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O precursor do abolicionismo no Brasil/2.11

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O CHEFE INCONTESTADO

Essas suas intransigentes atitudes, de quem não admitia tibiezas ou conciliações, sob nenhum pretexto, com a causa adversa aos escravos, essa inaudita audácia de enfrentar os homens que mais podiam, armado apenas de seus sentimentos humanitários e de sua compreensão do direito, foram aos poucos fazendo dele, para a generosa mocidade do tempo, um campeão e um lider. Sem o procurar, talvez mesmo sem o desejar, sem gastar o o minimo esforço nesse intúito, Gama encontrou-se, no fim de sua vida, o legítimo chefe da mocidade abolicionista e de todos os espiritos adiantados de São Paulo.

Quem frizou bem essa fase dos dois últimos anos da vida de Gama foi Eloi Pontes, na sua magnifica “Vida inquieta de Raul Pompéa”, revelando como esses moços, tanto de São Paulo, como de fóra, sentiam a ascendência do negro admiravel, seguindo-lhe a orientação revolucionária. Aceitavam-no como um super-homem, reconheciam-no como guia e inspirador. Faziam-lhe em volta uma claque intensa em que o valor da solidariedade que lhe prestavam, se aquilata pelo teor dos cerebros que aplaudiam.

A pleiade que sustentava o estandarte abolicionista compunha-se de rapazes que seriam nomes nacionais da maior evidencia poucos anos depois. Era Raul Pompéa, era Valentim Magalhães, era Alberto Torres, era Raimundo Corrêa, era Assis Brasil. Vinha ainda outra enfiada de nomes gloriosos: Augusto de Lima, Silva Jardim, Luiz Murat, Teofilo Dias, Ezequiel Freire, Fontoura Xavier, Antonio Bento, Xavier da Silveira, João Brasil Silvado, O. Macedo Soares. Vinham depois ainda, outros nomes menores, mas que tiveram a sua hora de ressonancia, nesta capital, o jornalista português Gaspar da Silva, Alcides Lima, Ernesto Corrêa, Randolfo Fabrino, Enéas e Gustavo Galvão, Figueiredo Coimbra, Bernardo Monteiro, Henrique Lascasas e outros ainda.

Para quem tivera antes a amizade dos tres Andradas, José Bonifacio, o Moço, Antonio Carlos e Martim Francisco, de Americo de Campos, Ubaldino do Amaral, Furtado de Mendonça, Rui, Salvador e Lucio de Mendonça, Ferreira de Menezes e Martins Cabral, Pinto Ferraz e Dino Bueno, para quem privara, com toda a certeza com Castro Alves, que aqui vivera durante o ano de 1868, e parte de 1869, a lista de seus novos admiradores mantinha-se de nivel altissimo. Gama era realmente um mestre, um mestre de energia.

Raul Pompéa foi o endeusador do grande corifeu da liberdade. As melhores páginas que existem sobre o negro, não ha injustiça para os outros em dizer que foi Raul Pompéa que as traçou. Havendo-o conhecido em 1881, levou anos a relembrar-lhe a figura, a recordar-lhe os feitos, a rememorar a sua atuação dessassombrada no reduto mais forte do escravagismo brasileiro, em que se transformara São Paulo á medida que se ampliavam as suas lavouras de café!

Mas, não foi unicamente ele. Valentim Magalhães dedicara-lhe estas quinze quadras, publicadas no jornal academico “Comedia”, em 1881, tomando como pretexto o chapeu predileto do abolicionista:

O CASTOR DE LUIZ GAMA

Branco, festivo, talhado
pelo molde de Paris,
vai brandamente inclinado
sobre a fronte do Luiz.

E é de um contraste picante
aquele branco impoluto
coroando triunfante
um largo frontal... «de luto».

E lá vai pelas calçadas
a passear a alegria,
espalhando barretadas
ao «até logo» e «bom dia»!

Tem um pelo branco e fino
aquele nobre castor,
sob o qual, de Getulino
ferve o pletro vingador;


Busto a Luiz Gama, erigido, em 1932, na Praça Alexandre Herculano, em São Paulo, por iniciativa dos negros brasileiros

Tem uma candida graça,
um ar de nobre altivez,
como um fidalgo de raça
fumando um belo havanês.

E’ um chapeu-propaganda,
um chapeu-revolução,
que prega, posto de banda,
republicano sermão.

Que mudamente proclama:
— Sou o chapeu democrata
que a cabeça de Luiz Gama
das intempéries recata;

sou um castor democrático.
Respeitai-me! Fazei alas!
Meu poderio simpático
vai dos salões ás senzalas.

Sou da triste escravatura
o esperançoso pendão:
a liberdade futura:
— o castor-Abolição.

E aos quatro ventos da fama,
ei-lo, vai belo, correto,
sobre a fronte de Luiz Gama,
como o branco sobre o preto.

E, risonho, quer nas pazes,
quem nos impetos da guerra,
vai dizendo aos Ferrabrazes:
— Tudo marra! Tudo berra»!

Dentre os escuros «sombreros»,
que dentro dos bondes vão.
como entre rostos severos
brilha um rosto folgazão,

surge impávido, chibante,
da extremidade de um banco,
com certa pose «étonnante»,
o famoso castor branco.

E’ a flor dos democratas,
é o «Canudo»... do Braz,
terror dos escravocratas,
Vendôme de ideais.

