Origem das espécies/Recapitulação e Conclusões
Recapitulação das objecções levantadas contra a teoria da selecção natural. — Recapitulação dos factos gerais e particulares que lhe são favoráveis. — Causas da crença geral da imutabilidade das espécies. — Até que ponto se pode levar a teoria da selecção natural. — Efeitos da sua adopção no estudo da história natural. — Últimas notas.
Sendo este volume inteiro apenas uma longa argumentação,
creio dever apresentar ao leitor uma recapitulação sumária dos
factos principais e suas ilações.
Não penso em negar que podem opor-se à teoria da descendência, modificada pela variação e pela selecção natural, numerosas e sérias objecções que procurei expor em toda a sua força. Em primeiro lugar, nada me parece mais difícil do que acreditar no aperfeiçoamento dos órgãos e dos mais complexos instintos, não por meios superiores, posto que análogos à razão humana, mas por acumulação de inúmeras e ligeiras variações, todas vantajosas ao seu possuidor individual. Contudo, esta dificuldade, ainda que parecendo insuperável à nossa imaginação, não poderia ser considerada como válida, se se admitirem as proposições seguintes: todas as partes do organismo e todos os instintos oferecem pelo menos diferenças individuais; a luta constante pela existência determina a conservação dos desvios de estrutura ou de instinto que podem ser vantajosos; e, enfim, gradações no estado de perfeição de cada órgão, todas boas por si mesmo, podem ter existido. Não creio que se possa contestar a verdade destas proposições.
E, sem dúvida, dificilimo conjecturar mesmo por que graus sucessivos têm passado muitas das conformações para se aperfeiçoarem, sobretudo nos grupos de seres organizados que, tendo sofrido enormes extinções, estão actualmente rompidos e apresentam grandes lacunas; mas notamos na natureza gradações tão estranhas, que devemos ser muito circunspectos antes de afirmar que um órgão, ou um instinto, ou mesmo a conformação inteira, não pode ter atingido o seu estado actual percorrendo um grande número de fases intermédias. Há, deve reconhecer-se, casos particularmente difíceis que parecem contrários à teoria da selecção natural; um dos mais curiosos é, sem contradita, a existência, no mesmo formigueiro, de duas ou três castas definidas de obreiras ou fêmeas estéreis. Procurei fazer compreender como se pode chegar a explicar este género de dificuldades.
Quanto à esterilidade quase geral que apresentam as espécies quando de um primeiro cruzamento, esterilidade que contrasta de uma maneira bem frisante com a fecundidade quase universal das variedades cruzadas umas com as outras, devo enviar o leitor para a recapitulação, dada no fim do nono capítulo, dos factos que me parecem provar de uma maneira concludente que esta esterilidade não é mais uma propriedade especial, que o não é igualmente a inaptidão que apresentam duas árvores distintas a enxertar-se uma na outra, mas que depende de diferenças limitadas ao sistema reprodutor das espécies que se podem entrecruzar. A grande diferença entre os resultados que dão os cruzamentos recíprocos de duas mesmas espécies, isto é, quando uma das espécies é empregada a princípio como pai e em seguida como mãe, prova-nos que esta conclusão é bem fundada. Somos levados à mesma conclusão pelo exame das plantas dimorfas e trimorfas, de que as formas unidas ilegitimamente dão apenas poucas sementes e por vezes nenhumas, e de que a posteridade é mais ou menos estéril; ora, estas plantas pertencem incontestàvelmente à mesma espécie, e não diferem umas das outras a não ser com relação aos órgãos reprodutores e suas funções.
Posto que um grande número de sábios tenham afirmado que a fecundidade das variedades cruzadas e dos seus descendentes mestiços é universal, esta asserção não pode ser considerada como absoluta, devido aos factos que citei com a autoridade de Gärtner e de Kölreuter.
A maior parte das variedades em que se tem experimentado foram produzidas no estado doméstico; e, como a domesticidade (e eu não a compreendo como simples cativeiro), tende muito certamente a eliminar esta esterilidade que, a julgar por analogia, teria afectado o entrecruzamento das espécies-pais, não devemos prender-nos a que a domesticação provoque igualmente a esterilidade dos seus descendentes modificados, quando se cruzam uns com os outros. Esta eliminação de esterilidade parece resultar da mesma causa que permite aos nossos animais domésticos reproduzir-se livremente em meios muito diferentes; o que parece resultar de que eles foram habituados gradualmente às frequentes alterações das condições de existência.
Uma dupla série de factos paralelos parece lançar muita luz sobre a esterilidade das espécies cruzadas pela primeira vez e sobre a da sua posteridade híbrida. De um lado, há excelentes razões para acreditar que ligeiras mudanças nas condições de existência dão a todos os seres organizados um acréscimo de vigor e fecundidade. Sabemos também que um cruzamento entre individuos distintos da mesma variedade, e entre indivíduos pertencendo a variedades diferentes, aumenta o número dos descendentes, assim como certamente aumentam o tamanho e força. Isto resulta principalmente do facto de as formas que se cruzam terem sido expostas a condições de existência um tanto diferentes; porque tenho podido assegurar-me, por uma série de longas experiências, que, se se submetem, durante muitas gerações, todos os indivíduos de uma mesma variedade às mesmas condições, o bem resultante do cruzamento é muitas vezes diminuído ou desaparece por completo. É um dos lados da questão. Por outra parte, sabemos que as espécies de há muito expostas a condições quase uniformes morrem, ou, se sobrevivem, tornam-se estéreis, posto que conservando uma saúde perfeita, quando submetidas a condições novas e muito diferentes, ao estado de cativas por exemplo. Este facto não se observa ou, se se observa, é sòmente em muito fraco grau nos nossos produtos domésticos, que desde muito longe foram submetidos a condições variáveis. Por conseguinte, quando verificamos que os híbridos produzidos pelo cruzamento de duas espécies distintas são pouco numerosos por causa da mortalidade desde a concepção ou em idade muito precoce, ou então por causa do estado mais ou menos estéril dos sobreviventes, parece muito provável que este resultado dependa do facto de, estando compostos de dois organismos diferentes, serem submetidos a grandes mudanças nas condições da existência. Quem puder explicar de uma maneira absoluta a causa de o elefante ou a raposa, por exemplo, se não reproduzirem jamais em cativeiro, mesmo no seu país natal, enquanto que o porco e o cão domésticos dão numerosos produtos nas mais diversas condições de existência, poderá ao mesmo tempo responder de um modo satisfatório à seguinte pergunta: porque são geralmente mais ou menos estéreis duas espécies distintas cruzadas, bem como os seus descendentes híbridos, enquanto que duas variedades domésticas cruzadas, e bem assim os seus descendentes mestiços, são perfeitamente fecundos?
Quanto à distribuição geográfica, as dificuldades que encontra a teoria da descendência com modificações são bastante sérias. Todos os indivíduos de uma mesma espécie e todas as espécies de um mesmo género, mesmo nos grupos superiores, descendem de pais comuns; por isso, por mais distantes e isoladas que estejam actualmente os pontos do globo em que se encontram, é necessário que, no decurso de gerações sucessivas, estas formas partindo de um só ponto tenham irradiado para todos os outros. É-nos muitas vezes impossível conjecturar mesmo porque meios estas migrações se têm podido realizar. Contudo, como temos ocasião de crer que algumas espécies conservaram a mesma forma especifica durante períodos muito longos, enormemente longos mesmo, se os contarmos por anos, não devemos ligar muita importância à grande difusão ocasional de uma espécie qualquer; porque, durante o decorrer destes longos períodos, devem encontrar ocasiões favoráveis para efectuar vastas migrações por meios diversos. Pode muitas vezes explicar-se uma extensão descontínua pela extinção da espécie nas regiões intermédias. É necessário, além disso, reconhecer-se que sabemos muito pouco sobre a importância real das diversas alterações climatéricas e geográficas que o globo sofreu durante os períodos recentes, alterações que têm certamente podido facilitar as migrações. Procurei, como exemplo, fazer compreender a acção poderosa que devia exercer o período glaciário sobre a distribuição de uma espécie e espécies ligadas em todo o mundo. Ignoramos ainda absolutamente quais pudessem ser os meios ocasionais de transporte. Quanto às espécies distintas de um mesmo género, habitando regiões afastadas e isoladas, devendo a marcha da sua modificação ter sido necessàriamente lenta, todos os modos de migração poderão ter sido possíveis durante um muito longo período, o que atenua até certo ponto a dificuldade de explicar a dispersão imensa das espécies de um mesmo género.
