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O precursor do abolicionismo no Brasil/2.14

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APENDICE

Criatura de que a história se apossou, pela sua atitude de iniciador da campanha abolicionista, Gama teria de caír na legenda e, necessariamente, naquela zona da literatura, em que as mentiras pululam. Frisei esse ponto no início deste volume e prometi documentar o asserto, revelando inverdades que correm mundo a respeito do famoso apóstolo da liberdade negra.

Não quero, por certo, alongar-me demasiado nesse capítulo, mas não devo furtar-me á obrigação de desfazer varias dessas balelas, que aparecem sempre sob a responsabilidade de escritores acatados em nossos meios inteletuais, e até mesmo de nomes que honram nossa literatura. Estes tambem avançaram afirmações inexatas, sem tentar verificá-las. E embora não me tente o desejo de abrir polêmicas, faz parte do plano desta biografia passar em revista as invencionices mais espalhadas e mais berrantes, mostrando-lhes a falta de fundamentação historica e restabelecer, tanto quanto me foi possível, o verdadeiro perfil moral, sentimental e inteletual de Luiz Gama.

A BOA FE’ DE ALBERTO FARIA

Na sua conhecida e muito citada conferencia sobre “Luiz Gama” realizada no Museu Histórico Nacional, em 13 de maio de 1924, o jornalista de Campinas, que era o fundador e ocupante da cadeira n.° 15 da Academia Paulista de Letras, sob o patrocinio de Luiz Gama, contou varias anedotas autênticas da vida do advogado baiano. Entre elas incluiu esta, que Humberto de Campos transportou para o seu “Brasil Anedotico”, (pag. 146, da ultima edição da Livraria José Olimpio):

“Vigoroso e inclemente na sua oratoria, Luiz Gama, o grande negro abolicionista, era, não raro, atacado nos tribunais de modo impiedoso e grosseiro. Certa vez, no Fôro de São Paulo, o dr. Falcão Filho, professor da Faculdade de Direito, exclamou, no exordio de uma acusação, no Juri:

— Desci... descí... descí... E quem fui encontrar lá embaixo, senhores jurados? Luiz Gama!

Chegado o momento da defesa, o negro ilustre subiu á tribuna, sereno, parodiou-o:

— Subí... subí... subí... E quem fui encontrar lá em cima, senhores jurados?

E aludindo á mãi natural (sic) do ofensor, apontando-o, entre risos da assistência:

— O filho da Maria Manca!”

A anedota está abrandada e posta em libré decente, porque não é assim que anda contada pela tradição oral. Ouvi-a dezenas de vezes, na sua brutalidade popular, dando as variantes das duas frases. A de Falcão Filho, terminava assim: “E quem fui encontrar lá embaixo, senhores jurados? Um negro na tribuna da defesa.”

A da que se inculca como sendo de Gama, findava de outra forma: “E quem fui encontrar lá em cima? Um homem que não conhece o pai.” E mui a muido, a frase vinha numa expressão muito mais grosseira, que o leitor, conhecido o nosso gosto pelo desbocado, facilmente imaginará.

Ora, essa anedota não é de Luiz Gama. Aconteceu com o dr. Falcão Filho e um advogado preto. Para o sr. Filinto Lopes, a quem já me referi varias vezes neste volume, o caso passou-se com o “Chanca”, um rabula de côr que vivia a imitar Gama, embora não tivesse o mesmo talento e nem a mesma educação. Para o sr. Antonio dos Santos Oliveira, que conheceu Gama na intimidade, a frase é de Clímaco Cesarino, quando ainda estudante do 3.° ano de Direito. Deste ou daquele, o que é verdade é que as testemunhas do tempo não a aceitam como da paternidade de Gama. E na variante oral, então, isso é patente. Gama, que vivia escondendo o nome do pai, que preferia figurar como filho natural a revelar a sua origem, não ia proferir uma frase tão ultrajante, que autorizaria um revide ainda mais violento e sem possibilidade de tréplica.

AS NOVIDADES DE SILVEIRA BUENO

Outro escritor que contou cousas exquisitas de Luiz Gama, baseando-se em recordações de sua propria familia, foi Silveira Bueno, brilhante jornalista, professor e filologo.

