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O sonho do idiota

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Je suis inconsolable de t’avoir vue. Hélas! tu es la bien-aimée! J'ai la mélancolie de toi. Je n'ai de force que vers toi.

VILLIERS DE L'ISLE ADAM, Axël

Revelações de gênesis que acorda, talvez, no cérebro daquele idiota. Revelações de gênio incubado, que o segredo de um pensamento isolou e emudeceu... Mas, contudo, o certo era que no cérebro daquele idiota rasgavam-se esferas curiosas de sensação, radiavam chamas fenomenais, línguas malditas falavam as linguagens cabalísticas, misteriosas, das paixões humanas, das complexidades psíquicas.

Espécie de formidável olho de ciclope, esse cérebro deformado via em visão múltipla, de sorte que, ainda mesmo na realidade, parecia sempre estar sonhando, ainda mesmo acordado, era um sonho vivo que perambulava...

Belo idiota, triste idiota, soturnizado idiota, este, em verdade, atado de pés e mãos ao cepo da sua própria existência, como anfratuoso e feroz orango preso em jaula de ferro!

De que rumos obscuros e tortuosos viera ele, girando no centro infernal das agonias desconhecidas; espécie dessas almas soluçantes na Dor e das quais a Natureza, por duras e rudes experiências, faz os eternos mármores e bronzes resistentes onde afia desassombrada e confiantemente as suas espadas e as suas lanças!

Quem sabe se ali não dormiria, nesse ser hediondo, a fina intuição arcangélica de um missionário celeste, para sempre irremediavelmente perdido no fundo dos grandes tédios e das grandes saudades?!



Uma vez que ermo e hirsuto como um dromedário sonolento errava pelas ruas escuras de certa cidade sombria, o pobre idiota foi corrido por apupos, pela chacota irreverente e apedrejada e penetrou, acolhendo-se, — massa mórbida, riso amolentado, aparência monstruosa de hidrocéfalo — a larga porta aberta de um templo iluminado.

Diante da multidão que murmurinhava dentro, ele estacou deslumbrado, como se de repente lhe parasse a circulação da vida, numa expressão animal tão veemente que os que o viram entrar olharam para ele surpresos, com movimentos instintivos de defesa, como diante de um perigo iminente.

Ele, mudo, no entanto, mas parecendo falar consigo mesmo qualquer cousa inteligível, exprimir qualquer cousa entre grunhido e voz humana, não se apercebera desses movimentos e continuava ali, parado, a atitude dura e hostil de uma pedra humanizada, em forma de ser existente, mas sem a completação fisiológica de todos os sentidos normalizados.

Um perfume celeste errava, vivo e intenso, no ar, evaporava-se lânguido das névoas brancas dos incensos...

O órgão nebuloso e sensibilizante, despertando na imaginação a lembrança de uma sombria clausura de almas suspirando e gemendo em sonhos tocantes e solitárias harmonias e magoados queixumes, e ao mesmo tempo longínquo, largo, lento e velado vento onduloso e dormente graduado em sons, expirava com enternecimentos melódicos, com taciturnas lágrimas sonâmbulas, deixando no ar a pungente melancolia fugitiva de um esquecimento amargo...

No recinto, agora, bizarros alvoroços passavam... Um zunzunear de turba que ondeia e que murmura. Era o vago adeus de final da festa. Abriam-se vastos e nítidos claros na multidão espessa, que se afastava, que saía... Uma agitação subia, uma pressa e confusão de retirada, como se o sopro rápido e fatal da desolação das cousas tivesse vindo inexoravelmente apagar a chama daquela fé que ali há instantes se acendera.

E aquela ondulação de corpos ia e vinha, circulava, para a direita, para a esquerda, subia e descia, para baixo, para cima, estuando, com a respiração de desabafo de um grande monstro saciado, já decrescendo, diminuindo, com oscilações fugitivas de torrente que escapa, que cede nos turbilhonamentos do curso...

