O que é o Casamento?/I
Em casa de MIRANDA – Sala de visitas.
CENA PRIMEIRA
[editar]MIRANDA e ALVES
(ALVES entrega o cartão a JOAQUIM e espera)
MIRANDA – Lendo o teu nome, duvidei que estivéssemos em outubro.
ALVES – Como passas? Por quê?...
MIRANDA – Não é só pelo Natal que temos o prazer de ver de ano em ano o teu cartão de visitas?... Quanto à tua pessoa, essa apenas de passagem em alguma reunião.
ALVES – Tens razão! Mas acredita que sou o mesmo.
MIRANDA – Devias dar-me ocasiões de verificá-lo. Dois velhos amigos como nós sentem de tempos a tempos necessidade de conversar.
ALVES – Que queres?... A fortuna teve inveja de nos ver tão unidos, e separou-nos. Estás brilhando na política.
MIRANDA – E tu enriquecendo no comércio.
ALVES – Estás casado.
MIRANDA – Por que não fazes o mesmo? É tempo.
ALVES – Confesso-te que já me sinto gasto para esta vida de celibatário. Às vezes nem sei o que fazer de minha liberdade. Mas quando me lembro do casamento, só a ideia me assusta.
MIRANDA – Pouco a pouco te irás habituando a ela, e um belo dia, quando menos pensares, estarás casado.
ALVES – Duvido. Fazer a felicidade de duas criaturas de gênios, de ocupações, de idades diversas é um problema social que na minha opinião ainda não foi resolvido, e não me sinto com forças de o tentar.
MIRANDA – São ideias que todos temos quando profanos. O casamento, Alves, é o que foi entre nós há algum tempo a maçonaria, de que se contavam horrores, e que no fundo não passava de uma sociedade inocente, que oferecia boa palestra, boas ceias. Há dois prejuízos muito vulgares: uns supõem que o casamento é a perpetuidade do amor, a troca sem fim de carícias e protestos; e assustam-se com razão diante da perspectiva de uma ternura de todos os dias e de todas as horas.
ALVES (rindo) – Na verdade é desanimadora; sobretudo nesta época de vapor e eletricidade.
MIRANDA – Justo!... O outro prejuízo é daqueles que supõem o casamento uma guerra doméstica, uma luta constante de caracteres antipáticos, de hábitos, e de ideias. Esses, como os outros mas por motivo diferente, tremem pela sua tranquilidade, Entretanto a realidade está entre os dois extremos. O casamento não é nem a poética transfusão de duas almas em uma só carne, a perpetuidade do amor, o arrulho eterno de dois corações; nem também a guerra doméstica, a luta em família. É a paz, firmada sobre a estima e o respeito mútuo; é o repouso das paixões, e a força que nasce da união.
ALVES – Concordo. Mas que dificuldade para conservar essa paz matrimonial... Não é preciso que o homem sacrifique a sua individualidade e se dedique todo à família?
MIRANDA – Como te iludes! É quando o homem goza da plena tranquilidade do seu espírito; quando lhe sobra todo o tempo para as ocupações sérias da vida... julgo por mim.
ALVES – E o tempo para amar a sua mulher e fazer a sua felicidade?
MIRANDA – Não me compreendeste então, Alves. O amor conjugal é calmo e sério; vive pela confiança recíproca, e alimenta-se mais de recordações do que de desejos. Um exemplo: nós já não somos os companheiros inseparáveis de estudos e de prazeres que fomos outrora; apenas nos encontramos de longe em longe, e trocamos rapidamente uma palavra, ou um aperto de mão. Entretanto isto basta: nenhum duvida da amizade do outro. Ambos temos a certeza de que possuímos um amigo dedicado; e essa certeza é um gozo superior a qualquer demonstração frívola e banal. Pois bem: perfuma essa amizade com a graça e a ternura inseparável da mulher, e terás a imagem perfeita de um casamento feliz. Vou te fazer uma confidência... (Entra ISABEL) É minha mulher... já a conheces...
ALVES – Conheço-a; mas ainda não tive o prazer de falar-lhe.
CENA II
[editar]Os mesmos e ISABEL
MIRANDA – Bela!... Apresento-te um ingrato, sim, porque nos desdenha. É o Alves, meu mais íntimo amigo, a quem devo tudo... sabes?
ISABEL – Ah! foi o senhor que salvou Henrique!
