Saltar para o conteúdo

O precursor do abolicionismo no Brasil/2.7

Wikisource, a biblioteca livre

O ADVOGADO

A rasteira conservadora lançou-o, como aprendiz-tipografo, ás oficinas do “O Ipiranga”, um dos melhores jornais do tempo. Dirigiam a folha Ferreira de Menezes e Salvador de Mendonça. Um irmão deste, Lucio de Mendonça, ali trabalhava, preenchendo multiplas funções, como é de praxe em todos os periodicos de pequenas urbes. São Paulo talvez não contasse, nesse ano da graça de 1868, com 20 mil habitantes. O censo de 72 dá-lhe pouco mais de 26 mil.

A solução do “O Ipiranga” surgira naturalmente como uma saída de emergência para as dificuldades momentaneas de Luiz Gama. Pouco se demorou em a nova profissão, pois, no ano seguinte, passava para a redação do “Radical Paulistano”, em que colaboravam Rui, Nabuco, Castro Alves, só para citar os maiores.

Tudo isso, porem, representavam paliativos para contemporizar e permitir o arranco final de Gama. Embora, ele já advogasse, no fôro, em causas de escravos principalmente, estas não eram capazes de lhe garantir o pão quotidiano. E teimando, como teimou até o fim, em fazer da advocacia um sacerdócio a favor de gente que não tinha com que custear as despesas dos processos, não podia essa profissão servir-lhe de esteio econômico, naquela hora.

Mas, se não lhe assegurou renda, deu-lhe em troca, a nomeada e revelou a sua capacidade dialética e a sua incontestavel bossa jurídica, como solicitador ou advogado provisionado.

E a sua carreira nova, fruto de seus triunfos e vitórias tribunícios e forenses, que lhe alargaram a esfera de atuação até o ponto de o fazer abandonar o jornalismo, tambem lhe permitiu mais uma das suas tremendas desforras.

Gama quiz ser bacharel em ciencias jurídicas e sociais pela nossa Faculdade de Direito. Teve a ilusão de que seria ali recebido senão com simpatia, pelo menos com indiferença e que poderia realizar o curso como qualquer cidadão livre. Da acolhida que lhe fizeram, testemunha Raul Pompéa, num artigo publicado, em 1884, na “Gazeta de Noticias”, do Rio de Janeiro:

“Em principio de sua carreira, tentou cursar a Faculdade Jurídica de São Paulo. A generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia matar as aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o suplicio de Santo Estevão e as apedrejaram com meia duzia de dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se revoltado, da companhia dos moços, horrorizado pela benevolencia dos eruditos”.

Mas trouxe para a sua nova vida profissional outro motivo para querer triunfar sem a ajuda de um diploma, em demonstração positiva de que para entender de qualquer ramo da ciência humana, a inteligencia e a boa vontade eram bastantes. O curso regular, com verificação periodica dos conhecimentos adquiridos, representavam apenas formalidades oficiais, mas não davam a sabedoria. E sem passar pelas arcadas, foi um legitimo expoente da cultura jurídica de sua época e de seu meio.

Para o seu ideal abolicionista, Gama, em sua nova profissão, ainda uma vez se revelou o profundo psicólogo que era. Tendo enveredado na campanha negra pela porta da simpatia humana, da solidariedade no sofrimento, pela pregação continua da caridade, foi, lenta e subrepticiamente, operando uma reversão na mentalidade jurídica sua coeva. Sentindo aquela ostensiva e unânime hostilidade pela conquista das franquias negras, que ele queria, a insopitavel repulsa geral em considerar o escravo como um ente humano, o ridículo inconciente e irraciocinado a pesar sobre todas as iniciativas que visassem minorar a sorte dos cativos, Gama não enfrentou os quadros legais que garantiam a solidez institucional da propriedade escrava, não tentou derruí-los num gesto de revolta e de indisciplina.obra que seria, mais tarde, o galardão de outro rebelde, Antonio Bento, muito menos culto, mas muito mais prático e que pegara a campanha em fase muito mais adiantada no espírito público. Gama, mesmo em sentindo todo o horror de um tal reconhecimento de sua parte, ele que considerava todos os “senhores” como autênticos salteadores da liberdade, conformou-se com a lei, aceitou-lhe os ditames, os dispositivos draconianos, a jurisprudencia cruel, e veiu para os tribunais discutir a honestidade, a retidão, a lisura de sua aplicação contra os negros.

