapéu sobre o rosto para o resguardar do sol; cismava. enquanto o ubá deslizava, impelido pelos compridos remos dos dois tapuios.

Haviam sido rápidos, apressados os últimos dias passados no sítio da Sapucaia. O padre sentia uma grande impaciência, queria chegar quanto antes a Silves, para assumir o exercício da vigararia, antes que o Costa e Silva regressasse do rio Madeira e espalhasse a notícia que obtivera sobre o missionário da Mundurucânia.

A solução encontrada e a aproximação da partida haviam recordado hábitos e deveres esquecidos; física e moralmente padre Antônio queria voltar a ser o sacerdote que o João Pimenta e o Felisberto haviam encontrado ajoelhado à beira de um rio sertanejo, o mesmo que partira de Silves, alimentando o grandioso projeto de civilizar os mundurucus. Fora, primeiro que tudo, forçoso recorrer às velhas navalhas do seu colega João da Mata, postas de lado quando, vencido pela paixão sensual que o dominara, perdera os estímulos do brio e se chafurdara na degradação moral que o ia inutilizando para sempre. Padre Antônio sacrificara o espesso bigode negro que a preguiça deixara crescer com força, e quando no pequeno espelho de parede se viu restituído à depilação obrigatória do ofício, pareceu-lhe que de fato tornava a ser o que fora, e que com aquela operação tão simples lhe voltavam as idéias, os sentimentos e os gostos do sacerdócio. Ao vestir a batina, alguma coisa embolorada e velha, aquela mesma que em nova trazia com a apurada elegância que entusiasmara as mulheres de Silves, a transformação se completara, e o padre sob a vestimenta negra e grave, que lhe alteava o corpo, sentira o espírito elevado acima das vulgaridades da sociedade em que se metera, dos gostos que ali o haviam detido. A sua superioridade, desprendendo-se das teias em que a haviam enlaçado os apetites do corpo, se afirmara de novo sobre aqueles tapuios ignorantes que o tinham feito resvalar até o nível da sua simplicidade grosseira, na igualdade dos instintos sórdidos de sertanejos sensuais. Quando pôs na cabeça o chapéu de três bicos, e saiu para o copiar, para tomar o caminho do porto, o Felisberto exprimira por uma risada nervosa e sacudida a funda impressão que lhe causava o aspecto do vigário, e a Clarinha enchera-se de involuntário respeito e de encantadora timidez, diante daquela aparência severa e fria de sacerdote que não lhe recordava o amante apaixonado do cacaual e do campo, mas o hóspede extraordinário e imponente que lhe chegara numa tarde de agosto, como um Anjo do Senhor, suave e triste na sua grandeza sobre-humana.

Entretanto, apesar do hábito sacerdotal, padre Antônio de Morais já não era o mesmo mancebo entusiasta e ardente que o vale do Canumã havia visto batendo-se contra a natureza implacável do Amazonas, e consumindo-se numa luta sempre renovada contra o temperamento de campônio livre e robusto, contra o natural de poldro rebelde que a educação embalde procurara domar. Engordara na vegetação preguiçosa dos três meses passados no sítio; a satisfação dos apetites por longo tempo comprimidos e contrariados, contentando-lhe a carne, dera-lhe a robustez da virilidade perfeita, o desenvolvimento másculo do corpo. A alta estatura, favorecida pela formação do tecido adiposo, dava-lhe uma aparência de autoridade e poder, que confirmavam o semblante arredondado, com os olhos à flor do rosto, os lábios carnudos, a boca grande e franca, a fronte espaçosa e lisa, que ele vira com prazer ao espelho da Clarinha. Os músculos da face, repuxados para baixo, davam-lhe ao rosto uma expressão de serenidade satisfeita e de segurança de ânimo. Não mais os indícios duma paixão agitada por sentimentos contrários se viam na fisionomia simpática e melancólica do padre que freqüentara o cemitério de Silves, comprazendo-se na meditação e no silêncio. Nem tampouco se refletiam naquele rosto os generosos ardores do proselitismo religioso que o arrancara dos labores triviais dum paroquiato aldeão para o atirar a uma empresa arriscada e perigosa. Naquela larga face de homem robusto e são acentuavam-se, pelo contrário, a convicção da própria força, a paz da consciência, firmada após lutas devastadoras, o desprezo dos homens e um contentamento íntimo de quem se sabia superior ao meio em que tinha de viver, e apto para vencer todos os embaraços que se lhe pusessem diante. Não podia ser mais completa a transformação, ele próprio o percebera num derradeiro lampejo de sua consciência moral, nem a revolução profunda que em tão limitado espaço de tempo se operava no seu espírito e no seu coração, gravando-se de modo indelével na sua face respeitável de padre repousado e tranqüilo. Vivera naqueles três meses mais do que em toda a mocidade, e como se o atrito das paixões que lhe haviam escaldado o sangue tivesse raspado o verniz da educação eclesiástica, deixando a nu o esqueleto do matuto criado à lei da natureza, ele se reconhecia agora tal qual era, tal qual podia ser, não conservando da exaltação de sentimentos e de imaginação, que determinaram os passos decisivos de sua vida, senão o ardor latente, sob a severa aparência de padre desiludido, dos gozos sensuais e da ambição de poder e de glória, um misto contraditório de aspirações e de gozos que ele harmonizava perfeitamente na sua filosofia arguciosa e pessoal.