Num artigo para o “Diario Popular” desta capital, pouco antes de inaugurada a herma de Luiz Gama, no largo do Arouche, recordando que este fôra “dos comensais da sua casa avoenga” relatou que um dos motivos da “aproximação entre seu avô e o formidavel abolicionista, foi a boa cerveja que havia no armazem do Machado.” E acrescenta:

“Luiz Gama era homem de paladar e sabia apreciar as delicias do gosto. Assim, invariavelmente, á tarde, aparecia em nossa casa, sendo-lhe imediatamente servida a cerveja, antes que a pedisse. Bebia-a gole a gole, pondo no tempo gasto em bebê-la, o tamanho do prazer experimentado.

Trajava-se quasi sempre de fraque ou sobrecasaca de côr clara: cinza ou flôr de alecrim. O chapeu era sempre alto, jamais deixando a bengala de castão de ouro. Quando a temperatura era fria, punha luvas tambem claras.

Onde aprendeu tanta elegancia e finura? Com a esposa, que era francesa. Nesta lingua se entretinham ambos com muito admiração da maioria que mal sabia o português.

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Nesses passeios diarios, Luiz Gama ia acompanhado de dois filhos, já meninotes, muito mais claros que ele, não sei qual dos dois, olhos azues. Que será feito desses filhos de Luiz Gama? Certamente faleceram, porque nunca mais se ouviu falar da descendencia do negro ilustre”.

Entre essas informações, é possivel que haja algumas exatas. A maioria, porem, não está certa. O “chapeu alto” não concorda com o depoimento de Valentim Magalhães, atraz citado, na poesia “O Castor de Luiz Gama”, em que se fala de sua preocupação pelo chapeu mole, só ás vezes substituido pela palheta.

A bengala de castão de ouro, a finura e a elegancia não condizem com a proverbial pobreza do notavel causidico. Sei até de um episodio narrado pelo professor Ramon Roca Dordal, que foi expoente da pedagogia paulista, nos seus aureos tempos.

Gama ganhára um quadro a oleo, representando a sua propria efigie. O pintor dera-lho sem a moldura e a tela assim permaneceu até a morte do abolicionista porque ele nunca teve geito de arranjar umas sobras de seus proventos para mandar colocá-la no quadro. Dinheiro que aparecesse, não chegava para os escravos!...

Enfim, é possível... Mas que a esposa de Gama fosse francesa, de origem, isso não é verdade. Chamava-se, como vimos, Claudina Fortunata Sampaio, cria que fóra da familia Arruda Sampaio, de Campinas. Pele queimada e rosto tipicamente africano, como se vê no clichê que este volume apresenta.

Os dois filhos, tambem precisam ficar de quarentena, principalmente o de olhos azues. Só se conheceu um, que deixou certa nomeada, Benedito Graco Pinto da Gama, major de artilharia do Exercito e comandante do Corpo de Bombeiros de São Paulo, ainda em 1904.

Está me parecendo que Silveira Bueno se equivocou com algum outro advogado preto, contemporaneo de Gama. Digo isto, porque conheço pessoalmente Silveira Bueno e sei de sua irrestrita probidade literaria. Ele joga no relato com um fator ponderavel, que são as informações transmitidas oralmente por membro de sua própria familia. Não deve haver lapso de mémoria quanto ás circunstancias apontadas. O fenomeno deve ser de transferencia de pessoa. Tratar-se-á de Fernandes Coelho, tambem causídico, tambem notavel, o mesmo que sendo o advogado da acusação no celebre processo em que Gama “via tudo preto”, ajudou a tornar a pilheria famosa? [1] E’ o que parece mais provavel.

AS CONJETURAS DO SR. PEDRO CALMON

O ilustre polígrafo baiano, herdeiro da tradição de inteligencia de uma familia que tantos nomes fulgidos deu ao Brasil, foi quem mais finamente estudou o conterraneo, num artigo sob o titulo “Luiz Gama, o negro genial”, publicado no Jornal do Comercio do Rio, a 21 de junho de 1930, por ocasião do 1.° centenario do nascimento do abolicionista.

Nesse estudo, Pedro Calmon lança a sua tese de que “Luiza Mahin foi uma teimosa agitadora das senzalas da Baia”, tese que é simples conjetura, pois nada existe que o prove, a não ser duas frases vagas do filho: uma deixando transparecer que a mãe participou da Sabinada, em 1837, e fugiu para o Rio, e outra, dizendo que ela fôra varias vezes presa como suspeita de andar conspirando para insurreições de escravos, que não tiveram efeito.

