Os Brilhantes do Brasileiro/VIII

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Àquela hora alta da noite, Ângela, ajoelhada diante do santuário, pedia à Virgem que lhe inspirasse o melhor meio de cumprir os seus deveres na apertada situação em que se via.

O ar inocente desta mulher, que se ajoelha como infeliz sem culpa, deve tocar o ânimo de quem vai lendo isto, e já desde o começo do livro pende a desconfiar da virtude da esposa do brasileiro. É, pois, tempo de antepararmos da involuntária aleivosia a mulher pura.

Na margem direita do Lima, ergue-se por entre árvores seculares o antiquíssimo paço de Gondar, cujo décimo-oitavo senhor, no tempo da invasão francesa, era Simão de Noronha Barbosa, capitão de cavalaria, gentil e valente, em anos florentíssimos.

Ainda não tinha dezesseis quando amou a filha de um seu caseiro, com quem queria casar-se. Os parentes e o tutor debalde lhe antepuseram os estorvos da lei e ainda ordens expressas da regência. A mulher humilde chegou a ser-lhe arrebatada e presa; mas a passagem da onda revolucionária socavou às portas ferradas da cadeia de Ponte do Lima, e remessou-lhe aos braços a formosa encarcerada. Certo general de Napoleão mandou a um vigário que os casasse em sua presença e galardoou assim a devoção, talvez forçada, de capitão português ao leão de Austerlitz.

Simão de Noronha foi ferido mortalmente no recontro de Amarante. A esposa, que o acompanhava, quando o viu acutilado e moribundo entre as garras dos patriotas, que cevavam suas iras mais encarniçadamente nos jacobinos, morreu de puro terror, sufocada por um golfo de sangue. Era uma fidalga alma a daquela filha do povo!

A piedade dalguns populares salvou o capitão de ser arrastado nas ruas de Amarante.

Após seis meses de curativo, recolheu-se ao seu paço de Gondar, e levou consigo o esqueleto mal escarnado de sua mulher. Dias depois entrou num mosteiro, e amortalhou-se no hábito de noviço beneditino.

Antes, porém, de findo o noviciado, Simão viu casualmente sua prima D. Maria d’Antas. Era uma senhora de formosura rara. Não direi que o rasgar o noviço o hábito fosse um preito digno desta notável dama; nem me espantaria que toda a congregação beneditina despisse as túnicas, e os frades se esmurraçassem por amor dela.

Mulheres assim aluiriam conventos, se lhes fosse consentido visitar os primos. Por um de seus cabelos arrastariam comunidades, e dum volver de olhos consumariam a empresa que não bastaram séculos a vingar.

D. Maria d’Antas, filha dum desembargador da suplicação, trouxera de Lisboa, aos vinte e cinco anos, o coração já derrancado. Os seus costumes e manhas não edificavam ninguém; mas endoideciam os mais guapos e galhardos fidalgos do Alto Minho. Além de bela e palavrosa, a fidalga d’Antas era guapa cavaleira, monteava lobos, matava patos bravos, e tinha de mulher, apenas, a cara, que ficaria bem num anjo, e as fraquezas que venceriam a rebeldia dos demônios.

Simão de Noronha, em 1812, já morava nos eu solar das margens do Lima. O esqueleto da esposa e o hábito de noviço eram apenas umas lembranças de infortúnios remotos. A casa ameada de Gondar recebia a luz e os aromas das Primaveras novas pelas rasgadas janelas onde, às vezes, aparecida uma mulher alta vestida de branco. Era D. Maria d’Antas, não já esposa, mas prima, título respeitável com que ambos se abroquelavam da infamação. É, porém, de notar que nenhum se preocupava dos rumores públicos acerca daquele viverem sós e desligados doutros parentes sob o mesmo teto.

Devolvido oito anos, a calúnia já tinha mais onde morder. Maria d’Antas, sem pejo nem resguardo, aparecia com uma criança dum ano nos braços.

