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O precursor do abolicionismo no Brasil/2.8

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O REPUBLICANO HISTORICO

Gama, disse paginas atraz, encaminhou-se aos arraiais da política militante como um simples meio de ampliar a sua esfera de acção na campanha abolicionista. Toda a sua conduta posterior o prova.

Incorporado, desde logo, ás fileiras do Partido Liberal, agindo, com a sua extraordinária capacidade de trabalho, na tribuna, na imprensa, nos prelios eleitorais, atingiu-o a pancada de 1868, que o demitiu do emprego.

Vitimas de um erro psicológico, seus adversarios, que o queriam prostrar, apenas o animaram de um desejo ainda mais violento de revide. Naquele temperamento invergavel, a injustiça era um incentivo para prolongar a luta. O golpe produziria efeito contrário ao que tinham em vista. Em vez de o aniquilarem, o negro voltaria maior. Gama ressurgia, de dentro da demissão, mais indomavel que antes. Foi para o jornalismo, onde encontrou a amizade e o conforto de rapazes que seriam das mais altas figuras da derradeira fase da monarquia e da primeira da República.

Filiou-se ao Clube Radical, tomando a dianteira de seus proprios companheiros liberais. E quando muitos ainda vacilavam, como Rui Barbosa, que tergiversou até o fim, ele publica, a 2 de dezembro de 1869, aquela sua conhecida profissão de fé republicana, no artigo de fecho da polemica com Furtado de Mendonça: “Surgiu-lhe (a ele) na mente inapagavel um sonho sublime, que o preocupa: “O Brasil americano e as terras do Cruzeiro sem rei e sem escravos”.

E’ o cartel de desafio á Corôa, avantajando-se no tempo ao Manifesto Republicano de 1870. E com um laivo de perfídia intelectual, que é um traço bem caracteristico da sátira de Gama: é a data do artigo, dia do aniversario do Imperador. Era o presente que o tribuno, convertido ás idéas avançadas do tempo, mandava no ramilhete imperial de felicitações. E numa hora de profunda emoção patriótica, provocada pelas nossas seguidas vitórias no Paraguai, prenunciando a brilhante entrada das tropas brasileiras em Assunção, alguns dias mais tarde. O negro sósinho tinha mais coragem que multidões inteiras. Não desmentia a raça: era nagô puro e dos mais audazes.

Declarando-se republicano, não se limitou á atitude platônica das affirmações. Foi além, fez-se precursor do republicanismo de acção.

A primeira tentativa de fundação do partido foi realizada pelo baiano, acompanhado pelo dr. Americo Brasiliense, seu vizinho, no Braz, como morador do sobrado da avenida Rangel Pestana, na esquina com a rua Piratininga (sobrado que ainda existe), e mais José Luiz Flacquer, João Batista de Senne e o inseparavel amigo de Gama, Pedro Antonio Rodrigues de Oliveira. Os adeptos do novo credo político reuniam-se, quasi clandestinamente, numa casinha da Varzea do Carmo, que as obras de embelezamento do local fizeram desaparecer. Um dia, a polícia, avisada, deu uma batida e prendeu varios dos componentes do partido que ali se achavam em sessão.

Mais tarde, o Clube instalou-se á rua da Constituição, hoje Florêncio de Abreu e aqui surgiu um incidente, que alarmou a cidade. E’ que alguns partidários mais exaltados resolveram, certa vez, hastear a bandeira republicana como um desafio. A polícia, sempre solícita, quiz invadir o prédio. Como houvessem trancado a porta de entrada, foi preciso arrombá-la com grande escândalo da vizinhança, e depois de prender os autores do inominavel crime, fez arriar a bandeira, que originara a desordem. [1]

Gama é, regra geral, esquecido nas resenhas históricas que apontam os precursores de nosso republicanismo. Mas os maiorais do tempo, não se olvidam dele. Americo de Campos, que tambem pertenceu á pleiade e que teve o negro admiravel entre os seus colaboradores no “Cabrião”, escreveu em o n.° 121 de “O Contemporaneo”, revista que se publicava no Rio de Janeiro, fazendo o necrólogio de Gama, estas palavras de consagração:

“E’ duas vezes benemérito! Perante o milhão e meio de brasileiros escravos, aos quais dedicou sua vida inteira, seu talento, sua pena, sua palavra e sua bolsa;

Perante a veneração dos republicanos, que nele contam um de seus primeiros apóstolos e um de seus melhores exemplos”.