Arrastado pelo povo, atirado aqui e ali pela onda que decrescia cada vez mais, o idiota tinha desaparecido de repente, semelhante a um mergulhador exótico que desce aos incoercíveis abismos do mar para surpreender-lhe os segredos.

Mas, daí a pouco, como a última onda da multidão se aproximasse da nave central, voltando do altar-mor onde genuflexara ante a imagem lívida e melancólica de Jesus, o idiota então novamente apareceu.

Agora, porém, o seu rosto de uma dureza e aridez de deserto, parecia estar transfigurado por um sentimento de infinita doçura, que o tornava quase belo. Uma irradiação dava-lhe asas... As linhas do seu perfil tortuoso ameigavam-se, suavizavam-se, e, nos olhos sempre opacos e indiferentes, fluía um brilho inefável, uma indizível emoção, tão intensa, tão viva, que dir-se-ia que os olhos tinham voz, que essa voz falava, que essa fala vinha pungida de lágrimas e acariciada de beijos... Olhos cheios das úmidas fulgurações de ouro líquido dos grandes e comoventes alucinamentos, parecendo terem atravessado a luz virgem de outros mundos intactos, invioláveis a olhos profanos; olhos que continham em si as febris alegrias de gozos inimagináveis.

Ele sentira, na verdade, qualquer cousa que o abalara, que o metamorfoseara assim por instantes desse modo.

Desvendara algum mistério, achara alguma constelação na terra, algum anjo entre os homens, alguma visão entre as mulheres! Sim!

Ele a tinha visto, na sua beleza mais do céu do que da terra, loura, os cabelos finíssimos, os olhos azuis peregrinos de frescura suave, a boca deliciosa e doce, na expressão cândida, infinitamente delicada, da carícia sutil de beijos alados.

Ele a tinha visto, espiritualizada por nimbos de angelitude — flor de graça e de glória, misto de madressilvas e luar, madona de seu viver mumificado, santa de lirial candidez entre todas as santas dos altares que ele estava vendo, mais bela do que todas, bendita e branca, inundada do cintilante pólen fecundativo da puberdade, vestida para o seu amor das alvas resplandecências sidéreas, pomba pulcra que não se dignava abrir e pousar as finas asas níveas e virginais sobre a necrópole vazia do seu coração de Idiota. Sim! ele agora era como um firmamento pomposo de astros: a beleza dela, que sorrira, passara e desaparecera na multidão, o tinha estrelado celestemente. Vergava, pois, ao peso de tanta e luminosa ventura, da ventura única de vê-la, de olhá-la sem pecado e sem crime nesse olhar, de senti-la de longe sem que o seu sentir a lesmasse, a manchasse com a lepra da sua miséria. Não! Ela fora embora, mas tão imaculada ou mais ainda do que nunca por aquele olhar-bênção, por aquele olhar-perdão, por aquele olhar-amor que ele lhe havia vibrado ocultamente, de longe. Nenhuma das partículas da sua desgraça sem limites a maculara, ele bem o sabia.

Ela era a flor, ao mesmo tempo carnal e mística, onde dormiam sonos mornos e magnéticos os insetos miraculosos de uma volúpia secreta. E ele, ao vê-la, para ali ficara absorto, contemplativo, no êxtase misterioso de uma Sombra sonhando...

Naquele instante divino todo o seu mísero ser estava também divino. Um prodígio de sensibilidade, de um sentimento melhor, que não é deste mundo, o iluminava e bendizia.

E esse sentimento que o transformava e que ele próprio desconhecia assim tão intenso e curioso na sua alma, transcendentalizava-o e dava-lhe ao obtuso idiotismo uma como que supervisão, certa regularização lúcida e nobre, fazia-o por instantes viver, reflexamente, na origem ignota de uma especial percepção mental e de uma extravagante emoção.