ALVES – Apenas ajudei-o a salvar-se.
MIRANDA – Lançando-te ao mar com risco de tua vida. Chamas a isto ajudar?
ALVES – Perdão! Augusto estava me convertendo ao casamento, minha senhora.
ISABEL – É lisonjeiro para mim.
MIRANDA – Queres saber o que mais o horrorizava, Bela? Era a ideia de ficar hipotecado corpo e alma à sua mulher.
ALVES – Não; não é isso que me assusta, mas o receio de não poder ou não saber fazê-la feliz.
MIRANDA – Não te hás de casar com uma mulher que não tenha inclinação por ti e que não te estime. Portanto que receio é este?
ISABEL – Decerto, Sr. Alves. Não nos suponha tão difíceis. Fazer a felicidade de uma mulher é cousa que custa tão pouco, àqueles que o desejam!
ALVES – Enfim, tratarei de seguir o teu conselho, Augusto.
MIRANDA – Já nos deixas?... Nem por serem tão raras as tuas visitas?...
ALVES – Esta é de despedida. Por isso desculpa.
MIRANDA – Como assim?...
ALVES – Vou a S. Paulo e de lá a Minas. (Entra CLARINHA.)
MIRANDA – D. Clarinha, prima de minha mulher. O Sr. Alves, meu amigo. (Cumprimentos.)
ALVES – Talvez possa te ser útil nesta viagem. Tenho amigos que não duvidarão interessar-se pela tua candidatura.
MIRANDA – Quando partes?
ALVES – Nestes dois dias.
MIRANDA – Bem; havemos de nos ver ainda. Eu te procurarei. Pretendes demorar-te até o tempo das eleições? (CLARINHA e ISABEL conversam.)
ALVES – Talvez seja obrigado a ficar por lá um ano.
MIRANDA – Que resolução tão repentina foi esta?
ALVES – Eu te digo. Os meus negócios não andam bem; tenho-me visto em sérios embaraços. Se não conseguir até o fim do ano próximo realizar o nosso ativo, não sei o que sucederá. Por isso resolvi deixar a casa sob a direção de meu sócio; e ir eu mesmo fazer essas cobranças.
MIRANDA – Sinto que estejas em dificuldades. Lembra-te que nessas ocasiões é que servem os amigos. O meu casamento trouxe-me alguma fortuna. Far-me-ás obséquio dispondo dela.
ALVES – Obrigado, Augusto, obrigado. Não será necessário; tenho fé nos meus devedores. Até amanhã. Minhas senhoras!
ISABEL – Boa viagem, senhor Alves! Dizem que as paulistas são bonitas; é natural que o convertam.
ALVES – Não creia. minha senhora! Quem resistiu às fluminenses, é um herege que já não tem salvação.
CENA III
[editar]ISABEL e CLARINHA
(ISABEL sentada, CLARINHA em pé)
CLARINHA – Verás que ele ainda não vem esta noite.
ISABEL – Quem?
CLARINHA – Onde estás com a cabeça, Bela? de quem falávamos nós?
ISABEL – Ah! De Henrique?
CLARINHA – Dele mesmo.
ISABEL – E dizias que ele não virá esta noite?
CLARINHA – É o mais certo. Com o pretexto da chuva... Tu não quiseste mandá-lo chamar para que nos acompanhasse ao teatro... Era o único meio de fazê-lo passar a noite conosco.
ISABEL – Sabes que eu não gosto de sair sem Augusto!
CLARINHA – Se formos a esperar por ele, não sairemos nunca! Então agora que lhe meteram na cabeça ser deputado! O verdadeiro é ires te habituando. Quem nos acompanhava quando estivemos em Petrópolis, não era Henrique?
ISABEL – Sim... mas hoje não estava com disposição de sair, Clarinha.
CLARINHA – Quem te obrigava a sair? Ele vinha... Dava-se uma desculpa...
ISABEL – Ele virá independente disso.
CLARINHA – O que perdes?
ISABEL – O quê?... Perco o teu vestido de noiva.
CLARINHA – Deveras, minha senhora?... Também quer zombar de mim? (Beijando-a) Ah! Se a dificuldade estivesse no vestido!
ISABEL – Não há dificuldade alguma.
CLARINHA – Ah! para ti é como se estivesse feito.
ISABEL – E há de fazer-se, Clarinha, eu te prometo.
CLARINHA – Ora! Se ele não quiser, menos eu.