«Post scriptum». Não é certa,
A regra do castor talha,
porque quando a chuva aperta,
entrôna o chapeu de palha».

Nos seus ultimos tempos de vida, Gama intensificara a campanha, embora os seus padecimentos fisicos se fossem agravando. E’ que o Brasil se mobilizara todo, desde 1879, no afan de apressar o fim do cativeiro, que nos manchava o credito, lá fóra, como “o último dos paizes civilizados a manter a horrivel instituição”, frase dos abolicionistas, só verdadeira em termos. E Gama, sentindo-se rodeado por essa unanimidade inteletual, em que a energia candente da juventude the prognosticava a próxima vitória, ensaiou mudar os métodos até ali seguidos, provocando a insurreição e a intransigência dos espíritos. Foi esta a maneira que notabilizou, pouco depois, aquele formidavel e tremendo continuador de sua obra, Antonio Bento, “o fantasma da abolição”, como o crismou Raul Pompéa, o homem que levantando a conciência e a vontade amorfa dos negros, deflagraria a serie interminavel de fugas e deserções nas fazendas, e que, desorganizando o trabalho, faria os senhores se entregarem vencidos antes que o Parlamento promulgasse a lei-aurea.

Gama, veneravel da Loja America, tendo dela se valido, durante muito tempo, para os seus labores abolicionistas, fazendo-lhe aceitar, na sua missão de consoladora dos aflitos e desamparados, tambem a redenção dos cativos, resolvera fundar uma entidade especial: o Centro Abolicionista de São Paulo, cuja primeira diretoria ficou assim constituida: presidente, Alcides Lima; vice-presidente, Bernardo Monteiro; 1° secretario, Henrique Lascasas: 2° secretario, Ernesto Corrêa; tesoureiro, O. Macedo Soares; orador, João Brasil Silvado; advogado, Luiz Gama.

A novel sociedade tratou de fundar um jornal, cujo primeiro numero veiu a lume, com o nome de “ÇA IRA”, a 19 de agosto de 1882. Mais ou menos por esse tempo, fundava-se a Caixa Emancipadora Luiz Gama, e, dentro de pouco, São Paulo sentiria o efeito dessa transformação de métodos.

Não era infelizmente o ilustre baiano o que continuava á testa da acção sagrada. A morte o arrebatara pouco antes, negando-lhe a suprema alegria de assistir ao espetaculo apoteotico da abolição. Agora, era Antonio Bento que presidia aos destinos do movimento paulista, e o ex-juiz municipal de Atibaia se revelava guerrilheiro perfeito e adextrado na tática da insídia e da emboscada. Aplicava contra a fúria dos senhores exasperados, os recursos da sagacidade fria: a astúcia contra a violência, a agilidade contra a força, o golpe imprevisto e fulmineo contra as precauções mais meticulosas. A “Intelligence Service” do ditador da Igreja de Nossa Senhora dos Remedios desmontava, peça por peça, dia por dia, a macissa organização escravagista.

Gama haveria, por certo falhado nessa fase do combate. O seu vício da coragem e do peito descoberto o teriam inhabilitado para a luta em que se revelou exímio o chefe dos “caifases”. Mas, pelo testemunho do tempo, não resta a menor duvida de que foi Gama quem traçou o plano dessa nova etapa da campanha. E o juramento feito á beira de sua sepultura, na hora do enterro [1], mostra bem claro que, mesmo morto, Gama continuava a ser o supremo chefe, transubstanciado, agora, em “antepassado”, cujos manes se invocariam como imperecivel ensinamento da grei, como apelo decisivo nas horas de dúvida e desconforto. Chefe, portanto, que transcendera á categoria de idolo.

Os seus amigos do tempo o afirmaram. Gaspar da Silva, jornalista português, que seria, mais tarde o Visconde de S. Boaventura, e que militara com Luiz Gama, na fase do abolicionismo, de 1880 em diante, em o numero 121 da já citada revista carioca, “O Contemporaneo”, dirigida por João de Almeida Pinto, frizou-lhe esse aspeto de chefe incontestado:

“A idéa de que nenhum senhor de escravos, por mais humanitário que seja e por mais comendas que lhe estrelem o peito, terá um enterro como teve Luiz Gama, nem será chorado como ele foi, mitigou-me a dor que me causara este verdadeiro desastre: — a morte do chefe do partido abolicionista.”

A posição do grande negro, entre os seus contemporaneos, estava na conciência de todos. O abolicionismo acabara constituindo-se em organização partidária, sem haver feito propositadamente qualquer esforço nesse sentido. A organização surgia, aos poucos, de per si. E quem lê a historia do Império, acaba verificando que o novo partido transformária o Parlamento Nacional, reclassificando as facções de 1884 em diante.

Gama nem isso viu. Baixara á cova, em plena maturidade, lutador abatido pelo seu proprio esforço, varado pelo cansaço, consumido pela sua propria chama, gigante que empreendera tarefa maior que as do Hercules grego: reintegrar uma nacionalidade no senso moral hereditario da especie.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Ha discordancia, como se vai ver, entre o relato de Raul Pompéa e outra testemunha por mim ouvida, quanto ao homem que provocou o juramento. Raul Pompéa afirma que foi Climaco Barbosa. O sr. Antonio dos Santos Oliveira declara que foi Antonio Bento. E na tradição popular é a este que cabe a iniciativa. Se não foi ele que falou, foi ele que cumpriu religiosamente o juramento, chefiando a insurreição branca.