Gama desiludiu-se cedo de seu partido. Depois da Convenção de Itú, realizou-se em São Paulo, a 2 de julho de 1873, á rua Miguel Carlos, o Primeiro Congresso Republicano e do qual Gama participou.

Passemos a palavra a uma testemunha ocular do acontecimento, Lucio de Mendonça, que narrou o fato na biografia do ilustre abolicionista:

“Era uma assembléa imponente. Verificados os poderes na sessão da véspera, estavam presentes vinte e sete representantes de municípios, agricultores, advogados, jornalistas, um engenheiro, todos membros do Congresso. Moços pela maior parte, compenetrados da alta significação do mandato que cumpriam, tinham na sobriedade dos discursos e na gravidade do aspecto a circunspeção de um Senado Romano.

Lidas, discutidas e aprovadas as bases oferecidas pela Convenção de Itú, para a constituição do Congresso, e depois de outros trabalhos, foi por alguns representantes submetido ao Congresso e afinal aprovado, um manifesto á Província, relativamente á questão do estado servil.

No manisfesto, em que se atendia mais ás conveniencias políticas do partido do que á pureza dos seus principios, anunciava-se que se tal problema fosse entregue á sua deliberação, estes resolveriam que cada província da União Brasileira realizaria a reforma de acordo com os seus interesses peculiares “mais ou menos lentamente”, conforme a maior ou menor facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre; e que “em respeito aos direitos adquiridos” e para conciliar a propriedade de fato com o principio da liberdade, a reforma se faria tendo por base a indenisação e o resgate”.

Posto em discussão o manifesto, tomou a palavra Luiz Gama, representante do municipio de São José dos Campos.

Protestou contra as idéas do manifesto, contra as concessões que ele fazia á opressão e ao crime, propugnava ousadamente pela abolição completa, imediata e incondicional do elemento servil.

Crescia na tribuna o vulto do orador: o gesto, a princípio frouxo, alargava-se, acentuava-se, enérgico e inspirado estava quebrada a calma serenidade da sessão. Os representantes, quasi todos de pé, mas dominados e mudos, ouviam a palavra altiva, vingadora e formidavel do tribuno negro. Não era já um homem que falava, era um princípio que falava... digo mal, não era um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdada que rugia! Ali estava na tribuna, envergonhando os timidos, verberando os prudentes, ali estava na rude explosão da natureza primitiva, o neto da África, o filho de Luiza Mahin!

A sua opinião caiu vencida e única; mas não houve tambem ali um coração que não se alvoroçasse de entusiasmo pelo defensor dos escravos”.

O golpe foi rude para a conciência de Gama. Ele acreditara que os republicanos, como paladinos da democracia integral, querendo o poder emanando diretamente do povo, seriam naturalmente abolicionistas, pois só assim haveria a igualdade de que a democracia precisa para viver e persistir. Esquecia que muitos dos adeptos do novo credo eram fazendeiros e viviam do trabalho dos negros.

Afastando-se do partido, Gama nunca mais lhe perdoou o que ele considerava um crime. E durante anos, até quasi o fim de sua vida, sustentou, pela imprensa, que o Partido Republicano era tão reacionario como qualquer outro da monarquia e que de democrata só tinha o rótulo. Não faltam as harpoadas e alfinetadas desse genero, tanto no “Coaracy”, jornal humorístico que viveu de 25 de abril de 1875 a 1.º de abril de 1876, nem no “Polichinelo”, outro periódico do mesmo tipo, que ele redigia, e que conseguiu durar cerca de um ano, a contar de 16 de abril de 1876, como tambem nas outras folhas em que esporadicamente colaborava. Passou essa maneira de ver aos seus discípulos e amigos, principalmente á mocidade abolicionista da Academia de Direito. E jornais como a “Província de São Paulo”, que embora dizendo-se abolicionistas, tendo republicanos á sua frente, não se recusavam a publicar anúncios de escravos fugidos, esquecendo na gerência os ideais que pregavam na redação, sofriam a crítica implacavel de Gama e seus prosélitos.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Informação do sr. Pedro dos Santos Oliveira.