Achava-se bem assim.

Uma galeota de regatão chegara primeiro do que o ubá de João Pimenta ao porto de Tucunduva. O negociante, felizmente, já havia desembarcado e estava na casa de moradia, a discutir com a tia Gertrudes, a velha dona do sítio, e na galeota apenas estavam os dois remeiros, dois tapuios que olhavam com indiferença para os tripulantes e passageiros do ubá, deixando-se ficar na sua apatia de tapuios indolentes, que de nada se admiravam. Padre Antônio saltou logo em terra e tomou o caminho da casa, para explicar ao regatão, quem quer que fosse, a companhia de Clarinha. Felisberto foi também, para o apresentar à tia Gertrudes, muito conhecida de João Pimenta e muito amiga do Felisberto, que a conhecera em Maués, numa esplêndida festa de sairé, onde a velha sobressaíra no canto e no bailado com que adorava a Virgem Mãe e o seu Menino naqueles poéticos versos tupis, compostos pelos senhores padres da Companhia para o serviço do culto dos índios convertidos ao cristianismo.

Quando o missionário e o Felisberto chegaram à humilde habitação da bailarina do sairé, travava-se uma luta renhida entre a velha e o regatão, que lhe queria impingir um pouco de café, algum tabaco e um corte de chita verde, a troco do peixe salgado e do cacau que a tapuia armazenara aquele ano no seu quarto de dormir. A velha, parecendo amestrada por dura experiência, não queria largar mão dos seus gêneros com a facilidade cobiçada pelo mercador ambulante. O regatão fazia grandes gestos de enfado, jurava, ameaçava de se ir embora, e de nunca mais tornar a pôr os pés no porto de Tucunduva; pois que não era nenhum marinheiro desgraçado, capaz de roubar os fregueses, nem precisava de adular a gente de pouco mais ou menos. Prezava-se de negociante sério, de homem respeitável, e sempre respeitado, andava naquela vida porque queria, e se o duvidasse a Gertrudes, que fosse perguntar a toda a vila de Silves. E nessa torrente de palavras grosseiras, proferidas com grave serenidade e segurança, menoscabava o cacau que aquele ano estava por dez réis de mel coado no Pará e dizia horrores do peixe de que ninguém queria a arroba por meia pataca porque dos lagos chegavam batelões atopetados de pirarucus e tambaquis, de que já se não sabia o que fazer; ao passo que o café, esse fiava mais fino. Em todo o Amazonas já não se bebia senão chá de folhas de café, porque o pouco grão que aparecia no mercado era por um despropósito. O tabaco também rareava, por causa da praga que dera em Santarém e em todo o Tapajós. A chita estava por um preço de hora da morte por causa da guerra dos Estados Unidos, valia quase tanto como a seda. A falar a verdade, terminava em tom decidido, não faço empenho, tia Gertrudes, em lhe receber o cacau e o peixe, é sim ou não, pegar ou largar, porque cacau não me há-de faltar por toda esta viagem. E fazendo menção de retirar-se, o regatão voltou-se. Padre Antônio reconheceu admirado o capitão Manuel Mendes da Fonseca, o coletor de Silves, em pessoa.

Uma dupla exclamação de surpresa cruzou os ares:

- Ó senhor capitão Fonseca!

- O Reverendíssimo aqui!

Seguiram-se as explicações. O capitão Fonseca, pasmo de o ver ali são e bem disposto (até lhe parecia que engordara nos sertões da Mundurucânia), contou o que se sabia em Silves sobre padre Antônio de Morais. Repetiu por miúdo a narrativa do Macário, o encontro dos mundurucus, a guerra destes com os parintintins, a surpresa, a luta do Macário com os índios, a morte do vigário e a salvação miraculosa do sacristão, que devera a liberdade e a vida à intervenção duma cutia misteriosa. Toda a população de Silves, sem distinção de cor política e de crenças religiosas, ficara profundamente consternada com tão triste acontecimento. O próprio Chico Fidêncio, que outrora não poupava os padres nas palestras à porta do Costa e Silva, chegando mesmo a censurar os modos de S. Rev.ma e a duvidar da sua sinceridade, era agora um dos seus maiores glorificadores, tendo até escrito uma correspondência em que' o comparara a S. Francisco Xavier. O professor Aníbal Americano Selvagem Brasileiro escrevera um hino intitulado - O missionário da Mundurucânia, e uma oração fúnebre para ser publicada no Democrata.