E embora isso possa parecer, a nós outros de hoje, um expediente perfeitamente normal, sem direito a qualquer louvor, porque comezinho aos processos jurídicos, a verdade é que, em materia de escravidão, o novo sistema devia ter custado um trabalho ingente e formidavel, cheio de decepções e de amarguras, provocador dos mais veementes protestos e dos mais implacaveis revides dos seus adversários, tarefa de Hercules que haveria desanimado os mais bravos, que não tivessem a serena e olímpica coragem desse negro, a sua admiravel constancia e pertinácia, o seu inflexivel desejo de vingança. Porque Gama, sublimando o seu caso estritamente pessoal, quiz tirar o desforço de seu injusto cativeiro, pela redenção do sofrimento de uma raça inteira.

Vimos, paginas atraz, como se burlavam as disposições legais mais positivas, no Brasil todo, como a comunidade se conluiara para tornar letra morta os artigos dos tratados internacionais, aqueles em que haviamos empenhado a nossa dignidade de país soberano e a palavra de nossa honra coletiva, e que os interesses escravagistas, mais fortes e mais convincentes que todas as convenções e convenios, haviam transformado em pura fé punica.

Num país em que a lei de 7 de novembro de 1831, a que decidia da extinção obrigatória do tráfico negreiro, era capaz de encontrar, seis anos depois de promulgada, governo que fingindo reformar a lei em vigor, fazia escorregar, entre os novos artigos, um que revogava os efeitos decorrentes da sua honesta aplicação, tentando proíbir se processasse quem tivesse escravisado negros livres, num país desses, pouco havia que esperar da apresentação de causas em juizo, quando elas se prendiam e dependiam da aplicação da lei incumprida. A reforma de 1837 não passou, como não vingou a tentativa de repô-la em pé em 1848, porque a Inglaterra apresentou protestos e excedendo-se na interpretação da letra dos tratados, promulgou o bill Palmerston, em 1839, seguido do bill Aberdeen, em 1845, que demonstravam estar ela disposta, em ir, como foi, até a violência e ao abuso para fazer cumprir o que as partes contratantes tinham prometido nos convenios.

Mas, porisso mesmo que a Inglaterra provocara os melindres nacionais, com as suas medidas que aberravam da prática internacional nas relações de soberania para soberania, melindres estimulados e longamente excitados pelos interesses particulares, a que as repetidas intervenções diplomáticas, embora amistosas, da legação britanica no Rio, na causa negra, mais e mais acirravam o aspeto, compreende-se quão dificil se fazia a tarefa que Gama se impuzera a si mesmo de levar, sempre que podia, as questões entre senhores e escravos para o tablado da Justiça.

E calcule-se, por contrapartida, o seu beneditino esforço, ao suscitar essas intricadas questões acerca da indébita redução de negros livres ao cativeiro, a habilidade, a diplomacia, o vigor de sua argumentação, o recurso agilíssimo de todos os elementos de convicção, o milagre de sua dialética, a sagacidade, a sutileza de sua hermenêutica para lograr persuadir juizes encanecidos e enterrados nas praxes de uma jurisprudencia secular, aprovada, consentida, aplaudida, por uma população inteira, E calcule-se, por outro lado, á medida que crescia a sua fama de causídico temivel e diserto, que se avolumavam as suas vitórias, — ele mesmo confessou, em 1880, ter libertado mais de 500 escravos — que se comentavam ruidosamente os triunfos de quem estava transformando a palavra, oral ou escrita, numa arma perigosíssima para as instituições, muito mais nociva e danosa para os interesses criados do que as leis solenes que o Parlamento produzia e que a sociedade não cumpria e deixava perimir, imagine-se a antipatia, a malquerença, a prevenção que os senhores lhe votavam, fechando-lhe a reputação, o bom nome, o credito e a propria existencia num circulo de desconfianças, de aversões e até de ameaças.