Podiam ligar-se, pois, ele e ela, no mesmo fundo de abstratas purezas, prender-se pelas mesmas espirituais correntes, fundir-se nos mesmos emotivos espasmos... Não! ele não violaria os melindres, os escrúpulos arcangélicos daquela natureza delicada, não iria empanar os cristais impolutos das esferas azuis onde ela triunfava. Podia, pois, reentrar, pura, inviolada, nos seus sacrários de ouro, nas suas preciosas redomas, nos seus majestosos domínios e reinados de formosura, incensar-se com o seu perfume de sempre, porque nada inteiramente nela nem de leve experimentara o contacto sutil das secretas e torturantes emoções dele.

Naquele grande momento a sua alma de olvidado tinha altares iluminados como esse templo, onde ele hóstias de sentimento comungava. Sim! ela se fora, ela passara, rápida e descuidada dele, mas deixando-lhe nesse curto espaço de tempo, que sintetizava toda a sua vida, mais funda e mais em chama que um abismo de sóis vulcanizados, a sangrante e convulsiva paixão que faz a febre, o delírio mortal do mundo.

Entretanto, parecia-lhe que já a havia encontrado outrora, noutros orientes lingínquos, noutra região de sol e de néctar, d'estrelas e açucenas, sob outra forma divina. Parecia-lhe que no país vago, azuladamente nevoento e remoto das suas reminiscências ela passara um dia, sob um fundo curioso de dolências, na delícia suprema e nunca mais gozada de sensações inolvidáveis que ele então experimentara.

Mas onde, já, o contacto das suas duas almas, sublimadas no Afeto, se dera na Terra? Onde se assinalara o encontro dos seus seres opostos? Que ritmos simpáticos os tocaram sensibilizantemente?

Ah! que vás Interrogações ao mesmo tempo tão inefáveis e tão terríveis!

Sim! não era ela nada mais do que a encarnação palpitante da sua visão, a cristalização das suas fugitivas saudades e ilusões, que por aquela embaladora e fugitiva forma vinha dizer-lhe o melancólico, o aflitivo, o desesperado adeus para sempre. Esse ressurgimento assim inaudito se lhe afigurava ser um fio tenuíssimo, disperso, de esquecida melodia, pelo qual se vai lentamente compondo e definindo aos poucos toda uma abandonada música sugestiva... Criação imprecisa, indecisa, indecisa, e que ele como que sentia ondular, através do espírito, na beleza e na tristeza fatal da lua melancolicamente exilada no exílio dos céus!

Ele radiava como uma transfigurada águia de envergaduras maravilhosas por entre um arco-íris sensacional de mistérios solenes — ele, miseranda lesma, que queria atingir, com as suas viscosas babas, o sol, purificar-se, perfectibilizar-se no sol!

A sua alma de noite paludosa, de caverna sem eco de vida afetiva, parecia agora feita de um azul meigo e crepuscular de firmamento osculado de luar, acordando numa opulenta e prodigiosa floração de pomos pomposos, de pasmos sensibilizantes...

Aquele organismo feio, nauseante, asqueroso, requintara nessa hora imprevista de deslumbramento, numa afinação rítmica de beleza estésica singularíssima, evidenciando ainda mais uma vez, assim desse modo, quanto as chamas da transcendência moral clarividenciam e transfiguram os seres, quintessenciando-lhes a forma do Sonho; que só a alma que sobe, sobe, sobe, que atinge ao céu astral de um purificado e abstrato Amor é bela...

Naquela hora todo o seu ser aspirava às intangibilidades supremas. Vôos e vôos de veementes anelos secretos cruzavam-se no seu ser. Aqueles momentos incoercíveis, etéreos, refinados num gozo original, subiam, do pólo negativo da sua humilhada matéria, ao pólo augusto das imortalidades do Espírito. Sim! Ficariam intactamente imortais esses surpreendentes e transfiguradores momentos de sensibilidade sem igual! Uma luz indelével de ilusão e de sonho fazia alvorecer e vibrar para sempre as recônditas e curiosas sensações, as ocultas e raras harmonias de tão fenomenal natureza.