Toda a gente na vila estivera persuadida da morte de padre Antônio até à véspera da partida do capitão Fonseca, quando viera uma notícia no Diário do Grão-Pará, que ele, o único na vila, assinava a pedido de Elias, e na qual se dizia que padre Antônio estava vivo. Nesse mesmo dia o Chico Fidêncio recebera uma carta do Costa e Silva, que em viagem para o Madeira, escrevera de Maués, relatando o encontro que ali tivera com o neto dum tuxaua mundurucu, o qual encontrara S. Rev.ma à margem do Sucundari, muito assustado ainda por ter escapado às mãos dos caboclos bravos, e depois parece que fora convertido pelo padre, ao que se podia depreender da meia-lingua do neto. Acrescentava o Costa que já havia escrito para o Pará ao seu correspondente para dar essa notícia, e assim se explicara como a gente do Diário do Grão-Pará soubera que padre Antônio estava vivo. O que ele capitão Fonseca não podia conseguir era conciliar a narrativa do Macário com o fato de estar vendo ali são e salvo, e até mais gordo, o senhor vigário. O Macário, estava agora convencido, pregara uma formidável peta à população de Silves. S. Rev.ma não morrera tal, porque o Fonseca ali o estava vendo vivo. Que tremendo maranhão!

E lá estava, aquele mentiroso, recebendo visitas e felicitações, honrado e festejado como se fosse um homem importante, e até já se dizia, suprema extravagância! que seria condecorado com o hábito de Cristo! Condecorado aquele bobo? Não admirava, os tempos estavam muito mudados, os homens já não eram apreciados pelo que valiam, mas pelas mentiras e calúnias que pregavam.

Quando ouviu a história narrada pelo sacristão Macário, padre Antônio de Morais sentiu um vivo rubor subir-lhe ao rosto e afoguear-lhe o cérebro, perturbando-lhe a vista. Um grande embaraço o enleava, e não sabendo o que devia dizer, ouvia silencioso o capitão Mendes da Fonseca falar, numa voz que a custo, por fim, conseguira guardar a serenidade do principio, como se um vivo despeito o agitasse. Esse embaraço foi, porém, passageiro. Compreendeu de relance a gravidade da situação em que se achava, o perigo que corria em desmentir o astuto sacrista cuja inventiva o maravilhava, dando-lhe uma forte vontade de rir da história da cutia misteriosa. Era forçoso fazer o sacrifício da verdade ao plano que engendrara, cujo resultado dependia da completa ocultação da falta cometida e que devia ser sepultada em eterno silêncio. Quando o capitão acabou de falar, o padre, disfarçando com dificuldade a pungente emoção, sentindo a mentira queimar-lhe os lábios, na sensação física do remorso, explicou que o Macário se enganara, mas não mentira. E como se tivesse pressa de se ver livre daquele penoso sacrifício, selando com a mentira o mistério dos três meses passados à sombra das laranjeiras em flor no sítio do Sapucaia, acrescentou em palavras breves, que naturalmente o Macário o tivera por morto, mas que a verdade era outra. Levado pelos índios, desmaiado e malferido, fora entregue aos cuidados de um pajé que o curara com o suco de algumas plantas. Os selvagens o haviam poupado por lhe conhecerem o caráter sacerdotal pela batina e pelo chapéu de três bicos, e o tinham posto em liberdade, depois de algumas conversões que fizera. Que tendo passado três meses nas selvas, pregando o Evangelho, resolvera regressar à sede de sua paróquia, e que achando-se à margem do Abacaxis encontrara uma família de tapuios, avô, neto e neta, que lhe oferecera passagem até o Amazonas.

- Por sinal, confirmou o Felisberto que tendo acabado de conversar com a tia Gertrudes, intervinha na conversação, encantado por auxiliar a S. Rev.ma na peta que pregava ao demônio do regatão: por sinal que nós não conhecíamos a S. Rev.ma e pensávamos que era a alma do padre santo João da Mata.

- A confusão, disse o Fonseca, não era lisonjeira para S. Rev.ma. Padre João era um pândego da força do nosso defunto padre José, que Deus haja, e não podia comparar-se a um confessor da fé.

Inclinou a cabeça em sinal de respeito, tomou a mão de padre Antônio, beijou-a e prosseguiu:

- Faz o Reverendíssimo muito bem em voltar para a sua paróquia. Não são somente os gentios que precisam da luz do Evangelho. Se o Reverendíssimo não nos tivesse deixado, quero crer que não me viria encontrar por estas paragens, rebaixado a fazer concorrência ao tratante do Costa e Silva, vindo pessoalmente regatear com esta súcia de caboclos ignorantes e vadios.