ISABEL – Ele quer; não te tenho dito tantas vezes!
CLARINHA – Tu, muitas; mas Henrique nem uma só.
ISABEL – Se foges dele!
CLARINHA – Então eu é que lhe hei de fazer a corte?
ISABEL – Fazer, não; mas aceitar, Clarinha.
CLARINHA – Ora, Bela, o tal sonso do senhor Henrique bem sabe que uma moça quando se esquiva é para ser perseguida.
ISABEL – Nem sempre. (JOAQUIM traz luzes.)
CLARINHA – Eu falo das moças; não falo das senhoras casadas. (Olhando a pêndula) Mais de oito horas!
ISABEL – Não é tarde.
CLARINHA – Querem ver que foi ao teatro?
ISABEL – Estás impaciente.
CLARINHA – Não sabes a razão?... É que hoje isso se decide.
ISABEL – Com toda essa pressa!
CLARINHA – Pois hei de estar gastando à toa o meu coração? Que contas darei depois a meu marido? Eu só pretendo querer bem uma vez... Mas essa há de valer por todas.
ISABEL – Se não encontrares a indiferença e o abandono!...
CLARINHA – Asseguro-te que não hei de sofrê-lo por muito tempo.
ISABEL – Será ele?
CLARINHA – Ah! (Afastando-se.)
ISABEL – Que é isso? Em que ficou a resolução de há pouco?
CLARINHA (Gesto de silêncio) – Queres que ele suspeite que o estava esperando? (Folheia as músicas no piano.)
CENA IV
[editar]As mesmas e HENRIQUE
HENRIQUE – Boa-noite, Clarinha!
CLARINHA – Ah! que susto que eu tive! Não o vi entrar. (Aperta-lhe a mão.)
HENRIQUE – Bela!
ISABEL – Adeus, Henrique! (CLARINHA na janela.)
HENRIQUE (Meia voz) – Incomodo?
ISABEL – Clarinha!
CLARINHA – O que é?
ISABEL – Vem conversar!
CLARINHA – Quem me quer, me procura, minha senhora.
ISABEL (a HENRIQUE) – Sabe com quem é aquilo.
HENRIQUE – Clarinha gosta dos girassóis. (A ISABEL, baixo) Desejo falar-lhe.
CLARINHA – Tenho esse mau gosto.
HENRIQUE – Pois eu prefiro as saudades. (Olha ISABEL.)
ISABEL (meia voz) – Não!
CLARINHA – Já sabia disso.
HENRIQUE (a meia voz) – Pela última vez!...
ISABEL (idem) – Lembre-se do seu tio!
HENRIQUE (idem) – Espere-me nesta sala!
ISABEL (idem) – Que loucura é esta?
CLARINHA – Se é de mim, podem falar alto.
HENRIQUE – Estávamos tão longe daqui!
CLARINHA – No mundo da lua talvez.
HENRIQUE – Tem razão, Clarinha. Eu sou um louco. (Ergue-se.)
ISABEL – Henrique!
CLARINHA – Zangou-se por um gracejo!
ISABEL – Está hoje triste; vê se o consolas.
CLARINHA – É cousa para que não tenho jeito, Bela.
ISABEL – E dizes que o amas! (Afasta-se.)
CLARINHA (a HENRIQUE) – Ainda está mal comigo?
HENRIQUE – Por quê?
CLARINHA – Pelo que lhe disse.
HENRIQUE – Nem já me lembro o que foi.
CLARINHA – Muito obrigada!... Não esperava tanto da sua amabilidade. (Afasta-se.)
ISABEL (a CLARINHA) – Vamos jogar!
CLARINHA – Joga com o Sr. Henrique!
HENRIQUE – É verdade! Façamos alguma cousa para passar o tempo.
CLARINHA – Ele passa tão devagar nesta casa!
HENRIQUE (a ISABEL) – Não quer jogar?
ISABEL – Clarinha está arrufada. Não tem graça (Vai ao piano.)
HENRIQUE – Toque um pouco.
ISABEL – Já esqueci o que sabia.
HENRIQUE – Que desculpa, Bela!
ISABEL – Não ouve? Iaiá está chorando. (Sai.)
CENA V
[editar]CLARINHA e HENRIQUE
CLARINHA – Chamou-me?
HENRIQUE – Não.
CLARINHA – Parecia-me ter ouvido o meu nome...