Mas, como estivesse nestas profundas e extraordinárias conjeturas e agitações, revolto e incendido, a exemplo de um terreno onde há matérias inflamáveis, o idiota não havia reparado que a igreja estava quase vazia e que era ele uma das últimas sombras que ainda por ali se arrastavam na inconsciência dos pesadelos.

Nos altares já se haviam apagado todas as velas. Apenas, num dos altares laterais, dois círios acesos, mas quase extintos, ardiam, agonizando em fogachos fumosos e sangrentos, últimos soluços da luz, como almas abandonadas que ainda penassem no final de uma dor... Em cima, no seu nicho aberto em arabescos dourados, em ornamentações caprichosas, confusas e complicadas como sonhos, uma Santa loura, linda, o manto azul constelado de estrelas de prata, coroada de um diadema de cintilantes pedrarias, imobilizava-se indiferentemente como se por acaso a visão amada do idiota se tivesse ido ali corporificar nesse mármore de Santa.

Na sua pequena mão graciosa abria-se um lírio branco, — florescência simbólica das castidades místicas, forma cândida e aromal de volúpias sagradas e noviças...

O templo, como as portas misteriosas de um desses antigos subterrâneos suntuosos de riquezas, fechara-se afinal quase que por encanto...

Uma vida fantástica, místico-psíquica, ia sem dúvida se desenvolver agora na sombra, no silêncio frio, na solenidade morta, na solidão sagrada, através das vestiduras dos Santos, das luzes d'ocaso das lâmpadas, dos paramentos chamalotados, dos vitrais multicores, surgir, enfim, do enevoado esquecimento dos Ritos, como se o templo, significando e concentrando simbolicamente toda a histérica unção devota da Idade Média, naquele instante representasse o seu curioso cérebro hipercatólico, maquiavélico e fabuloso.

E, ou fosse porque não o tivessem visto ou porque o julgassem inócuo dentro do templo ou por qualquer outra capciosa razão, que escapara à penetração fiscalizadora dos acólitos, o certo é que ninguém deu pela presença do idiota sob aquelas abóbadas, só, silencioso e sombrio, após estarem seguramente fechadas todas as altas, largas e pesadas portas chapeadas de ferro.

Um profundo mutismo amortalhava o vasto recinto, dando à impassibilidade marmórea dos Santos uma expressão assustadora.

Parecia que todos eles dormiam sonos seculares e que por milagre inconcebível iam afinal acordar coincidentemente naquele momento, mover-se nos seus nichos, descer pé ante pé dos altares e, um a um desfilando, avultando, crescendo em número, enchendo toda a amplidão do templo, surpreender o idiota e puni-lo para sempre da culpa de tão insólita profanação.

Ele, porém, naquela solidão majestosa de onde se levantava o pavor, ia e vinha absorto num sentir extravagante, fechado no segredo tremendo da sua esquisita sensação de idiota, perdido o olhar atentamente nas Imagens mudas, a boca meio aberta, as narinas dilatadas num gozo mórbido de volúpias histéricas, como que na absorção das últimas névoas entontecedoras dos incensórios, percorrendo altar por altar, na perambulação hipnótica de fantasma do próprio fantasma do seu Desejo, de sombra da própria sombra do seu Afeto.

As altas, caladas e côncavas abóbadas, das quais parecia-lhe aos seus ouvidos alucinados do Desconhecido ouvir o profundo coro apocalíptico, reboando, ecoando de abóbada em abóbada; as grandes lâmpadas, à semelhança vaga de luas marchetadas ou de estranhas lágrimas estratificadas; todas essas magnificências de rituais que emudecem, de culto que dorme no granito e nos mármores dos seus santuários e Imagens, nas suas pratas e nos seus ouros lavrados, o magno e solene sono austero das Religiões, tudo isso incutia na impressionabilidade doentia do idiota emoções esparsas e amorfas, que não eram propriamente nem ingênitamente oriundas das idéias, mas curiosos estados de ser, enigmáticos monólogos, fenômenos nebulosos, talvez recuados ao antropomorfismo das células, à noite caótica, primitiva, da sensibilidade humana.