Fez uma pausa, e como S. Rev.ma se mostrasse admirado do que ele dizia, continuou:

- Fui exonerado de coletor...

- O senhor exonerado!

- É verdade, tornou o capitão. Fui exonerado, e logo vi que esta notícia causaria espanto a todo o homem inteligente. O miserável do José Pereira, que eu tinha deixado tomando conta da coletoria quando fui aos castanhais para o S. João, armou-me uma tal intriga, o safado

- perdoe-me o Reverendíssimo a expressão - que por mais empenhos que metesse, por mais explicações que desse, o cônego Marcelino, meu inimigo figadal, aproveitou a ocasião e fez-me aquela desfeita, e ainda por cima teve o descoco de dizer que a coisa ficava só na demissão porque eu tinha bons padrinhos!

Dos lábios contraídos pelo despeito escapou-lhe um insulto, reprimido em meio.

- Filho da...

E emendou:

- Filho da mãe!

Depois fazendo um esforço para conter-se continuou por largo tempo vazando a bílis acumulada desde que regressara dos castanhais, sem atender a que estavam de pé, ele, o padre, o Felisberto e a tia Gertrudes, e que teriam naturalmente alguma coisa .que fazer. Relatou miudamente as intrigas de José Pereira, o tal moço de bons costumes que, o Fonseca sabia agora positivamente, vivia amigado com a cunhada; os passos que dera para se justificar, a insistência do cônego Marcelino em o demitir, a situação falsa em que esse fato o colocara em Silves, a perda da confiança do Elias, a necessidade de apurar capitais para satisfazer os credores exigentes e a dura contingência em que se via de descer da sua dignidade para vir correr os rios do sertão, fazendo o comércio de regatão, muito rendoso de certo, mas indigno de um homem que era o verdadeiro chefe conservador de Silves, que se correspondera com o João Alfredo e com o cônego Siqueira...

- E tudo isto por quê? acrescentou com profunda amargura. Tudo porque tenho a infelicidade de ser casado com uma mulher louca e porque V. Rev.ma lembrou-se de catequizar mundurucus. Se a tal D. Cirila, que o diabo carregue, não se tivesse lembrado de ir passar o S. João nos castanhais, o José Pereira não teria entrado no exercício da coletoria e não saberia o que soube. E se V. Rev.ma não tivesse-se lembrado dos mundurucus, teria ficado em Silves, e teria-me valido, afirmando ao cônego Marcelino que eu não sou pedreiro-livre, fui sempre muito bom católico, e até quis publicar a Aurora cristã, com o professor Aníbal Americano. Abandonaram-me, deixaram-me só. As intrigas daquele patife do José Pereira ganharam a causa, fui demitido e por muito favor não me processaram. O mundo anda agora assim, cada um cuida de si. A senhora D. Cirila, continuou com um despeito visível, sacrificou-me aos castanhais, onde eu, seguindo o conselho de V. Rev.ma, não queria ir, e bem me arrependi de lá ter ido! V. Rev.ma abandonou-nos pelos mundurucus! O Chico Fidêncio infamou-me com o seu contágio. O sem-vergonha do José Pereira furtou-me o lugar. O Elias desconfiou de um freguês velho que tanto lhe tem dado a ganhar. O cônego Marcelino esqueceu-se de que eu era um correligionário firme e leal que sempre acompanhou o governo. O inspetor do tesouro não se lembrou de que o hospedei como a um príncipe quando esteve em Silves. O João Alfredo, que persegue os bispos, conserva na presidência um padre carola e perseguidor dos maçons! E até o miserável do Costa e Silva lembra-se de me querer tirar a freguesia do sertão!

E resumiu num largo gesto o egoísmo de todos os homens:

- Tolo é quem neles se fia.

E como querendo esquecer o desgosto que lhe causava a recordação de tantas ingratidões, voltou-se para a velha tapuia:

- Tia Gertrudes, é pegar ou largar. Quer o negócio ou não quer? Não posso perder tempo e por isso avie-se.

E como a velha hesitasse, encorajada pela presença do padre e do Felisberto, o capitão decidiu:

- Não fazemos nada, vou-me embora. Deixe que o seu peixe apodreça, e o seu cacau pendure-o ao pescoço.

