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Os Brilhantes do Brasileiro/XI

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Como foi que a vigilância dos dois anjos-custódios de Ângela deixaram passar a primeira carta?

Denunciaremos à moral pública certa fragilidade do estudante.

O escrever-lhe não constava do programa; nem isso era mister para homem que se abastava com o ideal encontro no silêncio das noites estreladas. E, de feito, ele não escrevia cartas à imitação de umas que o vulgo mais seleto escreve, e suja e profana nas mãos encodeadas dum aguadeiro.

Francisco, no calado da noite, voltava contemplativo e vagaroso da costa marítima, ou descia dos pinhais cerrados de Agra. Aquelas noites estivas da gentilíssima Niana, que se reclina à beira-mar, sob um pavilhão de verdura, e se remira no espelho do seu Lima, são noites para poetas, e poetas se fazem ali súbito inflamados por tantas maravilhas da natureza, raro cumuladas num só paraíso. Debaixo de céu tão inspirativo, e terra tão espontânea de murmúrios, de músicas, de perfumes, de silêncios que se entendem e ouvem no coração, ali, onde não se faz mister a forma para adorar a idéia, é que o poeta de Ângela adorava idéia e forma também, apesar dos seus incorpóreos devaneamentos.

Na volta da montanha ou das ribas do mar, continuava os sonhos, à lâmpada do seu quarto, e escrevia-os, justamente num caderno com frontispício que dizia SONHOS.

O merceeiro viu, uma vez, a costaneira com o estranho título; abriu-a, leu duas linhas, fechou-a como os filólogos modernos em consciência deviam fechar os códices coptas, e disse à esposa:

— Teu irmão está ali, está doido. Escreve de dia os sonhos que tem de noite. Pobre moço!

Joana foi ver também. Leu e entendeu muito pela rama.

Aconteceu perguntar D. Ângela à sua mestra de bordar o que fazia o irmão, quando não lia.

— Escreve num grande livro em branco uma coisa chamada SONHOS — respondeu Joana.

A fidalga pediu, rogou e suplicou à costureira que lhos deixasse ver.

Joana hesitou muitos dias em denunciar a sua curiosidade a Francisco; todavia, importunada por Ângela, referiu ao irmão a sua imprudência.

Fraqueza congenial do homem! Teve o rapaz uns assomos de júbilo com os rogos de Ângela! Releu os seus SONHOS, deu o manuscrito à irmã, e disse-lhe:

— Pede-lhe que rasgue esses papéis depois de os ler.

Ângela pairava em regiões sobpostas à do seu espiritual adorador. Adivinhou mais do que percebeu. Decorou até o que não entendia.

Vem de molde o encher-se um vácuo importante desta história. A educação literária da filha de D. Maria d’Antas era igual à do capelão que lha transmitira. Escrevia com a ortografia do padre, quase nunca racional. Lia os livros de sua tia, que se prezava de perceber a Recreação filosófica do padre Teodoro de Almeida, e relia todos os anos o Feliz independente do mesmo congregado, o Belizário de Marmontel, e outros livros, cujas passagens notáveis andavam de memória na família.

Que montava isto? O amor de Deus infundiu a máxima ciência nos apóstolos ignorantes. O amor do homem arroteia e enfrutece, a súbitas, o mais maninho entendimento de mulher. Fenômenos do amor. O divino, florejando e aromatizando mártires e santos, ala os amados à glória. O humano com seus relâmpagos que abrasam, e perfumes que embriagam e asfixiam, despenha-se nos recôncavos do inferno, que neste mundo se chama o desesperar.

Ângela sentiu destecer-se o escuro de sua ignorância ao compasso da leitura noturna que fazia dos SONHOS. Aquele livro não lhe ensinava história, nem gramática, nem geografia, e outras coisas que, não sabidas, constituem a ignorância humana. O que ela aprendia era o Verbo, não o verbo que se conjuga; mas a palavra, o som que vibra, a corda virgem, a translucidação do sentir inexpressável, o definir da idéia confusa, a linguagem um tanto mística desta religião do amor que precisa revelação dos iniciados. Enfim, o Verbo.

Ora, muito era para ver-se a afoiteza com que a menina começou desde logo a escrever em um livrinho em oitavo, brochado por suas mão, uns pensamentos curtos e singelos, com o título de ESPERANÇAS! Mal emplumada ainda para librar-se a remontados lirismos, Ângela apenas avoejava de arbusto em arbusto, colhendo todas as suas imagens das flores, como a abelha a dulcidão dos seus favos.

Quando já tinha escrito algumas laudas, pediu, com adorável simplicidade, a Joana que entregasse o livrinho ao irmão, e acrescentou:

— Quando ele rasgar esse, eu rasgarei o que me ele mandou. E diga-lhe que se ele SONHA, eu ESPERO.

Joana satisfez o pedido com repugnância, e mormente quando viu Francisco por tanta maneira banhado de consolação que lhe batiam as artérias das fontes, colando o livrinho aos beiços.

Agora é que vai começar o período epistolográfico destes amores.

Joana, receosa de ser solicitada para medianeira em tão arriscada correspondência, evitava o ensejo de estar a sós com Ângela, e raramente, sem necessidade extrema, ia a casa de D. Beatriz.

Ângela, doida deste desafeto, granjeou imprudentemente os serviços duma criada, a quem entregou carta fechada para Joana. O conteúdo eram puerilidades, senão antes umas espertezas inocentes. Enviava ela duas

folhinhas no formato das suas Esperanças, e pedia que fossem reunidas às outras. O dizer deste suplemento era já triste e queixoso: chamava-lhes ela aos pensamentos; Esperanças que fenecem. Se Francisco não estivesse presente, a irmã esconderia os papelinhos e iria pedir misericordiosamente à fidalga que se esquecesse de seu irmão, e empregasse amor onde lhe fosse permitido esperar felicidades.

Francisco mandou esperar a criada, e escreveu a primeira carta. Depois, a Segunda, a terceira, até à duodécima, que era o caderno, cujo paradeiro foi às mãos convulsas de D. Beatriz.

Ate-se agora o fio da história, no lance de D. Beatriz mandar que a sobrinha se preparasse para entrar no convento.