Os Brilhantes do Brasileiro/XII
A surpresa tolheu a reflexão.
Ângela, pela primeira vez, deu ares de família. Contavam-se arrojos de D. Maria dAntas, em anos verdes, quando o pai lhe impunha observância das leis do decoro, em desacertos amorosos. Saiu-se a filha de Simão de Noronha com um dos atrevimentos não comuns enquanto a sociedade assusta, e o coração mulheril não desteme os efeitos do escândalo.
Ouvida a ordem, ao anoitecer, entrou no seu quarto, onde se deteve até às dez. o silêncio da casa era completo, quando ela abriu a janela mais rente da rua, saiu e encaminhou-se a casa de Joana.
A irmã de Francisco, que tanto o instigara a sair para o Porto, naquele dia, estava, a essa hora, chorando saudosa dele. Quando ouviu bater à porta, alvoroçou-se cuidando que o irmão desandara por não poder vencer-se. Perguntou, conheceu a voz trêmula da fidalga, expediu um grito, e chamou o marido.
Ângela, apenas entrou, disse entre risonha e espavorida:
— Fugi!
— Fugiu, Santo Deus! — exclamou Joana. — vossa excelência fugiu, senhora D. Ângela?! Não me diga isso, por quem é!...
— Fugi, deveras, pois não vê, minha amiga? Olhe... ninguém veio comigo... Se eu não fugisse, amanhã havia de entrar no convento forçosamente, que assim mo disse minha tia...
— E agora, minha senhora? — atalhou afligidíssima a irmã de Francisco.
— Agora o quê?
— Que tenciona a menina fazer?
— Fico nesta casa — respondeu serenamente D. Ângela, apertando nas suas a mão de Joana.
— Mui pobre casa; mas ela aqui está, e nós para servirmos a vossa excelência — disse José Maria respeitosamente.
— Mas que infelicidade, minha senhora, que infelicidade! — exclamava a trêmula irmã do acadêmico, enquanto Ângela relançava em volta de si os olhos indagadores.
— Não te aflijas assim, Joana! — disse tranqüilo o merceeiro. — Maior infelicidade seria que a fidalga não tivesse pessoas que a respeitam como nós.
— Seu irmão? — perguntou Ângela com veemência, como se a salteasse o pensamento dele ter saído para longe.
— Está já no Porto, minha senhora — respondeu José Maria, visto que a mulher não respondia.
— Foi para o Porto?! — murmurou a filha de D. Maria dAntas empalidecendo e esbugalhando os seus olhos negros.
— Foi, minha senhora; pedi-lhe eu muito que fosse — tartamudeava Joana — cuidando que, saindo ele daqui, se acabavam as inquietações de vossa excelência e de sua tia.
Ângela pendeu a face para o seio, e quedou-se largo espaço confusa, sem atender às sensatas observações de José Maria.
— Que ingratidão! — murmurou ela; e, levantado-se de saldo, disse: - Bem... não vim aqui fazer nada; irei para o convento, irei para onde quiserem. Meus amigos, abram-me a porta, que eu vou outra vez para casa; mas digam ao senhor Costa que eu vim procurá-lo numa hora de muito sofrimento, que o não encontrei, e que saí desenganada...
— Ó minha senhora, vossa excelência é injusta com o meu pobre irmão... — exclamou Joana, com as mãos postas, e inclinada quase em joelhos.
Neste em meio, soaram na porta redobrados golpes. Estremeceram todos.
José Maria foi à janela, e as duas senhoras seguiram-no.
— Está cá a senhora D. Ângela? — perguntou uma voz de mulher esbofada.
— É Vitorina... — disse a fidalga. — Estou, Vitorina, estou aqui... Que é?
— Ó minha senhora — disse a criada ansiadíssima. — Deram fé que vossa excelência fugiu. Sua tia levantou-se a chamar os criados. Não tardam aí... Olhe que a levam à força, e sua tia disse ao João Alho que se pilhasse às mãos o Sr. Francisco, o fizesse em postas.
Volte depressa, que, se eles cá chegam a vir, há desgraça de maior.
— Eu vou — disse atribulada Ângela — eu vou; que não vão eles fazer-lhes mal, meus amigos. Adeus, adeus, que não nos tornamos a ver... — E, abraçando Joana, balbuciou coberta de lágrimas: — Diga a seu irmão que lhe perdôo, que fez bem em fugir, senão talvez o matassem...
E desceu pressurosamente as escadas.
Logo que saíram à rua, ouviram a estropeada de criados, que eram muitos, acaudilhados pelo capelão, sujeito de má rês.
— Vamos por outro lado — disse Vitorina receando o encontro.
— Não — obstou Ângela. — Se eles me não encontram, são capazes de arrombar a porta desta pobre gente. Vamos direitas a eles. Se não queres vir comigo, vai por outra banda.
— Não, minha menina, hei de acompanhá-la, aconteça o que acontecer... — disse Vitorina.
A poucos passos encontraram a chusma. Ângela parou. O capelão aproximou-se a reconhecê-la, e disse severamente:
— Donde vem vossa excelência?
— Vou para casa — respondeu imperturbada a fidalga.
— Mas donde vem? — insistiu o padre.
— Que lhe importa?
— Importa, sim, senhora — replicou ele, apertando entre os dedos o marmeleiro argolado que vergava sob a pressão daquelas mãos ungidas de sacerdote de Jesus; e prosseguiu: — Eu queria ver a cara ao bandalho; queria mandar as orelhas dele de presente ao senhor general Simão de Noronha.
Ângela ladeou a turba, e, traspassada de súbito medo, seguiu caminho de casa. Os criados, imitando o padre, seguiram-na de perto.
Entrou a senhora pela porta principal. D. Beatriz, rodeada de criadas e vizinhas, estava na primeira sala. Ângela perdeu o ânimo, quando avistou do patim a multidão que estava dentro. Voltou-se então muito desalentada para Vitorina, e disse:
— Quem me dera morrer neste instante!...
O capelão adiantou-se, mandando recolher os criados. Passou avante de Ângela, e disse a D. Beatriz:
— A sobrinha de vossa excelência está ali. Que ordena?
— Abram-lhe uma porta de dentro; que não passe diante dos meus olhos, e que fique esta noite aqui por caridade. Começou como Maria dAntas; provavelmente acabará como ela. Tal mãe, tal filha.
E, vociferando assim, sacudia umas calmandulas de azeviche que tinha penduradas no pulso.
A gente, que a rodeava, repetiu com tom de piedade:
— Tal mãe, tal filha!...
E Ângela escutara aquilo, amparando-se nos braços de Vitorina.
E esta mulher sentia-se transida de horror, porque só ela e Simão de Noronha sabiam que morrer havia sido o de D. Maria dAntas. Ela tinha sido quem conduzira a Viana a criancinha de dois anos; e nunca o terrível segredo lhe fora arrancado pelas suspeitosas indagações de Ângela.
Recolhida ao seu quarto, a pávida menina rompeu em soluços abafados no seio da criada.