Implicando a teoria da selecção natural a existência anterior de um conjunto inumerável de formas intermediárias, ligando-se umas às outras, por cambiantes tão delicadas como são as nossas variedades actuais, todas as espécies de cada grupo, pode perguntar-se porque não vemos em redor de nós todas essas formas intermédias, e porque todos os seres organizados não estão confundidos num inextricável caos. A respeito das formas existentes, devemos recordar que não temos razão alguma, salvo em casos muito raros, para esperar encontrar formas intermediárias ligando-as directamente umas às outras, mas sòmente aquelas que ligam cada uma delas a alguma forma suplantada e extinta. Mesmo numa vasta superfície, que ficou contínua durante um longo período, e cujo clima e outras condições de existência mudam insensivelmente, passando de um ponto habitado por uma espécie a outro habitado por uma espécie estreitamente ligada, quase sempre nos é vedado encontrar variedades intermédias nas zonas intermédias. Há sempre o direito de acreditar, com efeito, que, num género, algumas espécies sòmente sofrem modificações, e outras se extinguem sem deixar posteridade variável. Quanto às espécies que se modificam, há poucas que o façam ao mesmo tempo na mesma região, e todas as modificações são lentas. Demonstrei também que as variedades intermédias, que têm provàvelmente ocupado a princípio zonas intermediárias, devem ter sido suplantadas por formas aliadas existindo de uma parte e de outra; porque estas últimas, sendo as mais numerosas, tendem, por esta razão mesmo, a modificar-se e a aperfeiçoar-se mais ràpidamente que as espécies intermediárias menos abundantes; de modo que estas devem ter sido, há muito, exterminadas e substituídas.
Se a hipótese do extermínio de um número infinito de fuzis ligando os habitantes actuais com os habitantes extintos do globo, e, em cada período sucessivo, ligando as espécies que viveram com as formas mais antigas, é fundada, porque não encontramos, em todas as formações geológicas, uma grande abundância destas formas intermediárias? Porque é que as nossas colecções de restos fósseis nos não fornecem a prova evidente da gradação e das mutações das formas viventes? Posto que as pesquisas geológicas hajam incontestàvelmente revelado a existência passada de um grande número de fuzis que têm já aproximado umas às outras muitas formas da vida, não apresentam, contudo, entre as espécies actuais e as espécies passadas, todas as gradações infinitas e insensíveis que reclama a minha teoria, e é esta, sem contradita, a objecção mais séria que pode opor-se-lhe. Porque se vêem ainda grupos inteiros de espécies aliadas que parecem (aparência, em verdade, muitas vezes enganosa), surgir sùbitamente nas camadas geológicas sucessivas? Posto que saibamos agora que os seres organizados têm habitado o globo desde uma época cuja antiguidade é incalculável, muito tempo antes do depósito das camadas mais antigas do sistema cambriano, porque não encontramos nos, debaixo deste último sistema, poderosas massas de sedimento encerrando os restos dos antecessores dos fósseis cambrianos? Porque a minha teoria implica que semelhantes camadas foram depositadas em alguma parte, desde essas épocas afastadas e tão completamente ignoradas da história do globo.
Só posso responder a estas questões e resolver estas dificuldades, supondo que os arquivos geológicos são bem mais incompletos do que o admitem geralmente os geólogos. O número dos especímenes que encerram todos os nossos museus não é absolutamente nada a par de inúmeras gerações de espécies que têm certamente existido. A forma-fonte de duas ou muitas espécies não seria mais directamente intermediária em todos os seus caracteres entre os descendentes modificados, do que o torcaz é directamente intermediário pelo seu papo e pela cauda entre os seus descendentes, o pombo de papo e o pombo-pavão. Ser-nos-ia impossível reconhecer uma espécie como a forma origem de uma outra espécie modificada, tão atentamente quanto as pudéssemos examinar, a não ser que possuíssemos a maior parte dos fuzis intermédios, e em razão da imperfeição dos documentos geológicos não devemos esperar encontrá-los em grande número. Se mesmo se descobrissem dois, três ou mesmo um grande número destas formas intermédias, considerar-se-iam simplesmente como espécies novas, por mais leves que pudessem ser as suas diferenças, sobretudo se fossem encontradas em diferentes camadas geológicas. Poderiam citar-se inúmeras formas duvidosas, que são provavelmente apenas variedades; mas quem nos assevera que se descobrirá no futuro um número assaz grande de formas fósseis intermediárias, para que os naturalistas cheguem a decidir se estas variedades duvidosas merecem ou não a qualificação de variedades? Não se tem explorado geologicamente mais que uma bem pequena parte do globo. Demais, os seres organizados pertencentes a certas classes podem por si conservar-se no estado de fósseis, pelo menos em quantidades um pouco consideráveis. Muitas espécies uma vez formadas sem nunca sofrer modificações subsequentes, extinguem-se sem deixar descendentes; os períodos durante os quais outras espécies sofreram modificações, ainda que enormes, avaliados em anos, têm provavelmente sido curtos, comparados com aqueles durante os quais conservaram a mesma forma. São as espécies dominantes e as mais espalhadas que variam mais e mais vezes, e as variedades são quase sempre locais; ora, são estas duas circunstâncias que tornam muito pouco provável a descoberta de fuzis intermédios numa forma qualquer. As variedades locais não se disseminam noutras regiões afastadas antes de estarem consideravelmente modificadas e aperfeiçoadas; quando emigram e as encontramos numa formação geológica, parecem ter sido criadas sùbitamente aí, e consideram-se simplesmente como espécies novas. A maior parte das formações deviam acumular-se de uma maneira intermitente, e a sua duração foi provavelmente mais curta que a duração média das formas específicas. As formações sucessivas são, no maior número dos casos, separadas umas das outras por lacunas correspondendo a longos períodos; porque formações fossilíferas bastante espessas para resistir às degradações futuras só têm podido, em regra geral, acumular-se onde abundantes sedimentos foram depostos sobre o fundo de uma área marinha em via de abaixamento. Durante os períodos alternantes de levantamento e de nível estacionário, o testemunho geológico é geralmente nulo. No decurso destes últimos períodos, houve provàvelmente mais variabilidade nas formas da vida, e, durante os períodos de abaixamento, mais extinções.
Quanto à ausência de ricas camadas fossilíferas por baixo da formação cambriana, posso apenas repetir a hipótese que desenvolvi já no capítulo nono, a saber que, posto que os nossos continentes e os nossos oceanos tenham ocupado, desde um enorme período, as suas posições relativamente actuais, não nos é lícito afirmar que tenha sido sempre assim; por conseguinte, pode supor-se que haja por baixo dos grandes oceanos disposições muito mais antigas que aquelas que conhecemos ao presente. Quanto à objecção levantada por sir William Thompson, uma das mais graves de todas, que, desde a consolidação do nosso planeta, o lapso de tempo decorrido foi insuficiente para permitir a soma das alterações orgânicas que se admite, eu respondo que, primeiramente, não podemos precisar de forma alguma, medida em anos, a rapidez das modificações da espécie, e, secundàriamente, que muitos sábios estão dispostos a admitir que não temos bastante conhecimento da constituição do universo e do interior do globo para raciocinar com precisão sobre a sua idade.
Ninguém contesta a imperfeição dos documentos geológicos; mas que são incompletos para o que a minha teoria exige, pouca gente convirá de boa vontade. Se considerarmos períodos suficientemente longos, a geologia prova claramente que todas as espécies têm mudado, e que têm mudado conforme a minha teoria, isto é, ao mesmo tempo lenta e gradualmente. Este facto ressalta com evidência de que os restos fósseis que contêm as formações consecutivas são invariàvelmente muito mais estreitamente ligados uns aos outros do que o são os de formações separadas por maiores intervalos.
Eis, em resumo, as respostas e explicações que podem dar-se às objecções e às diversas dificuldades que tentam levantar-se contra a minha teoria, dificuldades de que eu mesmo por muito tempo senti o peso para duvidar da sua importância. Mas é necessário notar, com cuidado, que as objecções mais sérias se referem às questões a respeito das quais a nossa ignorância é tal que nem de leve lhe supomos sequer a extensão. Não conhecemos todas as gradações possíveis entre os órgãos mais simples e os mais perfeitos; não podemos pretender conhecer todos os meios diversos de distribuição que têm podido agir durante longos períodos do passado, nem a extensão da imperfeição dos documentos geológicos. Por mais sérias que sejam estas diversas objecções, não são, contudo, quanto a mim, de molde a rebater a teoria da descendência com modificações subsequentes.
Examinemos agora outro lado da questão. Observamos, no
estado doméstico, que as alterações das condições de existência
causam, ou pelo menos excitam, uma variabilidade considerável,
mas muitas vezes de uma maneira tão obscura que somos dispostos
a considerar as variações como espontâneas. A variabilidade
obedece a leis complexas, tais como a correlação, o uso e não
uso, e a acção definida das condições exteriores. É difícil saber
até que ponto as nossas produções domésticas foram modificadas;
mas podemos certamente admitir que o foram muito, e
que as modificações ficam hereditárias durante longos períodos,
Desde que as condições exteriores ficaram as mesmas, podemos
crer que uma modificação, hereditária desde numerosas gerações,
pode continuar a sé-lo ainda durante um número de gerações
quase ilimitado. Demais, temos a prova de que, quando a
variabilidade tem uma vez começado a manifestar-se, continua
a agir durante muito tempo no estado doméstico, porque vemos
ainda aparecer ocasionalmente variedades novas nas nossas produções
domésticas mais antigas.