Das ameaças, ficou-nos um documento insuspeito. E’ a carta que escreveu ao filho, a 23 de setembro de 1870. Dizem que foi traçada pouco antes de seguir para o interior do Estado, onde ia defender um reu escravo. Embora dificil de averiguar, parece que a atmosfera formada em torno desse julgamento, pelos interessados na condenação do negro, autorizava a supor que a vida de Gama corria perigo e que sua cabeça estava a premio. Não me foi possivel apurar o caso, documentadamente. A carta, entretanto, não deixa duvida em que Gama atravessava um dos momentos mais críticos de sua vida e que tinha certeza de que pretendiam eliminá-lo. E’ o que se vai verificar, lendo-a:

”Meu filho

Dize a tua Mãi que a ela cabe o rigoroso dever de conservar-se honesta e honrada; que não se atemorize da extrema pobreza que lego-lhe, porque a miseria é o mais brilhante apanágio da virtude.

Tu evita a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os penedos.

Sê republicano, como o foi o Homem-Cristo. Faze-te artista; crê, porem, que o estudo é o melhor entretenimento, e o livro o melhor amigo.

Faze-te apostolo do ensino, desde já. Combate com ardor o trono, a indigencia e a ignorancia. Trabalha por ti e com esforço inquebrantavel para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame — Estados Unidos do Brasil.

Sê cristão e filosofo; crê unicamente na autoridade da razão, e não te alies jamais a seita alguma religiosa. Deus revela-se tão somente na razão do homem, não existe em Igreja alguma do mundo.

Ha dois livros cuja leitura recommendo-te: a Biblia Sagrada e a Vida de Jesus por Ernesto Renan.

Trabalha e sê perseverante.

Lembra-te que escrevi estas linhas em momento supremo, sob a ameaça de assassinato. Tem compaixão de teus inimigos, como eu compadeço-me da sorte dos meus.

Teu pai Luiz Gama”.

O abolicionista, aliás, os provocaria insensivelmente, inconcientemente esses odios contra si mesmo. Não estava nele, era uma manifestação celular: o direito á liberdade, Gama considerava-o como uma função organica, como a fatalidade biologica da respiração, da alimentação ou da reprodução humanas. Refere-se uma anedota do tempo, acontecida com ele, que é particularmente caracteristica dessa sua maneira de pensar e de sentir.

Entrou-lhe um dia, pelo escritorio a dentro, um negro que desejava libertar-se e que ia ali entregar-lhe o montante do pecúlio necessário para que Gama tratasse de alforriá-lo. Enquanto o preto expunha o seu caso, aparece o senhor, que por sinal era amigo do advogado. Estava visivelmente inquieto, triste, abatido. E entrando em explicações, pergunta ao negro porque pretende abandoná-lo, a ele que sempre lhe fôra, mais que senhor, um pai estremoso, que sempre the déra trato e carinho igual aos de seus filhos.

— Porque queres deixar-me, abandonando o cativeiro de um homem bom como tenho sido, arriscando-te a seres infeliz quando estiveres sosinho pela vida?

O escravo não respondia. Não tinha o que reclamar, pois que o amo fôra sempre, mais que humano, solicito e bondoso. O senhor não se conformava com a atitude do escravo:

— Porque me abandonas? Que é que te falta lá em casa? Dize... fala.,,

— Falta-lhe — interveiu Gama, dando uma palmada no ombro do preto — falta-lhe o direito de ser infeliz onde, quando e como queira!

E libertou o negro.

Aí está um traço fundamental para a compreensão daquela alma, traço que fala mais alto que toda uma serie de retorcidas divagações acerca de sua psicologia. A liberdade era, para ele, uma cousa tão acima de qualquer bem terreno, que valia o risco de todas as agruras da existência a luta, o afan, os dissabores, o esforço mal recompensado, a incompreensão alheia, as agonias crueis, até a fome. Valia mesmo a morte.