E, enfadado, tomou o caminho do porto, acompanhado de padre Antônio, que receava o encontro dele com a Clarinha. Mas o capitão Fonseca tinha o espírito por demais atribulado para se ocupar com as pessoas que estavam no ubá. Ao despedir-se de S. Rev.ma, torturado pela idéia da sua decadência, disse-lhe:

- Sabe quem está agora muito graúdo em Silves? É o Macário, aquele sujeito que eu vi levar bofetadas do padre José, que Deus tenha! Não cabe em si de contente, o malandro! É até um escândalo com a Madeirense todos os dias pelo quintal! A Chica da Beira do Lago já teve o arrojo de dizer que ele quando quer um milagre, é só pedir por boca. E vai ser condecorado! Enfim, em Silves quem vale hoje é o Macário.

E acrescentou, depois de uma pausa:

- E o Sr. José Antônio Pereira, moço de muito bons costumes, amigado com a cunhada, todavia. Hoje, em Silves, não há como pregar petas e inventar calúnias, para ser graúdo. Os homens sérios já não valem nada! O Reverendíssimo precisa muito de voltar para lá. Os costumes estão relaxados, que é uma pouca-vergonha. O Mapa-Múndi deu de chicote na irmã, a D. Dinildes, porque a encontrou com o Manduquinha Barata. O Macário vive com a Luísa, o Valadão e o João Carlos brigaram em casa de D. Prudência, o José Pereira está roubando o governo. Silves já não vale nada. Os homens sérios são escorraçados. Só um vigário do caráter e austeridade de V. Rev.ma a poderá salvar da depravação em que se acha a vila.

E com gesto ameaçador, mostrando a mão fechada à vila invisível, murmurou com rancor:

- Bandalheira, pouca-vergonha!

Embarcou na galeota, depois de despedir-se de S. Rev.ma. Quando ia penetrar na tolda, voltou-se de repente para o padre que ficara na praia, seguindo-o com o olhar:

- É verdade, quer ver o tal periódico?

- Que periódico?

- O Diário do Grão-Pará, tenho aqui debaixo da tolda, embrulhando as botinas.

A galeota partiu, deixando o vigário de Silves, absorto na leitura da seguinte local :

"PADRE ANTÔNIO DE MORAIS. - Um estimado negociante de Silves, o Sr. Costa e Silva, achando-se de passagem em Maués, ali encontrou noticias deste arrojado missionário, que toda a gente supunha morto às mãos dos parintintins, segundo a narrativa do seu companheiro de viagem. Parece que o ardente vigário de Silves escapou milagrosamente a uma morte afrontosa, e tem prosseguido na gloriosa tarefa de catequizar os índios da Mundurucânia. Diz-se mesmo que padre Antônio conseguiu trazer ao aprisco do Senhor, entre outras ovelhas desgarradas, um célebre tuxaua, nomeado pelas suas façanhas guerreiras, e entre os pobres moradores do Canumã temido pelas suas muitas tropelias. Se isso é verdade, como assegura o nosso informante, digno de todo o crédito, padre Antônio tem prestado e está prestando inolvidáveis serviços à religião e à civilização do Amazonas. Não conviria que o governo mandasse alguém procurar na Mundurucânia esse novo Anchieta, que estará talvez, à hora em que escrevemos, perdido nos sertões do Sucundari, sem meios de regressar à sua paróquia? O governo não deve ficar indiferente à sorte dum sacerdote que tão digno se tem feito da estima e veneração dos seus contemporâneos.

"Padre Antônio é nosso compatrício. Filho do nosso amigo senhor capitão Pedro Ribeiro de Morais, uma das influências conservadoras do Igarapé-mirim, fez brilhantes estudos no Seminário maior, sendo o mais aproveitado discípulo do reverendo padre Azevedo, o maior teólogo do Norte do Império."

A velha tapuia do sítio de Tucunduva facilmente aceitou a proposta que lhe fizeram de hospedar a Clarinha, enquanto o avô e o irmão iam levar o senhor padre a Silves. O plano de S. Rev.ma era procurar em Silves um sitiozinho, em que pudesse estabelecer a afilhada de padre João da Mata longe das vistas do Chico Fidêncio e dos falatórios invejosos do beatério, numa pequena situação poética e retirada como o sítio de João Pimenta, uma reprodução do encantador bom-retiro que o seu amestrado colega soubera criar à margem do furo da Sapucaia, entre castanheiros gigantescos e sombrios e laranjeiras floridas, dum perfume afrodisíaco de noivado. Aí poderiam viver horas esquecidas, afastados do bulício da freguesia, a salvo dos comentários azedos da grei dos pedreiros-livres, com o recém-converso Chico Fidêncio à frente; ai libaria ele o néctar delicioso do amor daquela mameluca feiticeira, cujas mãos delicadas e polpudas entrelaçariam olorosas flores aos louros da coroa de glória com que a gratidão popular lhe enalteceria a fronte inteligente. Um sonho encantador que S. Rev.ma comunicou à amante, com muitas carícias e promessas, à sombra de uma goiabeira do porto, afirmando que por pouco tempo a deixava naquele exílio de Tucunduva, e não tardaria em a mandar buscar, se não pudesse vir pessoalmente, para não despertar suspeitas. Do Tucunduva a Silves havia razoável distância. A largura do Amazonas, interposta entre o sítio do rio Ramos e o Paraná-mirim do Saracá, favorecia o mistério. Mais tarde, quando a curiosidade pública estivesse amortecida e os silvenses, fartos de olhar e admirar o seu ressuscitado vigário, tivessem voltado aos seus lazeres ordinários, a Clarinha, envolta sempre em romanesca sombra, iria para algum sítio do rio Urubus ou mesmo do lago Saracá, onde o padre a visitaria a miúdo, salvando as aparências, e não acordando a desconfiança do Chico Fidêncio do sono profundo em que a mergulhara a inventiva feliz do prestimoso Macário.