O homem não tem influência alguma imediata sobre a produção da variedade; expõe somente, sem desígnio, os seres melhor organizados a novas condições de existência; a natureza actua, pois, sobre a organização e fá-la variar. Mas o homem pode escolher as variações que a natureza lhe fornece, e acumulá-las como entenda; adapta também os animais e as plantas ao seu uso e aos seus desejos. Pode operar esta selecção metòdicamente, ou sòmente de uma maneira inconsciente, conservando os indivíduos que lhe são mais úteis, ou que lhe agradam mais, sem qualquer intenção preconcebida de modificar a raça. É certo que pode largamente influenciar sobre os caracteres de uma raça separando, em cada geração sucessiva, diferenças individuais assaz ligeiras para escapar a olhos inexperientes. Este processo inconsciente de selecção tem sido o agente principal da formação das raças domésticas mais distintas e mais úteis. As dúvidas inextricáveis que temos sobre a questão de saber se certas raças produzidas pelo homem são variedades ou espécies primitivamente distintas, provam que possuem em larga escala os caracteres das espécies naturais.
Não há razão alguma evidente para que os princípios cuja acção tem sido tão eficaz no estado doméstico, não tenham actuado no estado de natureza. A persistência das raças e dos indivíduos favorecidos durante a luta incessante pela existência constitui uma forma poderosa e perpétua de selecção. A luta pela existência é uma consequência inevitável da multiplicação em razão geométrica de todos os seres organizados. A rapidez desta progressão é provada pelo cálculo e pela multiplicação rápida de muitas plantas e animais durante uma série de estações particularmente favoráveis, e da sua introdução em novo país. Nascem mais indivíduos do que os que podem sobreviver. Um átomo numa balança pode decidir dos indivíduos que devem viver e dos que devem morrer, ou determinar que espécies ou que variedades aumentam ou diminuem em número, ou se extinguem totalmente. Como os indivíduos de uma espécie entram a todos os respeitos na mais estrita concorrência uns com os outros, é entre eles que a luta pela existência é mais viva; é quase tão activa entre as variedades da mesma espécie, como entre as espécies de um mesmo género. A luta deve, além disso, ser quase sempre muito rigorosa entre seres muito afastados na escala natural. A menor superioridade que certos indivíduos, em certa idade ou durante uma época qualquer, podem ter sobre aqueles com os quais se encontram em concorrência, ou a adaptação mais perfeita às condições ambientes, fazem, no decurso do tempo, pender a balança em seu favor.
Nos animais de sexos separados, observa-se, na maior parte dos casos, uma luta entre os machos para a posse das fêmeas, em seguida à qual os mais vigorosos, e os que têm tido mais sucesso em relação às condições de existência, são também aqueles que, em geral, deixam mais descendentes. O sucesso deve depender, contudo, muitas vezes de que os machos possuem meios especiais de ataque ou de defesa, ou grandes encantos; porque toda a vantagem, mesma ligeira, basta para assegurar a vitória.
O estudo da geologia mostra claramente que todos os países sofreram grandes alterações físicas; podemos, pois, supor que os seres organizados deviam, no estado livre, variar da mesma maneira que no estado doméstico. Ora, se houve na natureza variabilidade, por menor que fosse, seria incrível que a selecção natural não desempenhasse também o seu papel. Tem-se sustentado muitas vezes, mas é impossível provar esta asserção, que, no estado livre, a soma das variações é rigorosamente limitada. Ainda que actuando somente sobre os caracteres exteriores, e muitas vezes caprichosamente, o homem pode, contudo, obter em pouco tempo grandes resultados nas suas produções domésticas, acumulando sempre diferenças individuais; ora, cada um admite que as espécies apresentam diferenças desta natureza. Todos os naturalistas reconhecem que além destas diferenças, existem variedades que se consideram como muito distintas para ser o objecto de uma menção especial nas obras sistemáticas. Jamais se pode estabelecer distinção bem nítida entre as diferenças individuais e as variedades pouco acentuadas, ou entre as variedades pronunciadas, as subespécies e as espécies. Nos continentes isolados, bem como nas diversas partes do mesmo continente separadas por quaisquer barreiras, nas ilhas afastadas, quantas formas se encontram que são classificadas por sábios naturalistas, quer como variedades, quer como raças geográficas ou subespécies, e enfim, por outros como espécies estreitamente ligadas, mas distintas?
Ora pois, se as plantas e os animais variam, tão lentamente e tão pouco, porque poremos nós em dúvida que as variações ou as diferenças individuais, que são de qualquer forma proveitosas, não possam ser conservadas e acumuladas pela selecção natural, ou persistência do mais apto? Se o homem pode, com paciência, separar as variações que lhe são úteis, porque razão, nas condições complexas e alteradoras da existência, não hão-de surgir variações vantajosas para as produções vivas da natureza, susceptíveis de ser conservadas por selecção? Que limite poderia fixar-se a esta causa que actua continuamente durante séculos, e vigiando rigorosamente e sem descanso a constituição, a conformação e os hábitos de cada ser vivo, para favorecer o que é bom e rejeitar o que é mau? Creio que o poder da selecção é ilimitado quando se trata de adaptar lentamente e admirávelmente cada forma às relações mais complexas da existência. Sem ir mais longe, a teoria da selecção natural parece-me provável no mais elevado grau. Recapitulei o melhor que pude as dificuldades e objecções que lhe têm sido postas; passemos agora aos factos especiais e aos argumentos que militam em seu favor.
Na hipótese de as espécies serem apenas variedades bem
acentuadas e permanentes, e cada uma delas ter existido com a
forma de variedade, é fácil compreender porque se não pode
tirar qualquer linha de demarcação entre a espécie que se atribui,
ordinàriamente, a actos especiais de criação, e a variedade
que se reconhece ter sido produzida em virtude de leis secundárias.
É fácil compreender ainda porque, numa região onde
existe uma grande cópia de espécies de um género e estas são
actualmente prósperas, as mesmas espécies apresentem numerosas
variedades; com efeito, é aí onde a formação das espécies
foi abundante, que devemos, em geral, esperar vê-las ainda em
actividade; ora, tal deve ser o caso se as variedades são nascentes.
Demais, as espécies dos grandes géneros, que fornecem
o maior número destas espécies nascentes ou destas variedades,
conservam num certo grau o carácter de variedades, porque
diferem menos umas das outras do que diferem as espécies dos
géneros mais pequenos. As espécies estreitamente ligadas dos
grandes géneros parecem também ter uma distribuição restrita,
e, pelas suas afinidades, reúnem-se em pequenos grupos em
torno de outras espécies; debaixo destas duas relações, assemelham-se
às variedades. Estas relações, muito estranhas na hipótese
da criação independente de cada espécie, tornam-se compreensíveis
se se admitir que todas as espécies existiram no
estado de variedades.
Como cada espécie tende, pela sequência da progressão geométrica da sua reprodução, a aumentar em número de uma maneira desmedida, e os descendentes modificados de cada espécie tendem a multiplicar-se tanto mais quanto mais diversos hábitos e conformações apresentarem, de modo a poderem apoderar-se do maior número de lugares diferentes na economia da natureza, a selecção natural deve tender constantemente a conservar os descendentes mais divergentes de uma espécie qualquer. Resulta que, no decurso continuado das modificações, as ligeiras diferenças que caracterizam as variedades da mesma espécie tendem a crescer até chegar às diferenças mais importantes que caracterizam as espécies do mesmo género. As variedades novas e aperfeiçoadas devem substituir e exterminar, inevitàvelmente, as variedades mais antigas, intermédias e menos perfeitas, e as espécies tendem a tornar-se assim mais distintas e melhor definidas. As espécies dominantes, que fazem parte dos grupos principais de cada classe, tendem a dar origem a formas novas e dominantes, e cada grupo principal tende sempre também a crescer cada vez mais, e ao mesmo tempo, a apresentar caracteres sempre mais divergentes. Mas, como nem todos os grupos podem assim procurar aumentar em número, porque a Terra não poderia contê-los, os mais dominantes avançam sobre os que o são menos. Esta tendência que têm os grupos já consideráveis para aumentar sempre e divergir pelos seus caracteres, junta à consequência quase inevitável de extinções frequentes, explica o arranjo de todas as formas vivas em grupos subordinados a outros grupos, e todos compreendidos num pequeno número de grandes classes, arranjo que prevaleceu em todos os tempos. Este grande facto do agrupamento de todos os seres organizados, pelo que se chamou o sistema natural, é absolutamente inexplicável na hipótese das criações.