Sobre esse fugidio e movediço alicerce, Pedro Calmon arquitetou o seu romance “Os Malês, a insurreição das senzalas”, que é de 1933.

Dramatizando o episodio da revolta geral de 1835 em que se notabilizaram os musulmis, — que a repressão fez desaparecer — o nosso autor faz de Luiza Mahin uma das cabeças mais ativas da conjura e, ao mesmo tempo, uma de suas denunciantes, colocando-a nas garras de um crudelissimo dilema: ou trair a sua gente, em beneficio da raça odiada dos brancos, ou perder o filho, que Angelo Ferraz, o celebre promotor, depois barão de Uruguaiana, havia feito recolher á sua casa. O amor materno vence e Luiza Mahin descobre a trama, já a ponto de estourar, mas a tempo de ser sufocada.

Depois, no “Epilogo” mostra o mesmo Angelo Ferraz, conselheiro do Imperio, recebendo a Luiz Gama no seu gabinete de Ministro da Guerra, e explicando-lhe que sempre lhe acompanhara os passos, amparando-o, protegendo-o em sigilo e em silêncio.

E, por ultimo, em a “Nota”, do fim do livro, tenta justificar que “não é sem um motivo plausivel que Luiza Mahin e o filho aparecem na cêna historica da inconfidencia” frase vaga, de sabor sibilino, que faz desconfiar de que Pedro Calmon sabe de mais cousas...

Embora romance — portanto, com o direito de levar um pouco longe a verosimilhança do enredo — ainda assim poderia induzir a erro, quando não parece haver o menor fundamento histórico para o caso. Se Gama não negou a adesão dos pais á Sabinada, porque ocultaria a participação de Luiza na revolta negra de 1835?

No mesmo estudo de 1930, acima referido, Pedro Calmon comete duas pequena falhas: uma quando sustenta que a primeira edição das “Trovas” é de 1861, e nós vimos que é de 1859, sendo a outra data a da segunda edição.

A outra, quando declara que Gama “escreveu de uma feita, já perto da sepultura, a seu filho de 14 anos, uma carta que era destinada tambem á mocidade brasileira. E transcreve a carta de pags. 141 sem lhe indicar a data.

Ora, essa missiva é de setembro de 1870. Gama morreu em 1882. Para classificar de “perto da sepultura” um homem que ainda vai viver doze anos, seria pelo menos necessário que Gama tivesse morrido em adiantada idade, tão avançada que doze anos não representassem muita cousa no total de sua existencia. E Gama faleceu aos 52 anos.

A VENDA DE GAMA NUMA VERSÃO DE VI-
RIATO CORREA

Viriato Corrêa, historiador respeitado e escritor ilustre, num longo artigo publicado na edição de 11 de março de 1935, do “Jornal do Brasil” do Rio, apresentou uma versão inteiramente nova do episodio da venda de Luiz Gama.

O trabalho começa fazendo larga referencia á Carta que o abolicionista escreveu a Lucio de Mendonça e é aparentemente sobre ela que o nosso biografo calca a história inédita que nos conta. Deixando-se, mui presumivelmente, influenciar pelo trabalho que o sr. J. Candido Freire publicou em o n.º 60 da “Revista do Brasil, em dezembro de 1920, e no qual, pela primeira vez, deparei com o relato romanceado da despedida entre Gama e o pai, a bordo do patacho “Saraiva”, o sr. Viriato Corrêa, como bom literato que é, inegavelmente dos melhores de nossa geração, não resistiu á tentação de dramatizar tambem a sua narrativa. E explana:

“Um dia (o desgraçado nunca mais esqueceu a data amarga), a 10 de novembro de 1840, o fidalgo apareceu alegremente em casa da quitandeira (trata-se da mãi de Gama, Luiza Mahin). Senta o filho nas pernas, acarinha-o e, subitamente, com a maior naturalidade:

— Queres passear com o papai, no mar, para ver os navios?

Não ha criança que recuse o convite de um passeio. O pequeno pulou de contente. Luiza corre a lavar e a vestir o filhinho. O garoto ia saltando alegremente pelas ruas. Um escaler leva-os, pai e filho, a bordo do patacho “Saraiva”. Luiz é uma criança viva que tudo quer ver e quer saber de tudo. O fidalgo, quando o vê absorto de curiosidade, a andar pelo navio, vai escapulindo geitosamente. Mas o pequeno, que não o sente a seu lado, corre á sua procura. Ao debruçar-se á amurada, ei-lo que o vê já no escaler que se afasta.