Clarinha não gostou do engenhoso plano que S. Rev.ma lhe expunha entre mil beijos e carícias. Na ingenuidade do seu amor de mameluca, confiante e sincero, não compreendia a necessidade de todos esses mistérios e precauções de que se queria cercar o senhor padre, para esconder aos olhos dos seus paroquianos as relações com uma moça solteira e livre. Um grande pesar lhe causava o receio manifestado por S. Rev.ma de que se conhecessem esses amores que, havia bem pouco ainda, nos delírios da paixão, ele confessara serem a suprema felicidade de toda a sua vida de privações e misérias. Repugnava à sua natureza franca aquela hipocrisia. Dera-se sem reserva, sem pensamento oculto ou interesseiro, sabendo perfeitamente que dava o que tinha de mais precioso, entregando vida, alma e coração àquele belo padre melancólico que a fazia sonhar com Anjos do Senhor. Agora que tudo estava consumado, que lhe importava que todos o soubessem? Não sentia vergonha alguma da sua falta, julgava-a muito natural, e qualquer moça, colocada nas suas circunstâncias, faria a mesma coisa. O seu espírito, elevado pela educação que lhe dera o padrinho acima da sua condição social, não podia simpatizar com os da sua classe, e aspirava a relações mais cultas e finas. Padre Antônio estava tão acima dos brancos que ela conhecera na sua tranqüila e desconhecida existência, como esses brancos, regatões na maior parte, eram superiores aos reles tapuios, semicivilizados, com quem a sua origem e condição a obrigavam a tratar. Como moça de aspirações, escolhera para amante o homem mais distinto que encontrara até o momento em que o coração falou. Se esse homem não podia ser seu marido, que importava isso? A sua avó só casara depois de ter tido a Benedita. Esta não casara nunca, e de seus amores com padre João da Mata nascera a Clarinha, pelo menos, ela assim o' supunha agora. Que havia de admirar que Clarinha seguisse o exemplo da mãe e da avó?

As despedidas foram tristes. Padre Antônio embarcara no ubá, e Clarinha, de pé sobre a ponte do sítio, seguira com os olhos rasos de lágrimas a embarcação que se afastava, levando o eleito do seu coração a lugar donde talvez não voltasse a consolar-lhe a triste viuvez. Mas quando o ubá se sumiu por detrás dum espigão da margem, perdendo de vista o vulto encantador da rapariga, padre Antônio pôs-se a pensar em Silves, nos seus paroquianos, na recepção que o esperava e no futuro que o aguardava lá, bem longe desse paraíso que deixara entre os castanhais sombrios.

Sentado no fundo do ubá, com a cabeça descoberta, tinha os olhos embebidos na vaguidão do espaço, e cismava, silencioso e imóvel, indiferente à marcha da embarcação que o levava ao seu destino.

A narração do capitão Fonseca acalmava os sobressaltos e receios que lhe havia causado a história do Felisberto ultimamente. Tudo lhe indicava que a sua falta não seria descoberta. A força inventiva de Macário o colocara muito alto na opinião dos seus paroquianos e por uma felicidade realmente inaudita, a tola parolice e a pueril vaidade de Felisberto, que muito poderiam ter prejudicado a reputação do padre, a haviam servido maravilhosamente, graças à credulidade tapuia e à azáfama novidadeira do serviçal e católico Costa e Silva. Assim o Felisberto, aquele palerma que ali ia, remando rudemente, com a fisionomia radiante de prazer, prestara a padre Antônio de Morais um relevantíssimo serviço! Padre Antônio não podia deixar de sorrir, lembrando-se da figura que faria o Felisberto proclamando-se neto dum tuxaua, convertido por padre Antônio, o melhor padre santo que jamais fora àquelas remotas paragens do Guaranatuba; e da precipitação com que o Costa e Silva, interpretando mal a meia-língua do Felisberto, não quisera ouvir mais nada e escrevera para o Pará, a transmitir a estupenda notícia, que revelava aos povos a existência de padre Antônio de Morais, o missionário da Mundurucânia.