Ha dele uma pagina empolgante, repleta de santa indignação, escrita já no fim da vida. E embora doente e alquebrado, a revolta é sempre a mesma, intensa, estuante, vivíssima, brotando aos borbotões de seu coração aflito. Foi publicada na “Gazeta do Povo”, como carta endereçada ao seu velho amigo e antigo diretor do “O Ipiranga”, o notavel jornalista Ferreira de Menezes. Nela, a proposito do assassinato do filho de um fazendeiro, no municipio fluminense de Entre Rios, fato recente que determinara reação brutalissima, comenta as cênas de horror, os verdadeiros linchamentos a que davam origem, em nossa terra tambem, os crimes dos escravos contra os senhores.

E’ trabalho pouquissimo conhecido e que, apesar de se haver reproduzido, alguns dias mais tarde, na secção paga da então “Província de São Paulo”, edição de 18 de dezembro de 1880, nunca teve repercussão. Aqui está:

“São Paulo, 13 de dezembro de 1880.

Meu caro Menezes

Estou em a nossa pitoresca choupana do Braz, sob ramas verdejantes de frondosas figueiras, vergadas sob o peso de vistosos frutos, cercado de flores olorosas, no mesmo logar onde, no começo deste ano, como arabes felizes, passamos horas festivas, entre sorrisos inocentes, para desculpar ou esquecer humanas impurezas.

Daqui, a despeito das melhoras que experimento, ainda pouco sáio á tarde, para não contrariar as prescrições de meu escrupuloso médico e excelente amigo, dr. Jaime Serva. Descanso dos labores e elocubrações da manhã e preparo o espírito para as lutas do dia seguinte. Este mundo é uma mitologia perfeita: o homem é o eterno Sísifo.

Acabo de ler na “Gazeta do Povo”, o martirológio sublime dos quatro Spártacos que mataram o infeliz filho do fazendeiro Valeriano José do Vale. E’ uma imitação de maior vulto da tremenda hecatombe que aqui se presenciou na heroica, a fidelissima, a jesuitica cidade de Itú, e que foi justificada pela eloquente palavra do exmo. sr. dr. Leite Morais, deputado provincial e professor considerado de nossa faculdade jurídica.

Ha cenas de tanta grandeza, ou de tanta miseria, que por completas em seu gênero, não se descrevem; o mundo e o átomo por si mesmos se definem; assim, o crime e a virtude guardam a mesma proporção; assim, o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescripção inevitavel de direito natural, e o povo indigno, que assassina heroes, jamais se confundirão.

«São João Politico» Caricatura do «Polichinelo» publicada a 24 de junho de 1876

Eu, que invejo, com profundo sentimento, estes quatro apóstolos do dever, morreria de nojo, por torpeza, achar-me entre essa horda inqualificavel de assassinos.

Sim! Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areias da Africa, roubados, escravisados, azorragados, mutilados, arrastados neste país classico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem familia, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho, transformados em maquinas, condenados á luta de todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de ladrões impudicos, de salteadores sem nome; que tudo isso sofreram e sofrem, em face de uma sociedade opulenta, do mais sabio dos monarcas, á luz divina da santa religião católica, apostolica, romana, diante do mais generoso e do mais interessado dos povos; que recebiam uma carabina envolvida em uma carta de alforria, com a obrigação de se fazerem matar á fome, á sêde e á bala nos esteiros paraguáios e que nos leitos dos hospitais morriam, volvendo os olhos ao território brasileiro, os que, nos campos de batalha, caíam, saudando risonhos o glorioso pavilhão da terra de seus filhos; estas vítimas que, com seu sangue, com seu trabalho, com sua jactura, com sua propria miséria, constituiram a grandeza desta nação, jamais encontraram quem, dirigindo um movimento espontaneo, desinteressado, supremo, lhes quebrasse os grilhões do cativeiro!...

