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Os Brilhantes do Brasileiro/IX

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Amava um que se habituara a contemplá-la como o espírito devoto contempla uma escultura da Virgem Maria, e com respeitoso temor imagina que os olhos da imagem fixos nos seus tem raios de luz viva e transluzem amor e misericórdia do coração divino.

Era um estudante que se habilitava para cursar a escola médico-cirúrgica do Porto. Era cunhado do merceeiro que provia a casa de D. Beatriz. Era irmão da mulher que costurava os vestidos das fidalgas, e ensinara a bordar D. Ângela. Chamava-se, curta e plebeiamente, Francisco José da Costa, e sabia que seu avô paterno tinha sido carpinteiro, e seu avô materno cozinheiro de um iate.

Ora um homem assim "mal-nascido" alguma jóia devia trazer preciosa dos inexauríveis tesouros de Deus.

Se nos ele sair bom e honrado coração, desculparemos a baixeza de instintos com que nos alvorece Ângela no seu primeiro amor.

A inocente não se escondia de D. Beatriz. Ensina a experiência que a candura e a indiscrição andam muito íntimas. A inocência ombreia com a inépcia. Não pode uma menina amar inocentemente senão as suas bonecas. Amores doutra espécie, desajudados de esperteza e finura, desfecham em escândalo ou sandice.

D. Beatriz, devotíssima de S. José, que carpintejava, e de S. Pedro, que pescava, e de S. Marcos, que mesinhava enfermos, e de S. Lucas, que pintava, e de S. Mateus, cobrador de impostos, e de S. Cassiano, mestre-escola, e de S. Teodoro, taverneiro — cristã a extremos de lavar os pés aos pobres em quinta-feira santa, - tranziu-se de horror frio quando teve a denúncia de que sua sobrinha amava o irmão de Joana Costa. A denúncia vinha justificada com uma carta dele, significativa de não ser a primeira, nem talvez a décima; porque o tratamento dado a uma filha de Simão de Noronha e de D. Maria d’Antas era... um tu!

D. Beatriz pôs as mãos convulsas nos olhos quando leu tu na primeira linha, tu a primeira sílaba da carta, uma entrada assim suja e escandalosa numa missiva de caderno numerado de uma a dez páginas! E não leu mais do que aquele tu, porque em seguida apanhou-lhe o flato as potências da alma, e ela ficou a escabujar tão-somente com a potência de braços e pernas.

Ângela acudiu; Vitorina, aquela criada que o leitor já conhece, lá estava, e, nas mãos desta, a carta.

— Veja isto, menina, veja isto! — murmurou Vitorina. — Tanto lhe pedi que não lhe escrevesse...

Ângela sumiu a carta no seio, e tomou nos braços a tia. Chamou-a, beijou-a, pediu-lhe perdão, desbulhou-se em lágrimas, e deu graças a Deus quando a velha mandou fazer uma infusão de erva cidreira para aplacar a tempestade dos nervos.

Depois do que D. Beatriz obrigou a sobrinha a contar-lhe pelo miúdo a origem da sua correspondência com o irmão da costureira. Via-se a menina enleada para referir o mais singelo da história, que era a origem; mas a velha insistia em perguntar:

— Como foi o princípio disso?

— O princípio... foi... foi... eu vê-lo... — respondeu Ângela muito apertada.

Este começar a história dum primeiro e talvez eterno amor tem a sublimidade simples da origem do Universo, referida por Moisés: "No princípio era o Verbo"; com a diferença que o principiar de Ângela entende-se melhor.

— Então tu... — objetou a tia entre irônica e severa — viste-o, olhaste para ele, e mais nada... ficaste apaixonada!... Com efeito!... Eu ainda não me infirmei bem na cara desse sarrafaçal; mas, pela idéia que tenho, ele tem uma figura muito reles! Tu não sabias — continuou D. Beatriz, espiritando-se com uma pitada de vinagrinho — não sabias que ele é irmão da Joana, e cunhado do Zé tendeiro? E que o pai dele era sacristão da Senhora da Agonia, e que a mãe trabalhava com os bilros? Sabias isto?

— Sabia...

— Sabias?! Quem to disse?

— Foi ele.

— Foi ele mesmo?! O tal Francisco?

— Sim, minha senhora.

— Então tu falavas-lhe?

— Não, minha senhora... Escrevia-me ele.

— E contou-te de quem era filho!... É extraordinária a sinceridade!... E para que fim te contava ele essas coisas que deviam fazer-te cair na razão da tua indigna escolha?