Como a selecção natural actua somente acumulando variações ligeiras, sucessivas e favoráveis, não pode produzir modificações consideráveis ou súbitas; só pode agir a passos lentos e curtos. Esta teoria torna fácil de compreender o axioma: Natura non facit saltum, que cada nova conquista da ciência mostra logo todos os dias ser verdadeiro. Vemos ainda como, em toda a natureza, o mesmo fim geral é atingido por uma variedade quase infinita de meios; porque toda a particularidade, uma vez adquirida, é por muito tempo hereditária, e conformações diversificadas por muitos modos diferentes têm que adaptar-se ao mesmo fim geral. Vemos, numa palavra, porque a natureza é pródiga em variedades, sendo muito avara em inovações. Ora, porque razão existiria esta lei se cada espécie fosse independentemente criada? É o que ninguém saberia explicar.
Um grande número de outros factos parecem explicar por esta teoria. Não é estranho que uma ave tendo a forma do picanço se nutra de insectos terrestres; que um pato, habitando as terras elevadas e não nadando, ou pelo menos raramente, tenha os pés palmados; que uma ave semelhante ao melro mergulhe e se nutra de insectos subaquáticos; que uma procelária tenha hábitos e conformação convenientes para a vida de um pinguim, e bem assim um conjunto de outros casos? Mas na hipótese de cada espécie se esforçar constantemente em crescer em número, enquanto que a selecção natural está sempre pronta a actuar para adaptar os seus descendentes, lentamente variáveis, a todo o lugar que, na natureza, está desocupado ou imperfeitamente preenchido, este factos cessam de ser extraordinários e eram mesmo de prever.
Podemos compreender, até certo ponto, que haja tanta beleza em toda a natureza; porque pode, em grande parte, atribuir-se esta beleza à intervenção da selecção. Esta beleza não concorda sempre com as nossas ideias sobre o belo; basta, para nos convencermos, considerar certas serpentes venenosas, certos peixes e certos morcegos horrendos, ignóbeis caricaturas da face humana. A selecção sexual deu brilhantes cores, formas elegantes e outros ornamentos aos machos e por vezes também às fêmeas de muitas aves, de borboletas e de diversos animais. Tornou muitas vezes nas aves a voz do macho harmoniosa para a fêmea, e agradável mesmo para nós. As flores e os frutos, tornados vistosos, o ferindo pelas suas cores vivas num fundo verde de folhagem, atraem, umas os insectos, que se lhes avizinham, contribuindo para a sua fecundação, e outras as aves, que, devorando os frutos, concorrem para disseminar as sementes. Como se faz que certas cores, certos tons e certas formas agradem ao homem tanto como aos animais inferiores, isto é, como se faz que os seres vivos tenham adquirido o sentido da beleza na sua forma mais simples? É o que não saberíamos dizer como não saberíamos explicar o que primitivamente pôde dar encanto a certos olores e a certos sabores.
Como a selecção natural actua em meio da concorrência, não se adapta nem aperfeiçoa os animais de cada país senão relativamente aos outros habitantes; não devemos, pois, de forma alguma admirar-nos de que as espécies de uma região qualquer, espécies que se supõe, pela teoria ordinária, terem sido especialmente criadas e adaptadas para esta localidade, sejam vencidas e substituídas por produtos vindos de outros países. Não devemos admirar-nos, igualmente, de que todas as combinações da natureza não sejam, no nosso ponto de vista, absolutamente perfeitas, o olho humano, por exemplo, e mesmo que algumas sejam contrárias às nossas ideias de apropriação. Não devemos admirar-nos de que o aguilhão da abelha cause muitas vezes a morte do indivíduo que o emprega; de que os machos, neste insecto, sejam produzidos também em grande número para desempenhar um só acto, e sejam em seguida trucidados pelas suas irmãs estéreis; do enorme desperdício do pólen dos nossos pinheiros; do ódio instintivo que a abelha-mestra tem pelas filhas fecundas; de que o icnêumon se estabeleça no corpo vivo de uma lagarta e se nutra a expensas suas, e de tantos outros casos análogos. O que há realmente de admirável na teoria da selecção natural, é que se não tenham observado ainda mais casos de deficiência da perfeição absoluta.
As leis complexas e pouco conhecidas que regulam a produção das variedades são, tanto quanto nós podemos avaliar, as mesmas que regem a produção das espécies distintas. Nos dois casos, as condições físicas parecem ter determinado, num grau de que não podemos fixar a importância, efeitos definidos e directos. Assim, quando variedades chegam a uma nova estância, revestem ocasionalmente alguns dos caracteres próprios às espécies que a ocupam. O uso e falta de uso parecem, tanto nas variedades como nas espécies, ter produzido efeitos importantes. É impossível não se ser levado a esta conclusão quando se considera, por exemplo, o pato de asas curtas (micróptero), cujas asas, incapazes de servir para o voo, estão quase no mesmo estado que as do pato doméstico; ou quando se vê o tucutuco escavador (cténomys), que é ocasionalmente cego, e certas toupeiras que o são ordinàriamente e cujos olhos são cobertos de uma película; enfim, quando se pensa nos animais cegos que habitam as cavernas escuras da América e da Europa. A variação correlativa, isto é, a lei em virtude da qual a modificação de uma parte do corpo arrasta a de diversas outras partes, parece também ter desempenhado um papel importante nas variedades e nas espécies; numas e noutras também os caracteres desde há muito perdidos estão sujeitos a reaparecer. Como explicar, pela teoria das criações, a aparição ocasional das riscas sobre as espáduas e nas pernas das diversas espécies do género cavalo e seus híbridos? Quão simplesmente, ao contrário, este facto se explica, se se admitir que todas estas espécies derivam de um antecessor zebrado, da mesma forma que as diferentes raças do pombo doméstico derivam do torcaz, com plumagem azul e listrada!
Se se aceita a hipótese ordinária da criação independente de cada espécie, porque razão é que os caracteres específicos, isto é, os que fazem diferir umas das outras as espécies do mesmo género, seriam mais variáveis que os caracteres genéricos que são comuns a todas as espécies? Porque razão é que, por exemplo, a cor de uma flor estaria mais sujeita a variar numa espécie de um género, do qual as outras espécies, que se supõem ter sido criadas de modo independente, têm flores de diferentes cores, do que se todas as espécies do género tivessem flores da mesma cor? Este facto explica-se fàcilmente, se admitirmos que as espécies são apenas variedades bem acentuadas, cujos caracteres são tornados permanentes num alto grau. Com efeito, tendo já variado por certos caracteres desde a época em que divergiam da origem comum, o que produziu a sua distinção específica, esses mesmos caracteres estarão ainda mais sujeitos a variar do que os caracteres genéricos, que, desde mui longa data, continuaram a transmitir-se sem modificações. É impossível explicar, pela teoria da criação, porque um ponto de organização, desenvolvido de uma maneira inusitada numa espécie qualquer de um género e, por consequência, de grande importância para esta espécie, como podemos naturalmente pensá-lo, é eminentemente susceptível de variações. Pela minha teoria, pelo contrário, este ponto é a sede, desde a época em que as diversas espécies se separam da fonte comum, de uma quantidade desabitual de variações e modificações, e deve, por conseguinte, continuar a ser geralmente variável. Mas uma parte pode desenvolver-se de uma maneira excepcional, como a asa de um morcego, sem ser mais variável que outra conformação, se é comum a um grande número de formas subordinadas, isto é, se se transmite hereditàriamente durante um longo período; porque, em tal caso, torna-se constante devido a uma acção prolongada da selecção natural.
Quanto aos instintos, por mais maravilhosos que muitos sejam, a teoria da selecção natural das modificações sucessivas, leves, mas vantajosas, explica-os tão fàcilmente como explica a conformação corporal. Podemos assim compreender a razão da natureza proceder por gradações para prover dos seus diferentes instintos os animais diversos de uma mesma classe. Ensaiei demonstrar quanta luz o princípio do aperfeiçoamento gradual lança sobre os fenómenos tão interessantes que nos apresentam as faculdades arquitecturais da abelha. Posto que, sem dúvida, o hábito desempenha um papel na modificação dos instintos, não é todavia indispensável, como o provam os insectos neutros, que não deixam descendentes para herdar efeitos de hábitos longamente continuados. Na hipótese de todas as espécies de um mesmo género derivarem de um mesmo pai, de que herdaram um grande número de pontos comuns, compreendemos que as espécies ligadas, colocadas em condições de existência muito diferentes, tenham, contudo, quase os mesmos instintos; compreendemos, por exemplo, porque os melros da América meridional temperada e tropical forram o ninho com lama, como o fazem as nossas espécies inglesas. Não mais nos devemos admirar, segundo a teoria da lenta aquisição dos instintos pela selecção natural, que alguns sejam imperfeitos e sujeitos a erro, e que outros sejam uma causa de sofrimentos para outros animais.