Quando, porem, por uma força invencivel, por um impeto indomavel, por um movimento soberano do instinto revoltado, levantam-se, como a razão, e matam o senhor, como Lusbel mataria Deus, são metidos no cárcere; e aí, a virtude exaspera-se, a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se: tresentos cidadãos congregam-se, ajustam-se, marcham direitos ao cárcere: e aí (ó! é preciso que o mundo inteiro aplauda) a faca, a pau, a enxada, a machado, matam valentemente a quatro homens; menos ainda, a quatro negros; ou, ainda menos, a quatro escravos, manietados numa prisão.

Não! nunca! Sublimaram, pelo martirio, em uma só apoteóse, quatro entidades imortais!

Que! Horrorizam-se os assassinos de que quatro escravos matassem seu Senhor! Tremem por que eles, depois da lutuosa cena, se fossem apresentar á autoridade? Miseraveis; ignoram que mais glorioso é morrer livre, numa forca, ou dilacerado pelos cães, na praça pública, do que banquetear-se com os Neros, na escravidão.

Sim! Já que a quadra é dos acontecimentos; já que as cenas de horror estão na moda; e que os nobilíssimos corações estão em boa maré de exemplares vinditas, leiam mais esta:

Foi no municipio de Limeira; o fato deu-se ha dois anos.

Um rico e distinto fazendeiro tinha um criolo do norte, esbelto, moço, bem aparecido, forte, ativo, que nutria o vício de detestar o cativeiro: em tres meses fez dez fugidas. Em cada volta sofria um rigoroso castigo, incentivo para nova fuga.

A mania era péssima, o vício contagioso e perigosissima a imitação. Era indeclinavel um pronto e edificante castigo. Era a décima fugida, e dez são tambem os mandamentos da lei de Deus, um dos quais, o mais filosófico e mais salutar é castigar os que erram.

O escravo foi amarrado, foi despido, foi conduzido ao seio do cafezal, entre o bando, mudo, escuro, taciturno, dos aterrados parceiros: um Cristo negro que se ia sacrificar pelos irmãos de todas as cores.

Fizeram-no deitar, e cortaram-no a chicote, por todas as parte do corpo: o negro transformou-se em lazaro, o que era preto se tornou vermelho. Envolveram-no em trapos... Irrigaram-no de querozene, deitaram-lhe fogo... Auto-de-fé agrario!...

Foi o restabelecimento da Inquisição, foi o renovamento do touro de Falares, com a dispensa do simulacro de bronze, foi a figura das candeias vivas dos jardins romanos: davam-se, porem, aqui duas diferenças: a iluminação fazia-se em pleno dia; o combustor não estava de pé, empalado, estava decúbito; tinha por leito o chão, de que saíra e para o qual ia volver em cinzas.

Isso tudo consta de um auto, de um processo formal; está arquivado em cartório, enquanto o seu autor, rico, livre, poderoso, respeitado, entre sinceras homenagens, passeia ufano, por entre os seus iguais.

Dirão que é justiça de salteadores? Eu limito-me a dizer que é digna dos nobres ituanos, dos limeirenses e dos habitantes de Entre-Rios.

Estes quatros negros, espicaçados pelo povo, ou por uma aluvião de abutres não eram quatro homens, eram quatro idéas, quatro luzes, quatro astros; em uma convulsão sidérea desfizeram-se, pulverizaram-se, formaram uma nebulosa.

Nas épocas por vir, os sábios astrónomos, os Aragos do futuro hão de notá-los entre os planetas: os sois produzem mundos.

Teu Luiz.”

Como não havia de ser aborrido um homem com essa intrepidez, com essa fortaleza de ánimo em atacar, nos seus erros, seus abusos, nos seus delitos, os poderosos do dia, a aristocracia rural que mandava discrecionáriamente no Brasil?

Certas expressões desta carta fazem relembrar outro episódio que dizem ter sucedido com Luiz Gama. São aquelas em que afirma: “assim, o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitavel de direito natural” ou, então, “quando, porém, por uma força invencivel, por um impeto indomável, por um movimento revoltado, levantam-se (os negros) como a razão, e matam o senhor, como Lusbel mataria Deus!... Estas frases dariam cunho de veracidade a uma explosão de Gama, num Tribunal do Juri, defendendo um escravo que assassinara o proprio senhor.

