Os Brilhantes do Brasileiro/X

Wikisource, a biblioteca livre


D. Beatriz injuriara cruelmente Francisco José da Costa; mas não conseguira envenenar com a dúvida a coração de Ângela.

A corajosa menina, livre da velha, que adormecera quabrantada de insultos nervosos, fechou-se a ler as cartas do moço, e a escrever-lhe a noticia das tribulações daquele dia. Atraiçoada pela medianeira da correspondência, suplicou a Vitorina que fizesse entregar aquela carta, prometendo-lhe ser a última. Condoeu-se a criada, movida também pela esperança de ver terminado o funesto namoro, prenúncio de maiores desgraças. Foi ela propriamente entregar a carta, e pedir a Francisco da Costa que saísse de Viana, se não queria que a menina perdesse o amor de sua tia, e, pior ainda, a proteção do pai. Ainda assim, os dizeres da carta desdiziam dos rogos da criada. Ângela pedia-lhe amor e animo, paciência e esperança, jurando morrer antes de sucumbir a um casamento violentado.

O estudante esperou alguns minutos que as lágrimas o desafogasse, e, escrevendo, pedia perdão a Ângela da sua covardia. "Sou covarde — escrevia ele — porque fujo; covarde porque me não atrevo a ver o rosto da infelicidade que te ameaça. Vou sair de Viana. Quando souber que o meu nome passou do desprezo ao esquecimento de tua tia, voltarei. Se te encontrar tranqüila, não perturbarei o teu sossego. Para eu te adorar, como até aqui, em todas as situações estarás bem, minha amiga. Ainda ligada a outro homem, eu saberei separar o anjo da mulher. O que eu não quero, nem posso, é tirar-te o nome, o prestígio, o amparo e a honra que só é visível enquanto a consideração pública a proclama ou finge reconhecer..."

— Ele não me ama! — disse, entre soluços, D. Ângela a Vitorina. — Não me ama, e eu hei de ser muito desgraçada por amor dele!...

A criada louvava-se a si do conselho, e agradecia a Deus a honrada determinação do estudante, dando como terminado o lance em que o belo e rico futuro da sua menina corria perigo. Ângela, todavia, asseverava que tudo estava perdido para ela, e que só lhe restava reduzir-se à extrema pobreza e desvalimento do pai, a ver se assim o homem pobre e plebeu a queria para esposa.

Este plano, se viesse a realizar-se, era original, a meu ver; mas não sei que fados esquerdos se atravessam aos projetos épicos em matéria de casamento, se a poesia depende de uma casinha colmada, à ourela de um regato, com seis pés de couve na horta, e por cima lua, sol, estrelas e ar à discrição. A culpa de se malograrem estes sublimes intentos quem na tem é a sociedade, esta prosa derreada do gentio comum que assim que vêem pomba a librar-se três metros acima da lama, apedrejam-na, desasam-na, dão com ela em terra. É desgraça! Mulheres distintas com amores distintos é mister inventá-las. E maior desgraça ainda: as heroínas que se admiram e aplaudem no romance e no drama, seriam assobiadas, se tal gênero de pensar e viver se encarnasse em sinceras heroínas na vida real.

Ângela seria capaz de descer até nivelar-se com o irmão da Joana costureira; mas não a deixaram. Privaram-na de estremar-se do vulgar. Compeliram-na por maneira as circunstancias que não há aí maior rebaixamento onde pudesse ir sopesada uma alma primorosa em finezas de amor.

Vamos ver o que este mundo faz das mulheres que transcendem a craveira comum.

D. Beatriz, aconselhada pelo seu confessor, escreveu ao irmão precavendo-o contra a inclinação amorosa de sua filha, sem esconder o nome e a geração vilíssima do inquietador de Ângela. Por sua parte, a fidalga declinava de si a responsabilidade de alguma conseqüente ignominia de família, admoestando o general a que levasse Ângela para sua casa, e lhe insinuasse com o preceito sentimentos de dignidade e faro mais senhoril na escolha dos maridos. Esta linguagem metafórica devia ser do frade confessor. Só um egresso, descassado das boas práticas de sala, daria a uma senhora faro na escolha de maridos, assim à guisa de perdigueira de dois narizes que fareja a volataria.