Sim, o Felisberto lhe prestara um relevante serviço, mas a sua presença em Silves, no mesmo ubá, e naquela ocasião, não seria tão comprometedora como a de Clarinha? O Costa e Silva o reconheceria, puxaria conversa com ele, e o rapaz, que tudo dava para falar, teria tempo de sobra para entrar em pormenores que sacrificariam o efeito das suas primeiras palavras. Já agora, quando estava perto de tocar a meta dos seus desejos, não devia cometer tão grave imprudência como a de aportar a Silves em companhia do falador Felisberto. Procuraria uma boa combinação para deixar o rapaz em algum sítio do Paraná-mirim de Silves, e chegaria à vila acompanhado somente pelo velho tuxaua, cuja estupidez absoluta lhe oferecia absoluta segurança.

Chegaria a Silves, cheio de glória e de prestígio, e desde já imaginava a recepção que lhe fariam os habitantes deslumbrados...

Haveria na povoação um movimento desusado. Os habitantes correriam para o porto, levados duma curiosidade simpática, que faria brilhar a alegria em todos os semblantes. Velhos, moços e crianças andariam apressados, formariam grupos à beira do rio, conversando em voz alta, trocando observações rápidas, comentando o fato extraordinário. O alferes Barriga, ou na sua falta o vereador João Carlos, reuniria a Câmara Municipal para incorporada, com o porteiro e o secretário, encaminhar-se solenemente para o porto do desembarque. O tenente Valadão, com a sua ordenança, guarda nacional de jaqueta e chapéu boliviano que olharia com ar palerma para os cães que lhe ladrassem à farda, destacar-se-ia do grupo das pessoas gradas pelo fitão a tiracolo, verde e amarelo. Os sinos da Matriz repicariam alegremente, tangidos por moleques travessos. D. Prudência, D. Dinildes, D. Eulália, as senhoras todas estenderiam sobre o parapeito das janelas as suas colchas de cores vivas. O professor Aníbal releria o discurso preparado para aquele solene momento, e o Chico Fidêncio, escamado, indeciso, roeria as unhas e fumaria o seu cigarro apagado.

À proa dum ubá selvagem, remado por um legitimo tuxaua, vinha padre Antônio de Morais, o missionário da Mundurucânia.

Assim que chegasse ao presbitério, rompendo a custo a turma de devotos que o queriam admirar e lhe pediam a benção, o Macário se lhe rojaria aos pés confessando o seu macavelismo, contando-lhe tudo, habilitando-o a combinar os fatos e as narrativas...

A Clarinha ficara no Tucunduva, o Felisberto no Paraná-mirim. O velho João Pimenta era como se fosse mudo. O passado ficaria sepultado para sempre no esquecimento. Nem ele próprio se lembrava já. só via o presente, o rio, a floresta, o ubá em viagem, o sol de dezembro acabando de colorir-lhe a face, e o futuro, obscuro ainda, mas envolto em nuvens cor-de-rosa. O sol era forte. Na fronte espaçosa do padre bagas de suor brilhavam. A emoção intensa fazia-lhe subir o sangue ao cérebro. Meteu a mão na algibeira da batina, para tirar o lenço. A mão encontrou o exemplar do Diário do Grão-Pará que lhe dera o capitão Fonseca.

Aquele quadrado de papel, inutilizado pela tinta de impressão e machucado pelas mãos do capitão Mendes da Fonseca para lhe servir de invólucro às botinas, era o lábaro em que se inscrevia a legenda sublime do seu futuro, da sua glorificação. Abriu-o, recostando-se no banco central do ubá, para o reler melhor, e procurou a local em que o seu nome fulgurava numa constelação de letras pretas, que se destacavam da alvura do papel barato. Era na segunda página, em meio da primeira coluna, e todo o resto da folha ficava às escuras, sumia-se numa confusão de caracteres baralhados, ilegíveis no amontoado de tipos duma só cor e duma só forma.