HENRIQUE – Foi engano seu.
CLARINHA – Logo vi que não era possível.
HENRIQUE – Que eu a chamasse?
CLARINHA – Sim! Está para ser a primeira vez.
HENRIQUE – Podia ser hoje.
CLARINHA – Como ontem.
HENRIQUE – Se eu tivesse alguma cousa de agradável a dizer-lhe!
CLARINHA – E não tem, Henrique? (Entra ISABEL.)
HENRIQUE – A minha conversa aborrece de ordinário.
CLARINHA – A mim?
HENRIQUE – A todos. Não ouve Iaiá que está chorando?
CLARINHA – Está mas é brincando.
HENRIQUE – Ora! está chorando: vá acalentá-la, Clarinha.
CLARINHA – Não precisa procurar pretextos para afastar-me, meu senhor! Faço-lhe a vontade.
CENA VI
[editar]Os mesmos, ISABEL e MIRANDA
ISABEL – Henrique, eu lhe suplico!
MIRANDA – Até logo... Como estás, Henrique?
HENRIQUE – Boa-noite, meu tio!
MIRANDA – Que tens?
HENRIQUE – Nada.
MIRANDA – Desejo falar-te amanhã. (Vai sair.)
ISABEL – Augusto! (Dirige-se a ele) Queria pedir-lhe uma cousa.
MIRANDA – Dize!
ISABEL – Tens muita necessidade de sair hoje?
MIRANDA – Muita.
ISABEL – Podias passar a noite conosco.
MIRANDA – É impossível, Bela! As eleições estão próximas, e hoje deve decidir-se a minha candidatura.
ISABEL – Todo o teu tempo agora é tomado pela política.
MIRANDA – Ainda assim tens a melhor parte dele. Não sabes quem me faz tão ambicioso?
ISABEL – Pois bem; toma chá conosco esta noite; e eu te prometo nunca mais queixar-me.
MIRANDA – De todo não posso, Bela; acredita-me. Clarinha e Henrique te farão companhia.
ISABEL – Sim! Mas eu fico só!
MIRANDA – Pouco me demoro.
CENA VII
[editar]Os mesmos e SALES
SALES – D. Isabel!... Doutor Miranda!
MIRANDA – Como passou, Sr. Sales?
CLARINHA (a MIRANDA) – Vai passear na forma do costume?
MIRANDA – Não dá licença?
CLARINHA – Se eu fosse Bela, decerto que não.
ISABEL – Ele precisa sair.
CLARINHA – Não se acabam mais essas malditas eleições?
MIRANDA – Oh! não pense que me esqueço daquela nossa conversa. Amanhã...
CLARINHA – O que tem?
MIRANDA – Pretendo falar a Henrique.
CLARINHA – A respeito?...
MIRANDA – Como está esquecida! Até logo, (a meia voz) minha linda sobrinha! (Vai sair.)
CLARINHA – Engraçado!... olhe! Faça-se deputado depressa para que Bela fique descansada; e quando for Ministro, lembre-se que tenho um favor a pedir-lhe.
MIRANDA – Loterias para teatro lírico?
SALES – Realmente é uma necessidade!
CLARINHA – Não, senhor; é um hábito da Rosa aqui para o senhor Sales.
MIRANDA (rindo-se) – Ah! (Sai.)
SALES – Agradeço muito, minha senhora!
CLARINHA – Se há de ter o trabalho de comprar todos os dias uma flor para deitar na gola do casaco...
SALES – Esta flor vale mais para mim do que uma fita.
CLARINHA – E de longe faz o mesmo efeito!
SALES – Nunca reparei nisso, D. Clarinha!
CLARINHA – Acredito! O senhor não se vê senão no espelho! É muito justo. (Entra SIQUEIRA.)
SALES – Confesso que não entendo.
CLARINHA – É pena! O senhor Siqueira que lhe explique.
SIQUEIRA – O quê, D. Clarinha?
CLARINHA – O Sr. Sales não compreende como a gente se pode ver sem ir ao espelho.
SIQUEIRA – Ah! Facilmente, Sr. Sales! Nos olhos dos outros...
CLARINHA – Aprendeu?... Estimo muito!
CENA VIII
[editar]ISABEL, CLARINHA, HENRIQUE, SALES e SIQUEIRA
SIQUEIRA (a ISABEL) – Miranda saiu?
ISABEL – Neste momento.