Se as espécies não são variedades bem determinadas e permanentes, podemos imediatamente compreender porque a sua posteridade híbrida obedece às mesmas leis complexas que os descendentes de cruzamentos entre variedades reconhecidas relativamente à semelhança com seus pais, à sua absorção mútua em seguida a cruzamentos sucessivos, e sobre outros pontos. Esta semelhança seria bizarra se as espécies fossem o produto de uma criação independente e as variedades fossem produzidas pela acção de causas secundárias.
Se se admite que os documentos geológicos são muito imperfeitos, todos os factos que dai dimanam vêm em apoio da teoria da descendência com modificações. As espécies novas têm aparecido em cena lentamente e com intervalos sucessivos; a soma das alterações operadas em períodos iguais é muito diferente nos diversos grupos. A extinção das espécies e de grupos completos de espécies, que tem gozado um papel tão considerável na história do mundo orgânico, é a consequência inevitável da selecção natural; porque as formas antigas devem ser suplantadas pelas formas novas e aperfeiçoadas. Quando a cadeia regular das gerações é interrompida, nem as espécies nem os grupos de espécies perdidas reaparecem jamais. A difusão gradual das formas dominantes e as lentas modificações dos seus descendentes fazem que depois de longos intervalos de tempo as formas vivas pareçam ter simultâneamente chegado a toda a Terra. O facto de os restos fósseis de cada formação apresentarem, em certa escala, caracteres intermediários, comparativamente aos fósseis mergulhados nas formações inferiores e superiores, explica-se simplesmente pela situação intermédia que ocupam na cadeia genealógica. Este grande facto, de todos os seres extintos poderem ser agrupados nas mesmas classes que os seres vivos, é a consequência natural de que uns e outros dimanam de pais comuns. Como as espécies têm geralmente divergido em caracteres no longo curso da sua descendência e das suas modificações, podemos compreender a razão de as formas mais antigas, isto é, os antecessores de cada grupo, ocuparem muitas vezes uma posição intermédia, em certo grau, entre os grupos actuais. Consideram-se as formas novas como sendo, em conjunto, geralmente mais elevadas na escala da organização do que as formas antigas; devem-no ser, além disso, porque são as formas mais recentes e mais aperfeiçoadas que, na luta pela existência, têm devido sobrepujar as formas mais antigas e menos perfeitas; os seus órgãos devem ter-se também especializado muito para desempenhar as suas diversas funções. Este facto é por completo compatível com o da persistência de seres numerosos, conservando ainda uma conformação elementar e pouco perfeita, adaptada às condições de existência simples; é também compatível com o facto de a organização de algumas formas haver retrogradado, porque estas formas se têm sucessivamente adaptado, em cada fase da sua descendência, às condições modificadas de ordem inferior. Enfim, a lei notável da longa persistência de formas ligadas no mesmo continente — marsupiais na Austrália, desdentados na América meridional, e outros casos análogos — compreende-se fàcilmente, porque, numa mesma região, as formas existentes devem ser estreitamente ligadas às formas extintas por um laço genealógico.
No que é concernente à distribuição geográfica, se admitirmos que no decurso imenso de remotos tempos, houve grandes emigrações nas diversas partes do globo, devidas a numerosas alterações climatéricas e geológicas, bem como a meios numerosos, ocasionais e pela maior parte desconhecidos de dispersão, a pluralidade e dos factos importantes da distribuição geográfica torna-se inteligível pela teoria da descendência com modificações. Podemos compreender o paralelismo tão frisante que existe entre a distribuição dos seres organizados na espécie, e a sua sucessão geológica no tempo; porque, nos dois casos, os seres ligaram-se uns aos outros pelo laço da geração ordinária, e os meios de modificação foram os mesmos. Compreendemos toda a significação deste facto notável, o que impressionou todos os viajantes, isto é, que, no mesmo continente, nas condições mais diversas, apesar do calor ou do frio, nas montanhas ou nas planícies, nos desertos ou nos pântanos, a maior parte dos habitantes de cada grande classe têm entre si relações evidentes de parentesco; descendem, com efeito, dos mesmos primeiros colonos, seus antepassados comuns. Em virtude deste mesmo princípio de emigração anterior, combinado na maior parte dos casos com o da modificação, e graças à influência do período glaciário, pode explicar-se a causa de se encontrarem nas montanhas mais afastadas umas das outras e em zonas temperadas de um e de outro hemisfério, algumas plantas idênticas e muitas outras estreitamente aliadas; compreendemos da mesma forma a aliança estreita de alguns habitantes dos mares temperados dos dois hemisférios, que são, contudo, separados por todo o oceano tropical. Posto que duas regiões apresentem condições físicas tão semelhantes quanto uma mesma espécie possa desejá-las, não devemos admirar-nos de os seus habitantes serem totalmente diferentes, pois foram separados completamente uns dos outros desde longo tempo; a relação do organismo é, com efeito, mais importante de todas as relações, e como as duas regiões devem ter recebido colonos vindos de fora, ou provenientes de uma e de outra, em diferentes épocas e em proporções diferentes, a marcha das modificações nas duas regiões deve inevitávelmente ser diferente.
Na hipótese de emigrações seguidas de modificações subsequentes, torna-se fácil compreender a causa de as ilhas oceânicas serem apenas povoadas por um número restrito de espécies, e porque a maior partes destas espécies são especiais ou endémicas; porque não se encontram nestas ilhas espécies pertencendo aos grupos de animais que não podem atravessar largos braços de mar, tais como as rãs e os mamíferos terrestres; porque, por outra parte, se encontram nas ilhas muito afastadas de todo o continente espécies particulares e novas de morcegos, animais que podem atravessar o Oceano. Factos tais como a existência de todas as espécies de morcegos nas ilhas oceânicas, com exclusão de todos os outros animais terrestres, são absolutamente inexplicáveis pela teoria das criações independentes.
A existência de espécies aliadas ou representativas em duas regiões quaisquer implica, segundo a teoria da descendência com modificações, que as mesmas formas parentes habitaram outrora as duas regiões; encontramos, com efeito, quase invariàvelmente, que, quando duas regiões separadas são o habitat de muitas espécies estreitamente ligadas, algumas espécies idênticas são ainda comuns às duas. Por toda a parte onde se encontram muitas espécies estreitamente unidas, mas distintas, encontram-se também formas duvidosas e variedades pertencendo aos mesmos grupos. Em regra geral, os habitantes de cada região têm laços estreitos de parentesco com os que ocupam a região que parece ter sido a fonte mais aproximada daquela de onde os colonos podiam ter partido. Encontramos a prova nas relações frisantes que se notam entre quase todos os animais e quase todas as plantas do arquipélago de Galápagos, de João Fernandes e outras ilhas americanas e as formas que povoam o continente americano vizinho. As mesmas relações existem entre os habitantes do arquipélago de Cabo Verde e das ilhas vizinhas e os do continente africano; ora, é necessário reconhecer que, segundo a teoria da criação, estas relações ficam inexplicáveis.
Vimos que a teoria da selecção natural com modificações, arrastando as extinções e a divergência dos caracteres, explica a razão de todos os seres organizados passados e presentes poderem dispor-se, num pequeno número de grandes classes, em grupos subordinados a outros grupos, nos quais os grupos extintos se intercalam muitas vezes entre os grupos recentes. Estes mesmos princípios mostram também a causa de as afinidades mútuas das formas serem, em cada classe, tão complexas e tão indirectas; porque certos caracteres são mais úteis que outros para a classificação; porque os caracteres de adaptação não têm quase importância alguma para tal fim, posto que indispensáveis ao indivíduo; porque os caracteres derivados de partes rudimentares, sem utilidade para o organismo, podem muitas vezes ter grande valor no ponto de vista da classificação; porque, enfim, os caracteres embriológicos são os que, a este respeito, têm frequentemente mais valor. As verdadeiras afinidades dos seres organizados, ao contrário das suas semelhanças de adaptação, são o resultado hereditário da comunhão de descendência. O sistema natural é um arranjo genealógico, onde os graus de diferença são designados pelos termos variedades, espécies, géneros, famílias, etc., de que nos é necessário descobrir as linhas com o auxílio dos caracteres permanentes, quaisquer que possam ser, e por mais insignificante que seja a sua importância vital.