— Papai Papai! grita, chorando.

— Vou em terra e espera um instante que volto já.

O menino tem uma inspiração. Compreende, num relance, toda a infamia paterna, a cilada miseravel em que caira. E, sufocado de lagrimas, num brado de revolta:

— “O senhor me vendeu, papai!”

E’ uma história muito bem arrumada, muito lógica no seu seguimento. Só lhe falta um resquicio de verdade em que se escore. O patético da cêna final não concorda com o relato frio, de Gama, na sua Carta, que diz simplesmente o seguinte:

“Reduzido á extrema pobreza (fala do pai), a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Candido Quintela, seu amigo inseparavel e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Baía, estabelecido em um sobrado de quina ao largo da Praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho “Saraiva”.

Não ha a menor alusão ao embuste, que é inventado de ponta a ponta, e que caberia muito bem num romance, mas não numa biografia.

Aliás, essa invenção não é o ponto mais engraçado da narrativa. Muito mais saborosa é aquela circunstancia do fidalgo ir á casa da Luiza Mahin convidar o filho e mais ainda o fato de a quitandeira haver lavado e vestido o filho para o passeio.

Porque, apezar das repetidas alusões que todo o artigo de Viriato Corrêa, faz á Carta de Gama, o que se apura é que ele não a leu com a devida atenção.

Pois Gama, conta de sua mãi que, “em 1837, depois da revolução do dr. Sabino, na Baía, veiu ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou.” [2]

Gama procurou-a ali, em 1847, em 1856, e 1861 e só em 1862 “soube, por uns pretos minas, que conheciam-na e que deram sinais certos, que ela acompanhada de uns malungos desordeiros, em uma casa de dar fortuna, em 1838, fôra posta em prisão: e que tanto ela, como os companheiros, desapareceram”.

De maneira que a cêna familiar, que Viriato Corrêa desenrola, é puro melodrama.

A FANTASIA DO SR. AURELIANO LEITE

O episodio de Viriato, porem, dado o seu prestigio na opinião publica, está fazendo carreira. Já ouvi, diversas vezes, recontar a passagem como absolutamente veridica e, o que é peor, narrada por alunos de escolas secundarias, nas quais os professores haviam lido ou interpretado o artigo do escritor maranhense.

Já se encontra, até em outra biografia, na dr. Aureliano Leite. O conhecido politico paulista, num trabalho publicado, a principio, no “Diario Popular” e reestampado, com varias modificações, na “Illustração Brasileira”, de março de 1930, e agora, se não me engano, encaixado no livro “Retratos á Pena”, afirma que “o pai, (de Luiz Gama) monstro, mas nobre, furtara-o, antes, á propria mãi.”

Quando li, a primeira vez, esse trabalho, andei dando tratos á bola para descobrir de onde o nosso colega teria haurido uma informação tão discordante com o que o proprio Gama dissera. Mais tarde, lendo o artigo de Viriato, descobri a “fonte” de onde viera o “caso”.

O sr. Aureliano Leite é responsavel, alem dessa, por mais algumas fantasias históricas sobre a vida do grande negro, inclusive uma de imputar a outros, erros que estes não cometeram. Assim, na hora em que relata que Gama, quando exibido pelo senhor, em sua viagem ao interior do Estado, afim de ser vendido, não conseguiu comprador, por ser baiano, acrescenta este comentario:

“Alberto Faria (refere-se ao de Campinas) sobre o qual decalcou Humberto de Campos, diz ter sido dos que o regeitaram com estas expressões: "— Já não foi por bom que te venderam tão pequeno” — “Baiano, nem de graça — o conde de Tres Rios, trinta anos após, orgulhoso da amizade do que não quizera para escravo.

O falecido academico equivocou-se. Quem o rejeitou foi o pai do conde, apenas Francisco E. de Souza Aranha, que o cobiçara para pagem de seus filhos. O depois conde e por ultimo marquês, não passava de filho-familias, então.”

Ora, consultado o trabalho de Alberto Faria, encontra-se lá a seguinte passagem, acerca do caso:

“A’ distancia de 40 anos, um biografo verídico fazia este comentário sentimental:

“O sr. conde de Tres Rios, que esteve a ponto de de ter Luiz Gama para pagem, tem-no hoje como um dos seus amigos mais considerados.”