SIQUEIRA – Já não pára em casa.
ISABEL – Tem muito que fazer agora!
SIQUEIRA – Sei; a maldita política. O pior vício que há em nossa terra.
ISABEL – Os homens como Augusto, meu pai, precisam de uma vida agitada.
SIQUEIRA – É verdade. As honras e as altas posições seduzem, mas fazem esquecer um tanto os amigos e até a família.
ISABEL – Que quer? Ele tem necessidade de uma ocupação séria. (JOAQUIM coloca diante de ISABEL uma banca volante e a bandeja de chá.)
SIQUEIRA – E a educação dos filhos, e a felicidade doméstica?
ISABEL (Fazendo o chá) – Que tem?
SIQUEIRA – Não são ocupações sérias e dignas mesmo de uma grande inteligência?
ISABEL – Ah! Mas não bastam para o homem de talento. Estar sempre junto da mulher, vivendo para a sua família... Isso seria ridículo até.
SIQUEIRA – Não digas isso!
ISABEL (com ironia) – Nós as mulheres, sim, é a nossa obrigação!... Enquanto solteiros é justo que façam sacrifícios por nós, mas depois! Não sabemos que nos amam? Não se casaram conosco? Algumas queixam-se porque ficam isoladas e tristes; mas a culpa é delas. Para que inventaram os bailes, senão para nos divertirem
enquanto eles tratam dos seus negócios? Clarinha vem tomar chá.
CLARINHA – Obrigada! Não quero (Vai ao piano.)
SIQUEIRA – Tens razão, Bela! não no que dizes mas no que sentes. Atualmente uma moça deixa a família, separa-se dos pais, com o homem a quem ama para ter um companheiro de sua vida; e o que ela encontra no casamento é a solidão e a viuvez de todas as afeições.
ISABEL – Estava gracejando, meu pai. Não tenho razão de queixa. Meu marido cerca-me de tantas atenções. (Pausa.)
SIQUEIRA – Que é da minha afilhada? Não me esqueci dela. (Tira balas do bolso.)
ISABEL – Está lá dentro. Joaquim, dize a Rita que traga Iaiá. (JOAQUIM vai à porta. Tomam chá.)
CLARINHA – Sr. Sales!
SALES – Minha senhora!
CLARINHA – O senhor não canta?
SALES – Não, D. Clarinha.
CLARINHA – Mas eu creio que já o ouvi na Campesina.
SALES – Nem sou sócio.
CLARINHA – Então seria alguém que se parece com o senhor.
ISABEL – Canta com Henrique.
HENRIQUE – Estou rouco.
CLARINHA – Não faz mal. É o seu estado natural.
HENRIQUE – Excelente razão. Serve para hoje e para outra vez.
CLARINHA – Oh! Guarde na carteira, que eu terei o cuidado de não convidá-lo mais.
ISABEL – Estão sempre brincando.
SIQUEIRA – Já me parecem casados.
JOAQUIM – Iaiá está dormindo, sim senhora.
SIQUEIRA – Deixe-a dormir.
CLARINHA (a SALES) – Deveras o Sr. não canta?
SALES – Não tenho voz, D. Clarinha.
CLARINHA – Pois ensaiemos o dueto conversando. Aí vai o acompanhamento. (Pausa.)
SIQUEIRA (a HENRIQUE) – Está jogando a paciência? É jogo de velho.
HENRIQUE – Ao contrário. Os velhos já não esperam; e por isso não precisam de paciência.
SIQUEIRA – Oh! se precisam! Sobretudo neste tempo de cosméticos e chinós, em que já não se tolera o desleixo daquele que parece velho.
CLARINHA – Então, Sr. Sales, não diz nada?
SALES – Estou ouvindo.
CLARINHA – O Sr. dava um bom deputado. Por que não se apresenta agora?
SALES – A senhora tem lembranças!
CLARINHA – Seriamente! Não dizem que todas as opiniões e todas as classes devem ser representadas no parlamento? Pois a moda ainda não tem o seu órgão; pelo menos uma vez que fui á Câmara não vi lá nenhum figurino. Quanto ao Senado, não se fala; são quarentões. Ora, se o senhor se apresentasse, era sem contestação candidato pela Província da Rua do Ouvidor.
SALES – Está brincando, D. Clarinha? Pois olhe; não me faltam elementos. Se o governo quiser!
CLARINHA – Ora se quiser! Assim achasse ele uma dúzia como o Sr.