A disposição semelhante dos ossos na mão humana, na asa do morcego, na barbatana do golfinho e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras no pescoço da girafa e no do elefante; todos estes factos e um número infinito de outros semelhantes explicam-se fàcilmente pela teoria da descendência com modificações sucessivas, lentas e ligeiras. A semelhança de tipo entre a asa e a perna do morcego, ainda que destinadas a usos tão diversos; entre as maxilas e as patas do escaravelho; entre as pétalas, os estames e pistilos de uma flor, explica-se igualmente em grande escala pela teoria da modificação gradual das partes e dos órgãos que, num antepassado afastado de cada uma dessas classes, eram primitivamente semelhantes. Vemos claramente, segundo o princípio de que as variações sucessivas não sobrevêm sempre numa idade precoce e apenas são hereditárias na idade correspondente, porque os embriões de mamíferos, de aves, de répteis e de peixes, são tão semelhantes entre si e tão diferentes no estado adulto. Podemos cessar de nos maravilhar de que os embriões de um mamífero de respiração aérea, ou de uma ave, tenham fendas branquiais e artérias em rede, como no peixe, que deve, por meio de guelras bem desenvolvidas, respirar o ar dissolvido na água.
A falta de uso, ajudada algumas vezes pela selecção natural, deve muitas vezes contribuir para reduzir órgãos tornados inúteis em seguida a alterações nas condições de existência ou nos hábitos; depois disto, é fácil compreender a significação dos órgãos rudimentares. Mas a falta de uso e a selecção actuam ordinàriamente sobre o indivíduo apenas quando é adulto e chamado a tomar uma parte directa e completa na luta pela existência, e têm, pelo contrário, sòmente pequena acção sobre um órgão nos primeiros tempos da vida; por conseguinte, um órgão inútil aparecerá sòmente pouco reduzido e a custo rudimentar durante a primeira idade. A vaca tem, por exemplo, herdado de um antepassado primitivo tendo dentes bem desenvolvidos, dentes que não perfuram jamais a gengiva da maxila superior. Ora, podemos admitir que os dentes desapareceram no animal adulto devido à falta de uso, tendo a selecção natural adaptado admirávelmente a lingua a abobada do palatino e os lábios a pastar sem a ajuda dos dentes, enquanto que, na vitela, os dentes não têm sido afectados, e, em virtude do princípio de hereditariedade em idade correspondente, se têm transmitido desde uma remota época até nossos dias. No ponto de vista da criação independente de cada ser organizado e de cada órgão especial, como explicar a existência de todos estes órgãos tendo o cunho mais evidente da mais completa inutilidade, tais como os dentes na vaca no estado embrionário, ou as asas com dobras que cobrem, num grande número de coleópteros, os élitros soldados? Pode dizer-se que a natureza se esforça por nos revelar, por meio dos órgãos rudimentares, bem como pelas conformações embrionárias e homólogas, o seu plano de modificações, que nos recusamos obstinadamente a compreender.
Acabo de recapitular os factos e as considerações que profundamente
me convenceram de que, durante uma longa série
de gerações, as espécies se modificaram.
Estas modificações efectuaram-se principalmente pela selecção natural de numerosas variações ligeiras e vantajosas; em seguida, os efeitos hereditários do uso e não uso das partes prestaram um poderoso concurso a esta selecção; enfim, a acção directa das condições do meio e as variações que, em nossa ignorância, nos parecem surgir espontâneamente, têm gozado também um papel, menos importante, é verdade, pela sua influência sobre as conformações de adaptação no passado e no presente. Parece que não tenho, nas precedentes edições desta obra, concedido um papel assaz importante à frequência e ao valor destas últimas formas de variação, não lhes atribuindo modificações permanentes de conformação, independentemente da acção da selecção natural. Mas, desde que as minhas conclusões têm sido, recentemente, fortemente desnaturadas, e desde que se tem afirmado que atribuo as modificações das espécies exclusivamente à selecção natural, permitir-se-me-a, sem dúvida, fazer notar que, na primeira edição desta obra, assim como nas edições subsequentes, sempre reproduzi numa posição bem evidente, isto é, no fim da introdução, a frase seguinte: «Estou convencido que a selecção natural tem sido o agente principal das modificações, mas jamais o foi exclusivamente só». Isto foi em vão, tão grande é o poder de uma constante e falsa demonstração; todavia, a história da ciência prova felizmente que não dura muito tempo.
Não é possível supor que uma teoria falsa pudesse explicar, de maneira tão satisfatória, como o faz a teoria da selecção natural, as diversas grandes séries de factos de que nos temos ocupado. Tem-se recentemente objectado que está nisto um falso método de raciocínio; mas é o que se emprega para apreciar os acontecimentos ordinários da vida, e os maiores sábios não têm desdenhado em o seguir. É assim que se chega à teoria ondulatória da luz; e a crença da rotação da Terra no seu eixo só recentemente encontrou o apoio de provas directas. Não é uma objecção valiosa dizer que, ao presente, a ciência não lança luz alguma sobre o problema bem mais elevado da essência ou da origem da vida. Quem pode explicar o que é a essência da atracção ou da gravidade! Ninguém hoje, contudo, se recusa a admitir todas as consequências que ressaltam de um elemento desconhecido, a atracção, posto que Leibnitz tivesse outrora censurado Newton de ter introduzido na ciência «propriedades ocultas e milagres».
Não vejo razão alguma para que as opiniões desenvolvidas neste volume firam o sentimento religioso de quem quer que seja. Basta, além disso, para mostrar quanto estas espécies de impressões são passageiras, lembrar que a maior descoberta que o homem tem feito, a lei da atracção universal, foi também atacada por Leibnitz, «como subversiva da religião natural, e, nestas condições, da religião revelada». Um eclesiástico célebre escrevia-me um dia, «que tinha acabado por compreender que acreditar na criação de algumas formas capazes de se desenvolver por si mesmas noutras formas necessárias, é ter uma concepção bem mais elevada de Deus, do que acreditar que houvesse necessidade de novos actos de criação para preencher as lacunas causadas pela acção das leis estabelecidas».
Pode perguntar-se a razão pela qual, até muito recentemente, os naturalistas e os geólogos mais eminentes têm sempre repelido a ideia da mutabilidade das espécies. Não se pode afirmar que os seres organizados no estado de natureza não estão sujeitos a qualquer variação; não se pode provar que a soma das variações realizadas no decorrer do tempo seja uma quantidade limitada; não se tem podido e não se pode estabelecer distinção bem nítida entre as espécies e as variedades bem isoladas. Não se pode afirmar que as espécies entrecruzadas sejam invariàvelmente estéreis, e as variedades invariàvelmente fecundas; nem que a esterilidade seja uma qualidade especial e um sinal da criação. A crença na imutabilidade das espécies era quase inevitável, tanto que se não atribuía à história do globo senão uma duração muito curta, e agora, que temos adquirido algumas noções do lapso de tempo decorrido, admitimos prontamente, e sem provas, que os documentos geológicos são bastante completos para nos fornecer a demonstração evidente da mutação das espécies, se essa mutação se realizou realmente.
Mas a causa principal da nossa repugnância natural em admitir que uma espécie deu origem a outra espécie distinta é o estarmos sempre pouco dispostos a admitir uma grande alteração sem vermos os graus intermédios. A dificuldade é a mesma que a que tantos geológicos experimentaram quando Lyell demonstrou que as longas linhas de declive interiores, assim como a excavação dos grandes vales, são o resultado de influências que vemos ainda agir em torno de nós. O espírito não pode conceber toda a significação deste termo: um milhão de anos, nem saberia, demais, adicionar nem perceber os efeitos completos de muitas variações ligeiras, acumuladas durante um número quase infinito de gerações.
Posto que esteja profundamente convencido da verdade das opiniões que em breves palavras tenho exposto no presente volume, não espero convencer certos naturalistas, muito experimentados sem dúvida, mas que, desde longo tempo, estão habituados a ver um conjunto de factos num ponto de vista directamente oposto ao meu. É muito fácil ocultar a nossa ignorância em expressões tais como plano de criação, unidade de tipo, etc.; e pensar que nos explicamos quando apenas repetimos um mesmo facto. Aquele que tiver qualquer disposição natural a ligar mais importância a algumas dificuldades não resolvidas do que à explicação de um certo número de factos, rejeitará certamente a minha teoría. Alguns naturalistas dotados de uma inteligência aberta e já disposta a pôr em dúvida a imutabilidade das espécies podem ser influenciados pelo conteúdo deste volume, mas tenho mais confiança no futuro, nos novos naturalistas, que poderão estudar imparcialmente os dois lados da questão. Todo o que for levado a admitir a imutabilidade das espécies prestará verdadeiros serviços exprimindo conscienciosamente a sua convicção, porque sòmente assim se poderá desembaraçar a questão de todos os preconceitos que a cercam.