— Contava-me estas coisas para que ninguém mas contasse antes dele.

— Então o rapazola tinha orgulho em ser filho do sacristão?... Bem sei... são as idéias que cá trouxe a liberdade... Deus perdoe a teu pai, que também ajudou a fazer gente os netos dos carpinteiros e dos cozinheiros dos iates... Oxalá que ele não pague... Vamos ao caso... E tu, apesar do Francisco da Joana te dizer quem era, não mudaste de idéia?

— Não minha senhora...

— Continuavas a querer-lhe...

— Sim, minha tia.

— E com que fim? Querias casar com ele?

— Se me deixassem, casaria.

— Ora não sejas infame! — bradou a tia, cerrando os punhos, e resfolegando tão irada que o tabaco lhe espirrava em granizo das ventas arquejantes — não sejas infame, Ângela! — repetiu ela, resistindo ao flato que já lhe emperrava a língua. — Não és minha sobrinha, não és filha de Simão de Noronha... De Maria d'Antas creio eu bem que sejas filha...

A última espécie do insulto foi vociferada com rancoroso sarcasmo: Ângela não o percebeu.

— Com que então, se te deixassem, casarias com o cunhado do Zé tendeiro!... — repetiu a velha acentuando com crispações de riso aspérrimo aquele Zé, elidindo a primeira silaba para engrandecer a ignomínia do nome.

Ângela ouvia em silencio e lagrimosa as invectivas da velha, cortadas de frouxos nervoso. De súbito, D. Beatriz, circunvagando pelo sobrado o olho direito armado da luneta, exclamou:

— Que é da carta que eu tinha aqui? Que é da carta?

— Aqui está — disse mansamente Ângela, apresentando-lha.

— Querias lê-la, não é assim?! — gritou a velha, tirando-lha da mão com arremesso. — Vai perguntar à criada que ma trouxe se ela quereria casar com o Francisco da Joana...

E, abrindo-a em tremuras de raiva, pôs a luneta e bradou:

— Tu!... Olha isto, filha de Simão de Noronha! Tu... O neto do cozinheiro dá tu à filha do décimo oitavo senhor do paço de Gondar!... Não te envergonhas, Ângela!... Consentiste em semelhante insulto a tua mãe, que era das mais distintas famílias de Portugal?

Como a filha de Maria d’Antas não respondesse, D. Beatriz gesticulou de ombros e cabeça em ar de assombrada, repôs a luneta no olho fundo e mirrado, e leu mentalmente, fazendo esgares com os queixos, ao passo que um novo tu lhe descompunha o aparelho nervoso. Muito é, porém, de notar-se que da leitura da segunda página em diante o rosto da velha denotava espanto sem ira, sem carrancas, sem intermitências de suspiros e ais. Um período especialmente a impressionou de feição que voltou terceira vez a lê-lo, compassando o entendimento de cada frase com um gesto afirmativo de cabeça. A passagem dizia assim:

"Não nos iludamos, minha boa amiga. Pode ser que Deus aproximasse as nossas almas; pode ser; mas, se elas houverem de se encontrar e unir, há de ser na presença de quem as criou, - no céu. Neste mundo, é impossível; e, se fosse possível, a sociedade te obrigaria a chorar rios de lágrimas, e eu mesmo chegaria a sentir o tormento do remorso por ter assassinado as alegrias do teu destino, e destruído as modestas aspirações do meu. Desde que comecei a adorar o que em ti há divino, nem uma hora só entrou em minha alma o pensamento de te ver minha esposa. Era escusado que minha boa irmã estivesse sempre a medir a distância que nos separa. Bem viste que eu ta mostrei na segunda carta que te escrevi; e Deus sabe que eu chorava quando parecia rir da humildade de meu pai, que era um respeitável velho muito pobre, muito resignado, e muito feliz. A grande herança que ele me deixou foi a certeza de que há pobres felizes. Conheço que minha mocidade já não vai encaminhada pela trilha da de meu pai. Ele ignorava tudo, exceto os artigos da fé que atam as tristezas transitórias desta vida aos eternos contentamentos doutra: eu estudo há seis anos, penso e aflijo-me em terríveis dúvidas; e, se creio nalguma coisa santa, é porque comparo a felicidade de meu ignorante pai com as dolorosas inquietações do meu espírito. Mas a ti que importa isto, minha adorada amiga? Que impertinentes cartas te escrevi nestas noites tão compridas e veladas! E que pesar me fica se elas te enfadam, cuidando eu que tens lá também noites sem dormir, e amizade bastante para aceitar as confidências do pobre solitário!..."