SIQUEIRA (a HENRIQUE que baralha as cartas) – E negam que este mundo não anda às avessas! Quando eu tinha sua idade, deixava o baralho às velhas que se ferravam na bisca, e nós os rapazes armávamos um joguinho de prendas, ainda que não fosse senão para ter o prazer de abraçar uma moça bonita como Clarinha, e pôr o tal senhor Sales de lampião de esquina.
HENRIQUE – Ele representa melhor de candeeiro de sala. Não vê como está tão lustroso!
SALES – Estava admirando o seu vestido. É realmente de muito bom gosto.
CLARINHA – Sinto não poder lhe agradecer... Foi um presente.
SALES – Não importa. A senhora é que lhe dá realce.
CLARINHA – Desta vez, sim senhor, obrigada. Mas agora reparo. Está com umas luvas muito lindas.
SALES – Quer zombar de mim.
CLARINHA – Não sou capaz. Deveras são muito elegantes.
SALES – Talvez a senhora não acredite! Atualmente não se encontra um par destas luvas em todo o Rio de Janeiro. Pode correr toda a Rua do Ouvidor.
CLARINHA – São tão raras assim?
SALES – É uma cor muito distinta. Não acha?
ISABEL – Que conversa tão animada!
SALES – D. Clarinha não quer cantar.
CLARINHA – O Senhor Sales estava contando-me a história de suas luvas gris-perle. (Deixa o piano.)
ISABEL – Ah! devia ser interessante.
SALES – D. Clarinha tem muito espírito.
CLARINHA – Parece-lhe?... Estou quase duvidando. (HENRIQUE ergue-se e consulta o relógio.)
SIQUEIRA – Que horas tem?
HENRIQUE – Quase dez.
SIQUEIRA – Boa-noite!
ISABEL – Ainda é cedo, meu pai!
SIQUEIRA – Vou amanhã para Petrópolis...
ISABEL – Tão depressa! Eu tenho muitas queixas suas. Agora quando vem à cidade, apenas passa conosco um ou dois dias. Já não nos quer bem!
SIQUEIRA – Estou velho... Custa-me a passar muito tempo fora de casa.
CENA IX
[editar]HENRIQUE, SALES, ISABEL e CLARINHA
HENRIQUE – Ainda fica, Sr. Sales?
SALES – Não, senhor. Vamos juntos.
ISABEL – É muito cedo. Para serem amáveis, deviam ficar fazendo-nos companhia até que Augusto voltasse.
HENRIQUE – Não posso. São mais de dez horas.
CLARINHA – Tão tarde. Deve estar caindo de sono!
SALES – Na sua presença?... Não é possível, D. Clarinha.
CLARINHA – Isto quer dizer que a minha presença produz o mesmo efeito que o chá verde! Ataca os nervos. Obrigada pela fineza, Sr. Sales.
SALES – Perdão! Eu não tive intenção de dizer semelhante cousa.
HENRIQUE – Bela!
ISABEL – Adeus!
HENRIQUE (baixo) – Até logo!
ISABEL (alto) – Até amanhã!
HENRIQUE (baixo) – Eu voltarei, Bela! Para vê-la uma última vez!
ISABEL – Não! Não volte! Eu lhe suplico.
SALES – D. Isabel!
ISABEL – Passe bem, Sr. Sales.
HENRIQUE – Adeus, Clarinha!
CLARINHA – Adeus! Pode voltar amanhã, que já não terá o desgosto de encontrar-me aqui.
HENRIQUE – Nem amanhã, nem depois, Clarinha. Talvez nunca mais. Quem sabe o que pode suceder? Adeus!
SALES – Minhas senhoras!
CENA X
[editar]ISABEL e CLARINHA
CLARINHA – Tu me emprestas o teu carro?
ISABEL – Onde queres ir? Está às tuas ordens.
CLARINHA – Vou para o Andaraí.
ISABEL – Que quer dizer isto?
CLARINHA – Há oito dias não vejo minha tia. Demais tu já deves estar aborrecida de mim.
ISABEL – Henrique te disse alguma cousa?
CLARINHA – Pois não viste?
ISABEL – O que? que te disse ele?
CLARINHA – Não disse nada! É o seu costume.
ISABEL – Mas escuta...
CLARINHA – Faça-me um especial favor, minha prima. Não falemos mais disto.