Alguns naturalistas eminentes exprimiram, recentemente, a opinião de que há, em certos géneros, uma multidão de espécies, consideradas como tais, que não são, contudo, verdadeiras espécies; enquanto que há outras que são reais, isto é, que foram criadas de uma maneira independente. É esta, me parece, uma singular conclusão. Depois de terem reconhecido um conjunto de formas, que consideraram, muito recentemente ainda, como criações especiais, que são ainda consideradas como tais pela grande maioria dos naturalistas, e que, consequentemente, têm todos os caracteres exteriores de verdadeiras espécies, admitem que estas formas são o produto de uma série de variações e recusam estender esta maneira de ver a outras formas um pouco diferentes. Não pretendem, contudo, poder definir, ou mesmo conjecturar, quais são as formas que foram criadas e quais as que são produtos de leis secundárias. Admitem a variabilidade como vera causa num caso, e rejeitam-na arbitràriamente noutro, sem estabelecer qualquer distinção fixa entre os dois. O dia virá em que se poderão assinalar estes factos como um curioso exemplo da cegueira resultante de uma opinião preconcebida. Estes sábios não parecem admirar-se mais de um acto miraculoso da criação do que de uma origem ordinária. Mas crêem eles realmente que em inumeráveis épocas da história da Terra certos átomos elementares receberam ordem de se agruparem em tecidos vivos? Admitem eles que em cada suposto acto de criação se tenha produzido um ou muitos indivíduos? As espécies infinitamente numerosas de plantas e animais terão sido criadas no estado de sementes, de óvulos ou de perfeito desenvolvimento? E, no caso dos mamíferos, terão essas espécies, depois da criação, trazido os indícios mentirosos da nutrição intra-uterina? A estas questões, os partidários da criação de algumas formas vivas ou de uma só forma não saberiam, sem dúvida, que responder. Diversos sábios têm sustentado que é tão fácil acreditar na criação de centos de milhões de seres como na criação de um só; mas em virtude do axioma filosófico de a menor acção, formulado por Maupertuis, o espírito é levado mais voluntàriamente a admitir o menor número, e não podemos certamente crer que uma quantidade inúmera de formas da mesma classe tenham sido criadas com os sinais evidentes, mas enganosos, da sua descendência de um mesmo antepassado.
Como recordação de um estado de coisas anterior, tenho empregado, nos parágrafos precedentes, muitas expressões que implicam nos naturalistas a crença na criação de cada espécie. Tenho sido muito censurado de me haver exprimido assim; mas era isto, sem dúvida alguma, a opinião geral quando da aparição da primeira edição da obra actual. Discuti outrora com muitos naturalistas sobre a evolução, sem encontrar jamais o menor testemunho simpático. É provável, portanto, que alguns acreditassem na evolução, mas ficassem silenciosos, ou se exprimissem de uma maneira de tal modo ambígua, que não fosse fácil compreender a sua opinião. Hoje, tudo mudou e quase todos os naturalistas admitem o grande princípio da evolução, Há, contudo, quem acredite ainda que as espécies têm sùbitamente produzido, por meios ainda inexplicáveis, formas novas totalmente diferentes; mas, como procurei aqui demonstrar, há provas poderosas que se opõem a toda a admissão destas modificações bruscas e consideráveis. No ponto de vista científico, e mesmo conduzindo a estudos ulteriores, há apenas pouca diferença entre a crença de novas formas terem sido produzidas sùbitamente de uma maneira inexplicável pelas antigas formas muito diferentes, e a velha crença na criação das espécies por meio do barro.
Até onde, poderão perguntar-me, levais vós a vossa doutrina da modificação das espécies? Eis uma pergunta à qual é difícil responder, porque, quanto mais distintas são as formas que consideramos, mais os argumentos em favor da comunhão de descendência diminuem e perdem da sua força. Alguns argumentos, todavia, têm um peso considerável e alta importância. Todos os membros de classes inteiras estão ligados uns aos outros por uma cadeia de afinidades, e podem todos, segundo um mesmo princípio, ser classificados em grupos subordinados a outros grupos. Os restos fósseis tendem por vezes a preencher as imensas lacunas entre as ordens existentes.
Os órgãos no estado rudimentar testemunham claramente que existiram em estado desenvolvido num antepassado primitivo; facto que, em alguns casos, implica modificações consideráveis nos descendentes. Em classes inteiras, conformações muito variadas são construídas sobre o mesmo plano, e os embriões muito novos assemelham-se de perto. Não posso, pois, duvidar que a teoria da descendência com modificações não deva compreender todos os membros de uma mesma grande classe ou de um mesmo reino. Creio que todos os animais derivam de quatro ou cinco formas primitivas no máximo, e todas as plantas de um número igual ou mesmo menor.
A analogia conduzir-me-ia a dar um passo a mais, e seria levado a crer que todas as plantas e todos os animais derivam de um protótipo único; mas a analogia pode ser um guia enganador. Todavia, todas as formas da vida têm muitos caracteres comuns: a composição química, a estrutura celular, as leis do crescimento e a faculdade que têm de ser afectadas por certas influências nocivas. Esta susceptibilidade nota-se até nos factos mais insignificantes; assim, um mesmo veneno afecta muitas vezes da mesma maneira as plantas e os animais; o veneno segregado pela mosca da galha determina na roseira brava ou no carvalho excrescências monstruosas. A reprodução sexual parece ser essencialmente semelhante em todos os seres organizados, excepto talvez em alguns dos mais ínfimos. Em todos, tanto quanto o sabemos actualmente, a vesícula germinativa é a mesma; de maneira que todos os seres organizados têm uma origem comum. Mas, se se consideram as duas divisões principais do mundo orgânico, isto é, o reino animal e o reino vegetal, notam-se certas formas inferiores, bastante intermediárias pelos seus caracteres, para que os naturalistas estejam em desacordo quanto ao reino a que devem ser ligados; e, assim como o fez notar o professor Asa Gray, «os esporos e outros corpos reprodutores das algas inferiores podem jactar-se de ter a princípio uma existência animal caracterizada, à qual sucede uma existência incontestàvelmente vegetal». Por conseguinte, pelo princípio da selecção natural com divergência de caracteres, não parece impossível que os animais e as plantas tenham podido desenvolver-se partindo dessas formas inferiores e intermediárias; ora, se admitirmos este ponto, devemos admitir também que todos os seres organizados que vivem ou que viveram na Terra podem derivar de uma só forma primordial. Mas, sendo esta dedução sobretudo fundada na analogia, é indiferente que seja aceite ou não. É sem dúvida possível, assim como o supõe M. G. H. Lewes, que nas primeiras origens da vida muitas formas diferentes tenham podido surgir; mas, se é assim, lícito nos é concluir que muito poucas somente deixaram descendentes modificados; porque, assim como o fiz notar recentemente a respeito dos membros de cada grande classe, quais os vertebrados, os articulados, etc., encontramos nas suas conformações embriológicas, homólogas e rudimentares a prova evidente de que os membros de cada reino derivam todos de um antepassado comum.
Quando as opiniões que deixo expostas nesta obra, opiniões que M. Wallace tem sustentado também no jornal da Sociedade Lineana, e quando opiniões análogas sobre a origem das espécies forem geralmente admitidas pelos naturalistas, podemos prever que se produzirá na história natural uma revolução importante. Os sistematistas poderão continuar os seus trabalhos como hoje; mas não serão mais constantemente assediados por dúvidas quanto ao valor específico de tal ou tal forma, circunstância que, eu falo por experiência, não constituirá um ligeiro alívio. As disputas eternas sobre a especificidade de cinquenta silvas britânicas cessarão. Os sistematistas não terão mais que decidir (o que, além disso, não será sempre fácil), se uma forma qualquer é assaz constante ou assaz distinta de outras formas para que se possa defini-la bem, e, neste caso, se essas diferenças são bastante importantes para merecer o nome de espécie. Este último ponto merecerá bem mais alta consideração da que hoje merece, porque diferenças, por ligeiras que sejam, entre duas formas quaisquer que não ligam algum grau intermédio, são actualmente tidas pelos naturalistas como suficientes para justificar a sua distinção específica.
Seremos, mais tarde, obrigados a reconhecer que a única distinção a estabelecer entre as espécies e as variedades bem caracterizadas consiste somente em que se sabe ou se supõe que estas últimas estão actualmente ligadas entre si por gradações intermédias, enquanto que as espécies deviam tê-lo sido outrora. Por conseguinte, sem deixar de tomar em consideração a existência presente de graus intermédios entre duas formas quaisquer, seremos levados a pesar com mais cuidado a extensão real das diferenças que as separam, e atribuir-lhes um maior valor. É muito possível que formas, hoje reconhecidas como simples variedades, sejam mais tarde julgadas dignas de um nome especifico; nesse caso, a linguagem científica e a linguagem ordinária encontram-se de acordo. Em breve, teremos de tratar a espécie da mesma maneira como os naturalistas tratam actualmente os géneros, isto é, como simples combinações artificais, inventadas para maior comodidade. Esta perspectiva não é talvez consoladora, mas desembaraçar-nos-emos, pelo menos, de pesquisas inúteis às quais dá lugar a explicação absoluta, ainda não encontrada e incontrável, do termo espécie.