D. Beatriz deixou cair o braço que sustinha o papel, desarmou o olho cansado, e perguntou:

— Ele é quem ditou isto?

— Isto quê, minha tia?

— Esta carta... Não creio que ele saiba dizer estas coisas... Não pode ser... Alguém lhe faz as cartas... Nada... O Francisco da Joana, com aquela cara de bruto que tem, não ideava assim umas idéias tão discretas. Aqui anda sancadilha armada à tua inocência, Ângela. Há velhaco escondido neste negócio!... Sabes o que é, tola?... O rapaz pensa que te prende com a confissão da sua humildade. Pouco mais ou menos aconteceu isso comigo, quando eu era da tua idade; e mais o meu pretendente era um doutor, filho do juiz de fora de Ponte. Também me veio com estas cantigas da desigualdade dos nossos nascimentos; e eu, a falar-te verdade, ia-me deixando levar, e não sei onde chegaria a minha loucura, se teu avô do pé p’rá mão não me escolhe marido conveniente. Casei, e daí a quinze dias já nem me lembrava o outro; só quando o vi passados anos, muito gordo e nédio, é que me lembrei do palavreado dele. (D. Beatriz contava o caso expedindo uns espirros de riso gosmento). Dizia o velhacório que o seu último dia seria aquele em que me visse ligada a outro coração; e, ainda na véspera de me casar, me fez verter grossas bagadas sobre o papel em que me escrevia que o sangue lhe saía em borbotões pela boca. Depois, quando o vi muito barrigudo, casado com outra barriguda de feitio e da casta dele, pegou-me uma vontade de rir, que ainda agora não posso ter mão que me não doam as ilhargas!...

E casquinava de modo a humorística velhinha que Ângela ria também do irresistível grotesco de sua tia recordando tão comicamente os seus virginais amores.

— Pois convence-te, menina — volveu a fidalga, revertendo a custo à seriedade do ato — que estás passando pelo que passei; mas este cá me quer parecer mais manhoso do que o outro. Tem mais lábia. Vem cá com estas coisas dos artigos da fé, que rezava o pai... Pudera não! Ou ele não fosse sacristão!... Aposto eu que o filho não sabe o Padre Nosso! Se o pai era feliz na sua baixa posição, porque não vai ele para o lugar do pai? Eu já disse ao Zé tendeiro que se deixasse de o mandar estudar no Porto; que o metesse num ofício. E ele quem lhe deu dinheiro para seguir os estudos de cirurgião, ou médico, ou lá do que é? O cunhado quanto tem quanto me deve. Emprestei-lhe um conto de réis, a juro há três anos, e paga-me em arroz e bacalhau. Nem daqui a vinte anos me tem pago. Ora não há! — continuou a credora do merceeiro aguçando a voz em iracundo falsete — se eu via minha sobrinha casada com um lapuz, que ainda há anos andava por aí a jogar a pedrada no cais! Onde foi ele aprender este palavreado!... Nada... isto é dalgum finório que esperava ganhar alguma coisa se caísse o raio na minha família. Não há de cair! — bradou ela batendo com os ossos do pulso no capacho de palha em que encruzara as pernas. — Não há de cair, enquanto eu for viva! Teu pai não te quer casar? Eu te casarei! Escolhe. Tens cinco pretendentes. Um da casa de Paço-vedro; outro da Passagem; outro de Aborim; outro de Aguião; outro de Azevedo; outro de... quem é o outro?

— Não sei, minha tia; nem quero saber, porque não caso com nenhum.

— Não casas com nenhum?! — assobiou a velha erguendo-se duas polegadas de salto acima do capacho.

— Não, minha senhora.

— Não?!... Vou escrever a teu pai! Ele te obrigará!

— Meu pai não quer que eu case com algum desses que a tia nomeou.

— Não? Mas eu vou dizer-lhe que há um pretendente mais moderno: o Francisco do sacristão. Pode ser que ele queira este. O negócio vai arranjar-se. Queres que lhe de parte do novo arranjo? Responde: isto é pedir de boca. Teu pai deve querer que o décimo nono senhor do Paço de Gondar seja neto do sacristão da Senhora da Agonia. Tem vergonha! Tem vergonha! — rebramiu a velha, erguendo-se de ímpeto, e bradando a Vitorina que lhe trouxesse mais chá de cidreira.