ISABEL – Estás agastada e não tens razão.
CLARINHA – Nenhuma. Eu já sabia.
ISABEL – Não tens razão, não, Clarinha. Se Henrique te trata com indiferença, a culpa é tua.
CLARINHA – Cada vez a melhor.
ISABEL – Que necessidade tinhas de chamar o Sales para junto de ti, e conversar com ele daquele modo?
CLARINHA – Havia de estar muda?
ISABEL – Anda lá! Querias te vingar de Henrique. Não sabes quanto isso é perigoso.
CLARINHA (rindo-se) – Com o Sales? (Toma o lenço no piano e acha uma rosa.)
ISABEL – Com qualquer. Dessas conversas inocentes nasce muitas vezes uma inclinação.
CLARINHA – Não calunies o pobre moço. Coitado! Ficou tão atrapalhado que deixou cair a rosa da casaca. (Atira a rosa ao chão.)
ISABEL – Talvez Henrique se ressentisse de ver a intimidade com que o tratavas.
CLARINHA – Não faz mal. Já não me inquieto com isso.
ISABEL – Falas sério?
CLARINHA (beijando-a) – Está tudo acabado, Bela. Vou dormir tranquila.
ISABEL – Olha para mim, Clarinha!
CLARINHA – Deixa-me!
ISABEL – Estás chorando!
CLARINHA – Eu, não!... até amanhã. (Foge.)
ISABEL – Vem cá! Ouve!
CENA XI
[editar]ISABEL e JOAQUIM
(ISABEL toca o tímpano e entra no seu toucador.)
ISABEL (de dentro) – Joaquim!
JOAQUIM – Minha senhora!
ISABEL – Vai fechar a porta; teu senhor volta mais tarde.
JOAQUIM – Eu posso esperar por ele.
ISABEL – Não! Fecha a porta. Quero deitar-me.
JOAQUIM – Minha senhora está doente?
ISABEL – Estou me sentindo constipada. Se Henrique vier... Talvez ele volte para falar com teu senhor... Se ele vier, tu lhe dirás que já estão todos recolhidos. Ouviste?
JOAQUIM – Sim, senhora. (Fecha as janelas e apaga as luzes. ISABEL sai de roupão de dormir, trazendo uma luz.)
ISABEL – Toma o dinheiro para as compras. Vê se nos dão amanhã melhor jantar. Teu senhor hoje passou mal.
JOAQUIM – Eu reparei, sim senhora!
ISABEL – Está bem. Vai!
JOAQUIM – Deus dê boa noite à minha senhora.
ISABEL – Obrigada! (Pausa.)
CENA XII
[editar]ISABEL e HENRIQUE
(ISABEL vai recolher; HENRIQUE aparece.)
HENRIQUE – Perdão, Bela!
ISABEL – Fuja desta casa, Henrique!
HENRIQUE – O que receia?
ISABEL – Oh! não é por mim, é por ele, é pelo senhor que eu receio... que eu temo. O amor de uma mulher encontra-se a cada momento; a afeição de um amigo como ele, de um pai, só Deus a pode dar.
HENRIQUE – Onde vai? ouça-me por compaixão.
ISABEL – Vou mandar abrir as portas e trazer luzes.
HENRIQUE – Bela, a mulher de meu tio, devia saber que é para mim sagrada.
ISABEL – Não parece
HENRIQUE – Não tenho fugido da sua presença? Há quantos dias não vinha aqui?
ISABEL – Não devia vir a esta hora.
HENRIQUE – É tão grande ofensa vê-la pela última vez!
ISABEL – Não o compreendo.
HENRIQUE – Amanhã...
ISABEL – Acabe!
HENRIQUE – Amanhã parto para Montevidéu. Deixo a paz e a felicidade nesta casa, na qual nunca mais devo entrar.
ISABEL – E Clarinha?
HENRIQUE – Que tenho eu com ela? Que me esqueça.
ISABEL – Mas ela o ama!
HENRIQUE – Ela!...
ISABEL (severa) – Henrique!
HENRIQUE – Ah! Eu sinto que sou um miserável. Não vê? A vergonha me queima as faces.
ISABEL – Ame Clarinha! Aceite esse primeiro amor de um coração puro. Ela lhe dará a felicidade.
HENRIQUE – Pede-me um impossível. Não lhe basta deixar de ver-me e para sempre, Bela!
ISABEL – Mas esse projeto é uma loucura.