Conta-se efetivamente que o advogado baiano, numa dessas sessões, não se sabendo propriamente em qual, se na Capital ou no interior, num momento de extrema excitação, parece que em resposta a um aparte mordente ou patético da promotoria pública. exclamara com grande escândalo :

“O escravo que mata o senhor, seja em que circunstancia fôr, mata sempre em legitima defesa.”

O episodio vem narrado no trabalho de Lucio de Mendonça, no mesmo que ele decalcou sobre a Carta de Gama e não traz referencia nem de local nem de data. Não faz parte da biografia escrita pelo abolicionista. E’ contribuição pessoal do proprio Lúcio. Depois deste, repetiu-o Alberto Faria, o de Campinas, na sua conferencia publicada a 13 de maio de 1924, no “Estado de São Paulo”. Aceitou-o ainda o dr. J. J. Cardoso de Melo Neto, na conferencia realizada a 28 de março de 1931, no Teatro Municipal de São Paulo, em beneficio da herma que foi erigida no Largo do Arouche. E por fim reproduz o episódio Artur Motta, na “Pagina da Academia”, que a Folha da Manhã” publicava aos domingos, ao estudar a 15.ª cadeira (edição de 9 de fevereiro de 1936).

Já encontrei quem me afirmasse que o caso se passou no Tribunal do Juri de Araraquara, tendo a frase produzido tamanha tempestade que o presidente se viu obrigado a suspender a sessão.

Não sei se será fiel a reprodução do contexto da frase de Gama. Parece que não foi pronunciada daquela forma. Pelo menos Raul Pompéa, ao escrever o artigo “Aos escravocratas”, no primeiro numero do “ÇA IRA”, o orgão do Centro Abolicionista de São Paulo, fundado em 1882, deu-lhe como epigrafe, á guisa de sub-titulo, esta frase de Luiz Gama: “Perante o Direito, é justificavel o crime de homicidio perpetrado pelo escravo na pessoa do senhor”.

E Evaristo de Morais, que foi quem mais longamente estudou, até hoje, o abolicionista, num artigo estampado no “Correio da Manhã”, com o titulo geral de “Figuras da Abolição — Um escravisado-libertador — Luiz Gama”, refere o seguinte:

“Por muitos anos — acrescentamos aqui — foi celebrada, nos meios academicos de São Paulo, a sua tremenda boutade: “Perante o Direito, é justificavel o crime do escravo perpetrado na pessoa do senhor”.

Se nos ativermos á cultura juridica do grande negro, esta última forma seria a aceitavel, porque nela cabe o estudo e exame das circunstancias, as únicas que poderiam determinar o reconhecimento do estado de legitima defesa, enquanto na outra, truculenta e brutal, elimina-se esse fator precípuo, na intercalada do “seja em que circunstância fôr”. Não me parece que esta última tenha sido a maneira de expressar-se de Luiz Gama.

De qualquer modo, com o aspeto feroz da primeira hipotese ou já adoçada pela compostura da segunda, o abolicionista não abre mão desse postulado basico de toda a sua propaganda: a liberdade humana vale todos os percalços da terra. Não é artigo de troca, em nenhuma contingência, nem pode ser objeto de negociação. Não admite nem limitações nem restrições. Se fosse moderno, diria, á moda clássica, que a liberdade humana, como a paz, é indivisivel. Entre Gama e a sociedade em que vivia não era possível, portanto, conceber reconciliação enquanto esta não reconhecesse a todos os homens de côr a inviolabilidade do direito de disporem de seu proprio corpo como melhor lhes aprouvesse. Reivindicava o mais completo, o mais amplo, o mais extenso "habeas corpus", no sentido literal do termo, que advogado algum pleiteara até ali. [1]

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. A sua paixão pela liberdade revela-se até nas suas admirações. E’ assim que, em 1859, escrevera a Garibaldi. E o «heroe dos dois mundos» respondera-lhe uma carta, do mesmo ano, que Gama guardava como reliquia e que não pude apurar onde foi parar.