Mas, assim perambulando de altar em altar, de nicho em nicho, o triste idiota estacou diante daquela Santa loura, linda, o manto azul constelado d'estrelas, coroada de um diadema de cintilantes pedrarias, tendo na mão um lírio branco.

Estacou diante dela como que impelido por íntimo sobressalto, batido dalguma recordação impulsiva que o tornava mais estranho que nunca. Levantou bem para ela os olhos em bugalhos de delírio, de aflição sem remédio e, caindo de joelhos, prosternado, os braços invocativamente abertos, num espasmo terrível, rolou para ali todo o seu tormento medonho, toda a sua dor amordaçada, toda a sua miséria secreta, numa linguagem obtusa e confusa de demência.

A alma do Idiota alvorava numa aurora negra de lágrimas, abria numa grande flor glacial e lacerante de soluços.

Eram soluços e grunhidos, verdadeiramente grunhidos animais e soluços humanos, que abalariam as pedras, se as pedras não fossem mortas, que abalariam os Santos, se os Santos não fossem pedra.

Caído de bruços, babando, como mordido por serpentes, na impotência da Dor que encarcera e despedaça a alma, o Idiota tinha viva, de pé, em flor e em beleza diante da sua angústia, como um tentador espectro divino, a florescente aparição que ele vira ali mesmo no templo.

Passava-lhe agora pela mente todo esse clarão mortificante de gozo, todo esse tantalismo de mulher que sorri uma vez, brilha e para sempre desaparece. E ele nunca mais a veria, nunca mais, nunca mais, nunca mais!

Ah! que inferno nunca sonhado tinha posto ante os seus olhos inúteis e desprezados essa luz consoladora, essa luz que ele jamais sentira, tão bela e tão funesta, aparecendo na serenidade dessa manhã dentro do templo iluminado? Que força desconhecida arrancara dos limbos do mistério aquela formosura ondulante como um verme, perigosa como um veneno, para deixá-lo prostrado assim, assim de bruços rojado, impotente e impenitente, babando a baba do ciúme, talvez a baba verde da Inveja?!

Sim! ciúme desesperado por vê-la de outro, por senti-la nos braços de outro, exalando a frescura matinal da sua mocidade inteira nos braços de outro, abrindo e desfolhando todas as rosas e magnólias olentes e virgens dos seus encantos para o gozo de outro! Sim! Ciúme feroz e inveja ainda mais feroz por ver-se idiota, inerme e inútil para florescer, para brilhar ao lado de outro homem são e forte que a desejasse, que a possuísse! Ah! ele tinha unia inveja sinistra de toda essa humanidade que passava equilibrada, direita, sempre com os mesmos e retos raciocínios, pela sua presença. Em cada homem ele via um rival desapiedado, indiferente, que lhe roubaria, não somente essa aparição alvoral, mas todas as outras femininas belezas que serpenteiam no mundo.

Só o silêncio, só a solidão o consolava e por isso ali estava sob a vastidão daquelas abóbadas, mísero, de rastros, suplicando, como o mais estranho e ignóbil dos mendigos, a esmola santa da morte. Só na morte ele podia libertar-se desta inveja que o acorrentava, que lhe porejava do sangue, que lhe vertia um fel verde à boca — inveja verde, nauseabundo reptil verde enroscando-se-lhe nas carnes, medonho reptil verde saindo-lhe dos olhos, asqueroso reptil verde saindo-lhe das narinas, todo o seu miserável corpo invadido por hediondos reptis verdes.

