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O precursor do abolicionismo no Brasil/2.10

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A INJUSTIÇA DE NABUCO

O artigo, retrocitado, revela ainda um fato interessantissimo, que passou até agora despercebido. Embora o tribuno baiano e Joaquim Nabuco hajam vivido, durante tres anos, na mesma cidade, uma pequena povoação de menos de vinte mil almas, que tal era São Paulo, de 1866 a 1868, embora ambos defendessem a mesma causa e sustentassem os mesmos ideiais emancipadores, sempre me causou extranheza que nada constasse de positivo acerca da amizade de ambos.

Eles fazem, cada um por seu lado, a respeito do outro, o mais completo e o mais inexplicavel silêncio. Parece uma palavra de ordem.

Admitir a hipotese de que não hajam travado relações ou que não tenha havido ocasião de serem apresentados, não é nada facil e tem todo o aspeto de cousa inviavel, senão mesmo impossivel. Gama, nos anos citados, já era muito conhecido pela publicação das suas “Trovas Burlescas”. Colaborava assiduamente, em jornais. Acresce que o caso de sua demissão se deu no ano de 1868, ultimo que Nabuco passou entre nós, e teve a repercussão de um escândalo tão notorio que não podia deixar de ter impressionado o futuro diplomata pernambucano.

Este, que escrevia no “Radical Paulistano”, que organizara as festas em homenagem a José Bonifacio, o Moço, quando este regressou a São Paulo, depois da moção de julho de 1868, foi quem falou em primeiro logar no banquete que o Partido Liberal ofereceu ao Andrada, partido a que pertencia Gama. E o negro e José Bonifacio já eram velhos amigos, tanto assim que as “Trovas Burlescas” têm, no apendice, poesias do sobrinho e neto do Patriarca da Independencia.

Não póde haver a minima vacilação em que eles se conheceram. Entretanto, um não fala do outro. E o silêncio é ostensivo demais para que seja gratuito ou para que nasça de mera displicência ou de indiferênça de ambos.

Devia haver má-vontade e antipatia marcada. No livro de Carolina Nabuco, a respeito do pai, encontrei uma prova claríssima dessa malquerença. Prova flagrante que está na pagina 136 da segunda edição. Diz ela:

“Foi com Patrocínio que o povo brasileiro entrou no combate da liberdade. “O grande rio da abolição, disse Nabuco aos estudantes de Belo Horizonte em 13 de outubro de 1906, desaguará na posteridade por luas grandes bocas, das quais, uma democrática, será chamada José do Patrocínio, e outra, dinástica, Princeza Isabel”.

O trecho é significativo. Encerra uma frase da filha, mostrando que, para ela, povo brasileiro é somente o carioca e que, portanto, o abolicionismo autêntico era o da Capital Federal. Emquanto povo da linda Rio de Janeiro não se envolveu, com Patrocínio, na contenda, a questão não assumira fóros de nacional. Todos os esforços anteriores eram preliminares secundários, tentativas anódinas e anónimas.

E dá uma frase do pai duplamente infeliz: injusta para com todos os lutadores que vinham pelejando antes do ardoroso jornalista do Rio aparecer, e entre os quais Gama ocupa, incontestavelmente, logar de primeiro precursor de acção, de pioneiro destemeroso, surgido no momento em que ninguem falava nem aludia ao problema negro porque era crime duvidar da legitimidade da instituição servil; e corteza no serodio rapapé a uma heroina da hora undécima, que só figurou no caso porque, como Regente do Império, lhe coube assinar a lei aurea. Alguem havia de assiná-la: era a justissima sentença de morte que o povo lavrara contra a obstinação escravocrata da Corôa. E a Princeza só a firmou quando não lhe foi mais possivel protelar o amargo cálice.

Mas, ambas as frases denunciam a quisilia dos Nabucos pelo abolicionista baiano, um gladiador gigante que é um padrão de glória e de orgulho do caracter nacional. Não vem ao caso discutir o tamanho da envergadura dos dois ilustres defensores da causa negra. Mas, se Patrocínio preside a uma das correntes do rio da abolição, porque se lhe deram a este apenas duas bocas para desaguar na posteridade? A foz não poderia ser em feitio de delta, com outros tantos numes tutelares nos seus varios braços? E seria somente o gosto muito oratório de fazer uma frase que levava Nabuco a excluir os outros grandes abolicionistas dessa consagração, que ele concedeu até a quem nada tinha que ver com o caso? Ou essa restrição tão exclusivista foi feita pensada e propositadamente para evitar que Gama figurasse á entrada de uma das rias mais volumosas, uma vez que o baiano não poderia servir de escudeiro num prélio em que fôra cavaleiro audaz e da primeira linha?

A Questão Juridica” retro citada, com o episódio que Gama narra, sem rebuços, sem meias palavras, os comentarios finais de que o lardea, desvendam o pretenso enigma: havia malquerença velha, provocada, sem dúvida, pelas glosas do baiano á anedota veridica contada no trabalho. Gama conhecia a passagem, como relata, desde 1853 ou 54, isto é, desde o tempo em que era ordenança do conselheiro Furtado de Mendonça. E foi em virtude de ocupar esse cargo que pôde ler, sobre a mesa do chefe de policia da Capital, e pode copiar, o aviso-confidencial do Ministro da Justiça do Império, insinuando a solução dada posteriormente á libertação dos dois negros boçais, recolhidos ao Jardim Botânico. Naturalmente, Gama não se limitou a tomar os preciosos apontamentos para guardá-los. Comentou-os mais de uma vez, quem sabe se até durante a permanencia de Nabuco em nossa terra.

Vem daí a má-vontade. Nabuco, não podendo negar a obra do baiano ilustre, porque grande e notavel demais para ser obumbrada, fez-lhe em volta a conspiração do silêncio. E mesmo vinte e quatro anos depois do passamento de Luiz Gama, o diplomata pernambucano não pode fazer-lhe justiça porque não sabe perdoar-lhe a desairosa, bem que não contestada, referencia á memoria paterna.

E José do Patrocinio, que nada tinha com o caso, que tributava uma viva e sincera admiração pelo negro indomavel [1], abiscoitou, sem o querer, o proeminentissimo lugar de “primus inter pares” da abolição.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Uma prova disso está em que Patrocinio, acompanhado de Quintino Bocaiuva, se abalou do Rio para vir assistir-lhe ao enterro, não logrando, infelizmente, chegar a tempo.