De maneiras que o sr. Aureliano Leite criticou no outro o que estava rigorosamente certo.

No fim da biografia, ao referir-se aos discursos pronunciados á beira da sepultura de Luiz Gama, no dia 25 de agosto de 1882, diz o seguinte:

“A Antonio Bento seguiu-se Joaquim Nabuco. Seu discurso sobre o que Lucio Mendonça comparou a Spartacus e chamou John Brown, teria tido este fecho: “Os escravocratas têm tudo: têm dinheiro; têm o Governo; têm a Justiça. Mas não têm, como nós, abolicionistas, o cadaver do negro sublime.”

Depois, assaltado por uma duvida, agrega esta nota:

“Não obstante o testemunho de ilustre pessoa do tempo, tenho duvidas sobre a autoria deste incidente. Parece que nessa ocasião, Joaquim Nabuco já estava em Londres. Contudo, havendo eu enviado este perfil á D. Carolina Nabuco, a distinta dama agradeceu-me num bilhete amavel e não contestou a participação de seu pai. De Nabuco ou de José Bonifacio, o Moço, de um dos dois é a frase”.

A frase não é, nem podia ser, de Nabuco. Primeiro, porque o diplomata embarcara para Londres a 1º de fevereiro de 1882, depois de sua derrota nas eleições de 31 de outubro do ano anterior. E só regressou da Europa em maio de 1884. A leitura do livro de D. Carolina Nabuco tiraria qualquer duvida. Segundo, porque, ainda que aqui estivesse, o autor de “Minha formação”, não teria comparecido ao enterro. Depois de ler, o capitulo “A injustiça de Nabuco” desta biografia, ninguem acreditará que este fosse ao cemiterio fazer aquele necrólogio, quando quasi um quarto de século depois, ainda guardava, no seu discurso de Belo Horizonte, ressentimento de Luiz Gama.

Na opinião de meu precioso informante, o sr. Antonio dos Santos Oliveira, a frase, se foi pronunciada, deve-se ao dr. Leoncio de Carvalho, que produziu a melhor, a mais comovente, a mais arrebatadora peça oratoria daquela tarde memoravel.

Ainda a respeito do enterro do grande negro, o sr. Aureliano Leite mostrou que o acompanhamento foi um espetaculo virgem em nossos anais citadinos. E comenta: “Raul Pompéa fixou o drama num folhetim da “Gazeta de Noticias”. E depois de fazer outras observações, remata com esta nota impressionista:

“O enterro alongou-se pela tarde. O sol, que costuma esconder-se espetaculosamente por aquele lado da cidade, completou o patético, derramando sobre a multidão, que começava a debandar, uma refulgencia sanguinea.”

A frase é boa, bem soante, agradavel de ouvir. Só tem o pequenino defeito de ser historicamente inveridica. E’ o proprio folhetim de Raul Pompéa, a que alude o articulista, que a desmente. Releiamos o que diz o escritor fluminense:

“Meia hora mais tarde passava o funebre cortejo por entre os pilares do portão do cemiterio. O sol se fôra pelo horizonte abaixo... A luz do dia trepava pelas arvores espetrais do Campo Santo, para extinguir-se na profundidade do ceu. A banda de musica misturava com as sombras do crepusculo a tristeza de suas melodias. A’s 7 horas entrava o cadaver para a capelinha do cemiterio, rodeando-o sempre uma multidão compacta...

Da capela conduziu-se o feretro para a sepultura. Houve aí uma cousa solene que se deve registrar. Colocara-se o caixão á beira da cova. A multidão, que invadira o cemiterio, rodeava o sepulcro, enchendo uma area espaçosa. A lua, que principiava a fazer sentir os seus clarões, banhava de azul a multidão, projetando no fundo do sepulcro aberto a sombra dos circunstantes, como se lhes escrevesse lá dentro o memento homo.”

Isso é o depoimento de uma testemunha ocular. A frase bonita do sr. Aureliano Leite, portanto, só é bonita. Mas não concorda com a verdade.


São Paulo, dezembro de 1937.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. V. «Brasil Anedótico» de H. Campos, pag. 130.
  2. Aliás deve haver lapso de memoria de Luiz Gama, nessa passagem. Luiza não podia vir ao Rio, «depois da revolução do dr. Sabino, em 1837». A revolução terminou a 15 de março de 1838.