HENRIQUE – Que importa, se é a sua tranquilidade.
ISABEL – Comprada com a desgraça do seu tio. A afeição que Augusto lhe tem, só eu a conheço. É uma ternura de mãe, disfarçada pela severidade de um pai. Como sofrerá essa ausência?
HENRIQUE – Se ele pudesse suspeitar o que se passa em mim, seria o primeiro a exigir que partisse. Há muito o devia ter feito.
ISABEL – Reflita, Henrique!
HENRIQUE – Não posso arrancar minh'alma aos pedaços e atirá-la para longe de mim. É preciso que eu a arraste comigo, Bela: e a desterre deste lugar onde cada um dos seus pensamentos é uma infâmia. Não devia ter vindo... Mas partir sem dizer-lhe uma palavra, sem dizer-lhe adeus... o último adeus..
ISABEL – Ainda nos veremos um dia!
HENRIQUE – Nunca!
ISABEL (comovida) – Não me roube essa esperança, Henrique!
HENRIQUE (terno) – Bela!
ISABEL (recobrando-se) – Adeus! (Estende-lhe a mão com frieza e esforço.)
HENRIQUE – Tem razão! Adeus, minha irmã.
ISABEL (ouvindo bater à porta da rua) – Meu marido! Eis o que eu temia, Henrique!
HENRIQUE (quer sair) – Não posso vê-lo!
ISABEL (com império) – Fique!
HENRIQUE – Não sei fingir, Bela!
ISABEL – Mas esse mistério pode condenar-me, Henrique!
HENRIQUE – A ti, a mais pura e a mais santa das mulheres!... Impossível. (Abre uma janela.) Ninguém me verá. A noite está escura e o jardim deserto.
ISABEL – Mas é uma imprudência...
HENRIQUE (na janela, já oculto pelas cortinas) – Lembre-se alguma vez do mísero que enlouqueceu porque teve a desgraça de amá-la mais do que a um pai...
ISABEL – Adeus! E esqueça-me...
(MIRANDA entra e ouve as últimas palavras de ISABEL que enxuga uma lágrima e voltando-se acha-se em frente do marido que se tendo precipitado, a arreda violentamente e corre à janela.)
CENA XIII
[editar]ISABEL e MIRANDA
(MIRANDA corre à janela e já não vê o vulto; luta, perplexidade entre o ímpeto de lançar-se pela janela e dirigir-se à mulher.)
MIRANDA (rindo convulso) – Que importa! É um homem qualquer... o instrumento da desonra! O pretexto do crime!
ISABEL (espanto) – Ah! (Pausa.)
MIRANDA (toma a luz e esclarece o rosto de ISABEL) – Ainda cora!
ISABEL – De indignação, senhor!
MIRANDA – Nem uma palavra!
ISABEL – Oh!. não me defendo... Se eu fosse criminosa, já estava morta de vergonha a seus pés.
MIRANDA – Quem era esse homem?
ISABEL – Oh! Não! Nunca!
MIRANDA – Quem era esse homem, senhora? (Pausa.) É escusado o silêncio.
ISABEL – Que diz, senhor?
MIRANDA (mostrando a rosa, que apanha aos pés de ISABEL) – Por quem, meu Deus!... Por um Sales!... (Cobre o rosto com as mãos e soluça. ISABEL olha-o com desespero.)
ISABEL – Eu sou inocente, Augusto!
MIRANDA – Vi tudo, senhora!... Vi... Não cuide que a espiei. Oh não! minha confiança era cega. Mas disseram-me que se tinha recolhido incomodada, e eu abafei os meus passos para não perturbar o seu sossego! (Ri-se.) Imbecil! (MIRANDA fecha as portas, vai ao gabinete; traz um par de pistolas. ISABEL, enquanto ele sai, ajoelha.)
ISABEL – Dá-me coragem... meu Deus!
MIRANDA – Ele vai julgar-nos. (Carrega as pistolas.)
ISABEL – É um crime inútil, senhor. Sei respeitar a sua e a minha honra.
MIRANDA – Inútil é a vida que me deixou depois de calcar aos pés a minha felicidade. (Aponta.)
ISABEL – Oh! (Grito de pavor. IAIÁ bate na porta, chamando: papai.)
MIRANDA – Minha filha! Ah! é preciso viver para ela... e para o mundo! Quanto a vos... morremos um para o outro.