Os outros ramos mais gerais da história natural adquirirão ainda mais interesse. Os termos: afinidade, parentesco, comunhão, tipo, paternidade, morfologia, caracteres de adaptação, órgãos rudimentares e atrofiados, etc., que empregam os naturalistas, cessarão de ser metáforas e tomarão um sentido absoluto. Quando não olharmos para um ser organizado como um selvagem olha para um navio, isto é, como qualquer coisa que a nossa inteligência não alcança; quando virmos em toda a produção um organismo de que a história é muito antiga; quando considerarmos cada conformação e cada instinto complicados como o resumo de um conjunto de combinações todas vantajosas ao seu possuidor, da mesma maneira que toda a grande invenção mecânica é a resultante do trabalho, da experiência, da razão, e mesmo erros de um grande número de obreiros; quando espreitarmos o ser organizado neste ponto de vista, quanto, e falo por experiência própria, não ganhará em interesse o estudo da história natural!
Um vasto campo de estudos e apenas trilhado será aberto sobre as causas e leis da variabilidade, sobre a correlação, sobre os efeitos do uso e não uso, sobre a acção directa das condições exteriores, e assim seguidamente. O estudo dos produtos domésticos tomará imensa importância. A formação de uma nova variedade pelo homem será um objecto de estudos mais importante e mais interessante que a adição de uma espécie a mais à lista infinita de todas as já registadas. As nossas classificações voltarão, quanto possível for, a ser genealógicas; indicarão então o que se pode chamar o verdadeiro plano da criação. As regras da classificação hão-de simplificar-se, sem dúvida, quando nos propusermos um fim definido. Não possuímos nem genealogias nem brasões, e temos a descobrir e a traçar as numerosas linhas divergentes de descendência nas nossas genealogias naturais, com o auxílio dos caracteres de toda a natureza que se conservaram e transmitiram por uma longa hereditariedade. Os órgãos rudimentares testemunharão, de uma maneira infalível, quanto à natureza de conformações desde há muito perdidas. As espécies ou grupos de espécies ditas aberrantes, que se podem chamar fósseis vivos, ajudar-nos-ão a reconstruir a imagem das antigas formas da vida. A embriologia revelar-nos-á muitas vezes a conformação, obscurecida em certo grau, dos protótipos de cada uma das grandes classes.
Quando estivermos seguros de que todos os indivíduos da mesma espécie e todas as espécies estreitamente aliadas de um mesmo género são, nos limites de uma época relativamente recente, derivados de um antepassado comum, e têm emigrado de um berço único, quando conhecermos melhor também os diversos meios de emigração, poderemos então, com o auxílio dos ensinamentos que a geologia nos fornece actualmente e que continuará a fornecer-nos sobre as alterações sobrevindas. outrora nos climas e no nível das terras, chegar a traçar admiràvelmente as emigrações anteriores do mundo inteiro. Já, agora, podemos obter algumas noções sobre a antiga geografia, comparando as diferenças dos habitantes do mar que ocupam os lados opostos de um continente e a natureza das diversas populações desse continente, relativamente aos meios aparentes de imigração.
A nobre ciência da geologia deixa a desejar devido à extrema pobreza dos seus arquivos. A crosta terrestre, com os seus resíduos escondidos, não deve ser considerada como um museu bem fornecido, mas como uma magra colecção feita ao acaso e com raros intervalos. Reconhecer-se-á que a acumulação de cada grande formação fossilífera devia ter dependido de um concurso excepcional de condições favoráveis, e que as lacunas que correspondem aos intervalos decorridos entre os depósitos dos andares sucessivos tiveram uma duração enorme. Mas nós poderemos avaliar a sua duração com alguma certeza comparando as formas orgânicas que precederam estas lacunas e as que se lhes seguiram. E necessário ser muito prudente quando se trata de estabelecer uma correlação de estrita contemporaneidade segundo a única sucessão geral das formas da vida, entre duas formações que não encerram um grande número de espécies idénticas. Como a produção e a extinção das espécies são a consequência das causas sempre existentes e actuando lentamente, e não por actos miraculosos de criação; como a mais importante das causas das alterações orgànicas é quase independente de toda a modificação, mesmo súbita, nas condições físicas, porque esta causa não é mais que as relações mútuas de organismo para organismo, o aperfeiçoamento de um arrastando o aperfeiçoamento ou o exterminio de outros, resulta que a soma das modificações orgânicas apreciáveis nos fósseis de formações consecutivas pode provàvelmente servir de medida relativa, mas não absoluta, do lapso de tempo decorrido entre o depósito de cada uma delas. Todavia, como um certo número de espécies reunidas em massa poderiam perpetuar-se sem mudança durante longos períodos, enquanto que, durante o mesmo tempo, muitas destas espécies vindo a emigrar para novas regiões têm podido modificar-se pela concorrência com outras formas estranhas, não devemos ter confiança absoluta nas alterações orgânicas como medida do tempo decorrido.
Entrevejo num futuro afastado caminhos abertos a pesquisas muito mais importantes ainda. A psicologia será sòlidamente estabelecida sobre a base tão bem definida já por M. Herbert Spencer, isto é, sobre a aquisição necessàriamente gradual de todas as faculdades e de todas as aptidões mentais, o que lançará uma viva luz sobre a origem do homem e sua história.
Certos autores eminentcs parecem plenamente satisfeitos com a hipótese de cada espécie ter sido criada de uma maneira independente. A meu ver, parece-me que o que nós sabemos das leis impostas à matéria pelo Criador concorda melhor com a hipótese de que a produção e a extinção dos habitantes passados e presentes do globo são o resultado de causas secundárias, tais como as que determinam o nascimento e a morte do indivíduo. Quando considero todos os seres, não como criações especiais, mas como os descendentes em linha recta de alguns seres que viveram muito tempo antes que as primeiras camadas do sistema cambriano tivessem sido depositadas, parecem-me enobrecidos. Julgando assim pelo passado, podemos concluir com exactidão que nenhuma das espécies actualmente vivas transmitirá a sua semelhança intacta a uma época futura muito afastada, e que só um pequeno número delas terá descendentes nas idades por vir, porque o modo de agrupamento de todos os seres organizados nos prova que, em cada género, o maior número de espécies, e que todas as espécies em muitos géneros, não deixaram descendente algum, mas estão totalmente extintas. Podemos mesmo lançar ao futuro um volver de olhos profético e predizer que são as espécies mais comuns e as mais espalhadas, pertencendo aos grupos mais consideráveis de cada classe, que prevalecerão ulteriormente e que procriarão espécies novas preponderantes. Como todas as formas actuais da vida descendem em linha recta das que viviam muito tempo antes da época cambriana, podemos estar certos de que a sucessão regular das gerações jamais foi interrompida e que nenhum cataclismo subverteu o mundo por completo. Podemos, pois, contar, com alguma confiança, sobre um futuro de incalculável comprimento. Ora, como a selecção natural actua apenas para o bem de cada indivíduo, todas as qualidades corporais e intelectuais devem tender a progredir para a perfeição.
É interessante contemplar uma ribeira luxuriante, atapetada com numerosas plantas pertencentes a numerosas espécies, abrigando aves que cantam nos ramos, insectos variados que volitam aqui e ali, vermes que rastejam na terra húmida, se se pensar que estas formas tão admiràvelmente construídas, tão diferentemente conformadas, e dependentes umas das outras de uma maneira tão complexa, têm sido todas produzidas por leis que actuam em volta de nós. Estas leis, tomadas no seu sentido mais lato, são: a lei do crescimento e reprodução; a lei da hereditariedade que implica quase a lei de reprodução; a lei de variabilidade, resultante da acção directa e indirecta das condições de existência, do uso e não uso; a lei da multiplicação das espécies em razão bastante elevada para trazer a luta pela existência, que tem como consequência a selecção natural, que determina a divergência de caracteres, a extinção de formas menos aperfeiçoadas. O resultado directo desta guerra da natureza que se traduz pela fome e pela morte, é, pois, o facto mais admirável que podemos conceber, a saber: a produção de animais superiores. Não há uma verdadeira grandeza nesta forma de considerar a vida, com os seus poderes diversos atribuídos primitivamente pelo Criador a um pequeno número de formas, ou mesmo a uma só? Ora, enquanto que o nosso planeta, obedecendo à lei fixa da gravitação, continua a girar na sua órbita, uma quantidade infinita de belas e admiráveis formas, saídas de um começo tão simples, não têm cessado de se desenvolver e desenvolvem-se ainda!