Simão Barbosa não se assanhou. Respondeu placidamente que transferisse Ângela para o convento, e lhe fizesse saber que a rebeldia lhe redundava em passar da condição de senhora à de criada. "eu não sei bem de quem ela é filha. Apenas lhe conheci a mãe". Este homem, escrito isto, devia acrescentar: "Eu deveras não sou pai dessa mulher, porque pude escrever esta resposta sem sentir o mínimo abalo de ódio ou de piedade. Se me dissessem que ela tinha casado com o filho do sacristão, daria ordem a um lacaio que os enxotasse da minha porta com um tagante". Era o ermo, o tédio, a doença, a irreligião, a covardia em aniquilar-se, que empedravam o coração do general.

Uma hora, em certa noite, dezassete anos antes... hora negra foi essa que lhe enoitou a vida inteira. Ululava-lhe desde essa hora nos ouvidos um grito de garganta abafada. Nenhum rir de festa, nenhum gemer de infelizes, nenhuma aurora de paz vingou mais distraí-lo daquela noite, e do som final de uma corda de vida que lhe estalou entre os dedos.

Quando Ângela recebeu as ordens de seu pai, já Francisco da Costa ia caminho do Porto.

Mas que homem é este? Que idade tem? Que figura? Que despropósito de coração é esse que se escusa com feminil pavor a fazer rosto à desgraça, raras vezes vencedora, se a paixão braveja e se esbraseia num formidável "quero"?

Francisco José da Costa, vai em vinte e dois anos. Não se recomenda por gentileza, posto que lhe sobejem graças estimáveis. Basta-lhe os olhos negros e a tristeza, a palidez e o nunca sorrir-se. É poeta; mas as suas estrofes não se imprimem; são lágrimas; e desconhecidas, porque ninguém o viu chorar. Estuda desde os treze anos com inteligência precoce. A mente de seu pai era faze-lo frade em ordem pobre; mas o mocinho esperava que o seu estudo lhe valesse formatura gratuita em Coimbra.

Mudadas as instituições políticas, e falecido seu pai, Francisco aceitou as sopas oferecidas por seu cunhado, merceeiro escasso de posses, e sempre infeliz nas empresas comerciais. José Maria dos Santos, como não tivesse filhos, prometia cortar pelas precisões domésticas para formar o cunhado na escola médico-cirúrgica do Porto. Esta dependência mortificava o estudante, não por índole rebelde à gratidão, senão que via sua irmã afadigada no labor da costura para auxiliar as despesas no Porto.

Joana era a mais doce e resignada criatura que ainda a Providência deparou no seio de uma família mal sorteada dos bens deste mundo. Seu marido tinha quarenta e seis anos, e ela vinte e três. Não distinguireis entre a filha

extremosa e consorte desvelada. Acariciava-o e respeitava-o como a pai. Não sabemos que grau marcava a temperatura do seu amor de esposa: o certo é que José Maria, golpeado de reveses no seu negócio, dizia que Deus o compensava sem medida, premiando-o com o oiro do coração de sua mulher, em exemplo de paciência, suprema riqueza do pobre, moeda sagrada com que se negoceia o céu.

Francisco adorava sua irmã; todavia, para estar triste, escondia-se dela. Joana queria que todos agradecessem a Deus, quando se levantavam com saúde, e se ajuntavam à volta da mesa do almoço. Se via triste o marido ou irmão, dizia: "Sois ingratos ao Senhor. Se um de nós adoecesse, e a doença fosse mortal, com que saudades nos lembraríamos destes dias tão quietos, tão felizes! Pensai na tristeza da família onde morreu um irmão; pensai na casa onde há fome e frio, e dizei-me se não é ingratidão e pecado uma tristeza causada não sei porque!"

Quem primeiro revelou a Francisco o amor de Ângela foi Joana. Acabou de lhe contar a confidencia da fidalga, e disse:

— Agora, Francisco, é necessário que vás para o Porto, embora a aula se abra em outubro. Deixa que o tempo desfaça esta criancice da D. Ângela. Eu disse-lhe o que devia: mas ela respondeu-me que havia de ser tua esposa, se a tu amasses. Já viste inocência assim? Eu fiquei espantada a olhar para a menina, e de repente passou-me pelo espírito uma nuvem negra. Deus me livre que tu, meu querido irmão, não pudesses vencer-te, se chegasses a imaginar possível casar com a filha do general Noronha, com a sobrinha de D. Beatriz, tão soberba da sua fidalguia!