E como se essa sugestão doentia e diabólica da inveja lhe tomasse logo todo o cérebro e pasmosamente lhe gerasse absurdas visões na retina, jungido à mais perseguidora e atroz obsessão, o idiota, como um monstruoso reptil verde, sentiu-se subdividido, multiplicado infinitamente em milhões e bilhões de reptis verdes de todos os aspectos e formas, longos, lentos, elásticos, subindo pelos altares, descendo pelos paramentos, viscando as vestes dos Santos, se arrastando pelas asas, pelos frisos das colunatas, pelo arco cruzeiro, tatuando de verde a prata das lâmpadas e subindo, sempre triunfais, avassaladoras, sufocantes, numa peste verde, numa alucinação verde, até o altar-mor, sobre o cibório de ouro, sobre o cálix de ouro, sobre a cruz do Cristo de ouro, esmeraldeando maravilhosamente com bizarrismos bizantinos de formas as requintadas cinzeluras refulgentes, de níveas claridades puras e brumosas de Via-Láctea, da velada e suntuosa Capela de reverências, tabernaculal, do Santíssimo Sacramento.

Era uma fantástica vegetação de reptis que tomara todo o templo, ondas e ondas de reptis que se acumulavam convulsamente, num surdo murmurinhar e sibilos de esmeraldas ondulantes. Uns, de tamanho desconforme, verdadeiras serpentes formidáveis que com as cabeças e as caudas agitadas galgavam as grandes colunas do coro, os suportes dos púlpitos, enlaçando-se-lhes no bojo, em convulsões delirantes, como se os quisessem pôr por terra. Outros, de conformações exóticas, esguios, fugidios, lânguidos, esgueirando-se como crimes, encaracolavam-se nos colos brancos das Santas à maneira de colares. Por toda a parte a invasão sinistra dos reptis verdes da inveja lesmando tudo. Por toda a parte esse pesadelo verde, brilhos, reflexos, refrações esverdeadas por toda a parte, como se aquela vastidão sagrada se abrisse toda numa floresta de lúgubres assombros.

Batido, esporeado por um terror supremo, agrilhoado por todos esses reptis verdes, com os olhos transparentes do verde deslumbrados de pânico, no meio de todo aquele mar verde que o afogava, perdida quase a noção de que era humano, o idiota foi se arrastando, se arrastando até ao centro da igreja, como um sapo no fundo de um subterrâneo, agora ironicamente constelado em cheio pelo largo clarão matinal que osculava os vitrais ao alto.

A sua figura vil, miseranda, parecia torcida, crispada toda em garras, se arrastando sempre, sempre, a monstruosa cabeça bamboleando — crânio de mentecapto girando dentro do templo como dentro de outro misterioso crânio. Tentou gritar. Mas os gritos, nesse horror de túmulo, morriam-lhe na garganta, sufocavam-no, como se grossas cordas o enforcassem. Apenas podia se arrastar assim, mudo, sem um só gemido! — massa inútil rojada por terra, dor humana mordendo-se, devorando-se, despedaçando-se...

E ele se arrastava, se arrastava, em direção às portas, para sair, para correr, fugindo aterrorizado daquela colossal avalanche de reptis verdes, que por toda a parte, como ele, se arrastava.

Queria fugir como um homem alucinado que foge absurdamente da sua sombra num louco desespero; na agonia tremenda de um cego de nascença que se sentisse de repente preso pelas chamas de um incêndio, sozinho a tatear, a tatear num aposento fechado, aflito, gemente, terrível, sinistramente doloroso, a tatear, a tatear, sozinho, rasgando as roupas, rasgando as carnes, sem nunca conseguir libertar-se das chamas que cada vez mais o fossem devorando verminalmente.

E o Idiota se arrastava, se arrastava, se arrastava... Até que, exausto, banhado em suor, batendo os dentes de frio e de febre, grunhindo de horror, numa indefinível sensação, aos arrancos, aos solavancos, chegou afinal à grande e chapeada porta central do templo, que logo, como por encanto, abriu-se às amplas cintilações do sol do meio-dia — alta e larga — de par em par...

E só então foi que ele, acordando entre soluços, justamente e coincidentemente num meio-dia de sol, se apercebeu, perplexo, que tinha estado a sonhar, preso às inconseqüências reveladoras do seu Sonho de Idiota, que mesmo assim acordado, continuaria eternamente e amargamente a sonhar...