Leu e releu a local, primeiro de relance, na ânsia de chegar-lhe ao fim, para gozar duma vez, a haustos largos, o incenso finíssimo do elogio entusiasta do gazeteiro paraense. Depois, devagar, soletrando as palavras, como o provador que sorve delicadamente o licor precioso e raro, repetiu a epígrafe, e notou com mágoa, que a correção tipográfica não era perfeita. O s final do seu apelido de família estava virado, por um descuido imperdoável do revisor, um erro que lhe irritava os nervos. Desde então, cada vez que corria os olhos pelo artigo, deleitando-se na leitura das frases encomiásticas, de que uma emanação sutil lhe tonteava o cérebro, o maldito erro tipográfico dançava-lhe diante da vista, tomando proporções estranhas e fantásticas, animando-se. Parecia que aquela letrazinha, comicamente retorcida, fazia-lhe caretas e o provocava com esgares bufos, duma ironia mordente e cáustica, que lhe amargurava o gozo inefável da vaidade satisfeita. Era como se no meio dum concerto de hosanas festivais, de entusiásticos aplausos, uma voz discordante lhe atirasse à cara a mentira de toda aquela glorificação em vida, que o Macário em apuros começara e que a parolice balofa e vaidosa do Felisberto, aproveitada por gazeteiros crédulos e desocupados, havia completado. Um assovio estridente, cortando uma salva de palmas, não produziria sobre o ator transportado de júbilo, efeito diverso do que aquele descuido de revisão, aquele cômico s virado, como um clown a dar cambalhotas no tapete, produzia na alma extasiada do missionário da Mundurucânia.

A princípio um grande desapontamento; depois uma desilusão profunda, logo substituída pela reação, do amor-próprio atuando sobre uma consciência maleável e bonacheirona. Ao menos representara bem o seu papel, e não era sua a culpa, se as circunstâncias e só as circunstâncias não lhe haviam permitido realizar realmente os feitos gloriosos, cuja fama vinha tão de improviso engrinaldar-lhe a fronte. Que outro sacerdote nas suas condições, no nosso século prosaico e interesseiro, abandonaria os cômodos duma vigararia sossegada e pouco trabalhosa, para aventurar-se em afanosa missão aos rios do interior da província, povoados de índios e de perigos sem número, passando fomes, frios, vigílias e árduos trabalhos, arriscando a vida, dormindo ao relento, calejando as mãos nos remos, e deixando-se martirizar pelos terríveis insetos das margens dos rios, e tudo por um pensamento de religião e caridade? D. Antônio imaginara a catequese em um grande vapor, o Cristóloro, com todas as comodidades e todas as solenidades; ele padre Antônio, a tentara numa velha montaria, numa casca de noz, privado de todos os recursos. Entretanto D. Antônio era um príncipe da Igreja, e ele um pobre vigário sertanejo, sem posição e sem nome. Que outro padre moço, recém-saído do Seminário grande, tendo diante de si um futuro plácido e tranqüilo de pároco bem pago e bem nutrido, se meteria nos ínvios matos da Mundurucânia, sem outro fim senão o de batizar índios, sem outro auxilio que não fossem o próprio esforço e a própria dedicação! D. Antônio era bispo, e doutrinava nas cidades, comodamente sentado na sua cadeira sagrada... Se padre Antônio de Morais não convertera índio algum, se não fora ferido pelos parintintins, não era porque se poupasse a trabalhos e sofrimentos, mentia a lenda jornalística, mas pela força das coisas, pelas circunstâncias especiais em que se achara, pela impossibilidade material em que se vira de continuar a viagem, depois da fuga de Macário. Mas, em compensação, sofrera tormentos cruéis, escapara de morrer flechado por mundurucus, de ser devorado por feras nos sertões do Sucundari e de ceder a uma moléstia pertinaz, resultante das fadigas e privações aturadas ao serviço do Senhor.

E fazendo justiça aos seus sentimentos, no ardor da sua própria apologia perguntava a si mesmo, sondando a consciência desinteressada, qual fora o móvel que o fizera deixar Silves; porque, tendo perdido a roupa e o farnel da viagem no sítio do Guilherme, teimara em viajar na pequena montaria de pesca, remando como qualquer caboclo; porque passara noites sem dormir; porque suportara com paciência as picadas dos carapanãs; porque se afoitara a dirigir a palavra aos índios do ubá; porque fizera tudo isso? Algum pensamento egoísta o guiava em passos tão arriscados e cheios de abnegação? Não, decerto, respondia a complacente consciência, fora o ardor religioso, o amor da catequese e da civilização do Amazonas que o levara a tais extremos de dedicação e de sacrifício. Logo, concluiu com a lógica admirável aprendida nas lutas com o maior teólogo do Norte; logo nem por estar vivo e são, nem por ter deixado de converter mundurucus, era menos digno dos elogios da fama e da reputação alcançada nas duas províncias que o Amazonas banha.

Satisfeito com este raciocínio do amor-próprio, aplaudido pela consciência, desviou os olhos do zombeteiro s, e dobrou o jornal para o guardar. O cabeçalho do periódico trazia em letras graúdas -Diário do Grão-Pará. A princípio distraidamente, e logo depois com interesse, padre Antônio pôs-se a ler o título, os dizeres permanentes, o ano, a data que trazia o jornal. Era mesmo o Diário do Grão-Pará, então a folha mais importante da província, que espalhara as suas façanhas aos ventos da publicidade.