Mas esta criança, antes de perfazer dois anos, ficou sem mãe. As janelas do paço de Gondar fecharam-se outra vez. Simão de Noronha desapareceu, enquanto na igreja paroquial se entoavam os responsos à volta da essa de D. Maria. A criança foi levada a Viana, onde vivia casada uma irmã do fidalgo. E o espanto geral dos vizinhos não desistiu de cavar na sepultura da formosa desvairada até descobrir que ela, numa vertigem de ciúme, fora estrangulada. Isto de cavar na campa da morta vem aqui figuradamente. Ninguém profanou a sepultura de D. Maria. O caso execrando soube-se quando um morgado dos Arcos de Valdevez contou aos seus amigos, não sem fatuidade, que Simão de Noronha matara sua prima, instantes depois que encontrara entre moitas de roseiras um punhal com a firma dele revelador, que também era primo. Ora este punhal lhe saltara da algibeira da véstia castelhana, quando o fugitivo pulava da janela ao jardim

Doze anos depois, Simão de Noronha desembarcava no Mindelo com a patente de coronel. Quarenta e seis anos teria: mas representava adiantada velhice.

Finda a guerra e reformado em general, o senhor de Gondar foi viver no seu arruinado palacete de Ponte do Lima, e não voltou à casa solarenga.

De longe a longe, parava à porta do general uma liteira, donde apeava, juntamente com sua criada já idosa, uma menina que contaria entre catorze e dezesseis anos. As pessoas, que tinham conhecido D. Maria d’Antas, decidiram logo que a bela hóspeda do general era filha daquela malograda dama e de Simão de Noronha. De feito, era a criança que treze anos antes havia, talvez, sido arrebatada dos braços de sua mãe pela mão que lhe afogara o nome no sangue da garganta.

Era Ângela.

Demorava-se a hóspede um dia em Ponte do Lima, e voltava com sua criada para Viana, onde residia querida extremosamente da irmã de seu pai.

O general não dava nem recebia carícias. A presença da filha não descondensava de sobre a alma dele as trevas da consciência que lhe escurentavam tudo. Às vezes quedava-se a contemplar Ângela largo espaço. Marejavam-se-lhe os olhos, e afundavam-se-lhe as rugas da fronte.

E que via Maria d’Antas na filha, e em si o algoz. Depois, afastava-se dela carrancudo e desabrido; por maneira que Ângela não visitava seu pai sem ser compelida. Cobrara-lhe medo antes de sentir no coração a ternura de filha.

E a do general por ela raros instantes entreluzia nas sombras do rosto carregado. De natural um tanto selvagem, piorado por infortúnios que endurecem a condição, o senhor de Gondar parecia-se com todos os pais que não viram crescer hora a hora os filhos, tanto mais entranhados n’alma quanto lá pungiu o susto de os perder. Deixar uma filha com dois meses, e voltar a tê-la de catorze anos, é como adotar uma criatura doutrem, é ter perdido o direito à consolação de amar ardentemente o ser que se formou ao calor de nossos beijos. Nesta compensação entra benefício de Deus: a não ser assim, bastaria o sangue para encher de súbito amor o coração. O sangue! Retrocede cem anos quem faz conta do sangue — extrato útil do bolo alimentar — no vínculo espiritual de pai e filho, aliança sacratíssima, que se faz de lágrimas e não de sangue.

Ângela, já suposta herdeira do general Noronha, era amada em dobro: formosa e rica. Amavam-na, pediam-na uns morgados que ela nunca tinha visto nem conhecido de nome. As solicitações por escrita ao misantropo velho não recebiam resposta. Ninguém ousava dirigir-se em pessoa a um homem que dizia aos criados; "não conheço ninguém".

D. Beatriz, a irmã do general, tinha sido a medianeira dos primeiros pretendentes. O pai de Ângela, no propósito de cortar futuras negociações, ordenou secamente a sua irmã que mudasse Ângela para a companhia de outra tia professa nas beneditinas de Viana, se a não queria solteira em sua casa.

E Ângela abençoava a resistência do pai. Não conhecia uns, e não amava nenhum dos fidalgos que três séculos antes porfiariam em merecê-la acutilando-se reciprocamente. Os mais destros e insofridos o que faziam era chover cartas de empenho a D. Beatriz de Noronha, e presentes ao agresso confessor daquela distinta beata.

Temos, portanto, donzela invulnerável? Ângela desmentirá a exuberante sensibilidade de sua mãe? Ou, namorada das visões beatíficas do cristianismo, suspira pela soledade do cenóbio?

Muito longe disto, e muito adentro das raias da natureza humana estava a peregrina Ângela.