Francisco escutou sem assombro e sem interrompê-la a extensa revelação de Joana. Passados momentos de serena reflexão, disse:

— Eu sabia isso...; ainda assim, dás-me uma triste novidade.

— Sabia-lo? Por quem?!

— Por mim. Tinha-mo dito a minha alma. Eu pensava nela... — vê que doidice! — pensava em Ângela imaginando a felicidade do homem que ela amasse. Era uma inveja que me envergonhava, por isso ta não confessei. Até de mim a quisera eu esconder; mas o absurdo lutava com o absurdo, e não sei quem venceu... Um dia sonhei que a via chorando, e acordei a chorar. Deste este momento, senti que adorava Ângela. Isto foi há três anos, lembras-te? Fui para o Porto, e lá fiquei todo ano. Quando voltei e a vi, desejei morrer. Um dia entrou-me no coração a certeza de que era amado... Por quem? perguntas tu, Joana; e bem vejo que estás sorrindo da vaidade do teu pobre irmão!... eu te digo como foi... Estávamos na igreja matriz, nas trevas do sábado santo. Eu sabia em que teia de altar ela tinha ajoelhado; mas entrevia-lhe escassamente o vulto. Ao tanger da campainha, fez-se a claridade súbita no templo, e vi os olhos dela cravados nos meus, que se abaixaram respeitosos. Sabes tu que delírio de piedade me assalteou? Ajoelhei, quando todos se levantavam e davam boas-festas. Ajoelhei no maior sombrio da nave... e chorei. Aqui tens a revelação que os olhos de Ângela ensinavam à minha alma... Que pensas tu agora de mim? — prosseguiu o moço, após longa pausa de reconcentração. — Receias que eu apareça diante de Ângela com o colo erguido pela vaidade de ser amado? Cuidarás que eu principiei a acastelar ilusões por esse céu além, e a descer delas para o paradoxo dum casamento? Mal me conheces então, Joana! Vê se me compreendes isto... Acho sempre o teu espírito aberto a certas coisas confusas que eu digo, e não sei dizer mais inteligivelmente. Olha, minha irmã, eu não sei se o estudo envelhece o coração; figura-se-me que sim. A alma não; que essa é imortal, inalterável e inviolável à destruição do tempo. Em mim conheço o coração atrofiado, e a alma viventissima. Como homem de alma adoro Ângela, ilumino-a à luz que radia das minhas crenças em Deus. Como homem de coração não a sacrificaria, nem me sacrificaria. Impulso que me arroje a querê-la ouvir dizer que me ama não o sinto; desejo de encontrar aquela bela imagem, no silêncio do espaço em que a tenho visto nas minhas noites de vigília, entender os murmúrios que ressoam o seu nome, vesti-la das aéreas roupagens que sonhou a exaltada poesia do oriente, é isso, é isso o meu amar, o meu delirar, a minha inofensiva vertigem, que não tem nada que ver com o nascimento, nem com os haveres de Ângela. Não sei quem é, não conheço, não quero conhecer a filha do general Noronha, a rica herdeira, a fidalga que tem no seu paço de Gondar retratos de avós que fundaram a monarquia portuguesa. Quem eu conheço e adoro é uma mulher que se chama Ângela, que tem no rosto uma luz celestial, e essa luz ma representa de geração divina. Ali há sinal de origem mais alta. Eu vou buscar-lha no céu; não a procuro na fundação da monarquia. Porque receias tu, então, que eu perturbe o sossego da fidalga opulenta, se eu não lhe quero nem os brasões nem o oiro? Pode ela dar-me a alma sem lesar os seus pergaminhos nem declinar o direito de suceder nos castelos dos senhores feudais seus avós? Pode. Então, minha irmã, deixa ao pobre sonhador a sua inocente felicidade, e faz de conta que o defensor de Ângela não é o anjo da guarda, sou eu.