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Os Brilhantes do Brasileiro/VII

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Às onze da noite daquele dia, Hermenegildo Fialho rebolava-se no enxergão de penas, e gemia uns gemidos que soavam como regougo de raposa. A comadre foi escutá-lo à porta, e veio dizer ao marido que o compadre estava a gemer de saudades da indigna mulher. Ajeitou-se à esposa escandalizada boa ocasião de cortar nas mulheres desleais; o marido, porém, que tinha, às vezes, conscienciosas brutalidades, tapou-lhe os respiradoiros da ira, murmurando:

— Cala-te, cala-te; e não me cantes tretas a mim...

A esposa encolheu-se; odiou mais do intimo o marido, e gozou o néctar dos deuses, o prazer da vingança antecipada, e a prelibação da vingança por vir. Ah! Atanásios, Atanásios!...

Ergueu-se o verdugo de caixeiros desonestos (Veja o cap. III) e foi ao quarto do hóspede.

— Que tem, compadre? — perguntou ele. — Não pode dormir? Estranha a cama, ou que é?

— É uma dor de barriga — respondeu o triste, apanhando nas mãos a parte dorida, e acocorando-se. — Fez-me mal o empadão das ostras. Dá-me você um bocado de Holanda, a ver se esmoo este diabo de marisco?

Fialho sugou na botija, e daí a pouco tinha esmoído o empadão, e rebentava-lhe tanta saúde pela cara fora que parecia desafiar todas as ostras do Sr. Bocage e perturbar-lhe o sono.

Mas o compadre, sentando-se-lhe na cama, perguntou:

— Quer você cavaco? Ainda agora deram as onze.

— Vá lá; vamos conversar, que eu estou espertinado.

— Você nunca desconfiou de sua mulher?

— Eu nunca.

— Não ia lá por casa ninguém...

— Nem alma viva, a não ser a costureira. Visitas foi coisa que nunca me entraram das portas p’ra dentro, afora você e mais a sua patroa.

— Mas no teatro...

— Teatro! tó carocha! Foi lugar onde nunca a levei...

— E na missa?

— Missa!... não era moda lá em minha casa... Você bem sabe que a gente lá no Brasil perde o pêlo. Logo que casei, disse-lhe que isto de missa era uma história. Ela ao princípio ficou estarrecida; mas foi-se afazendo. Comprei-lhe um oratório e dei-lho para que rezasse em casa, se quisesse. E o caso é que ela e mais a criada, aos domingos, fechavam-se no quarto duas horas a rezar ladainhas. Ora fiem-se lá nas mulheres rezadeiras!... Olhe você, compadre, se a religião não é uma patranha!

— Patranha! E que grande patranha!

— A sua mulher reza?

— Nem se sabe benzer, acho eu.

— Faz ela muito bem; mas vai à missa dos Congregados ao meio-dia, que eu já a tenho visto entrar na igreja.

— Vai por dar um passeio, e mais os pequenos, percebe você? Ora diga-me cá, compadre — continuou o previsto Atanásio, sem dar lugar a que o hóspede averiguasse coisas tendentes a provar que a mulher de seu amigo conciliava a pureza dos costumes com a ignorância do sinal da cruz — eu ouvi dizer, e sei com certeza, que você tinha seus amores fora de casa. Nunca lhe perguntei nada a tal respeito por se não oferecer ocasião; mas eu sei que você tinha em S. Roque da Lameira uma moçoila da sua terra, chamada Rosa; e outra na sua Quinta da Cruz da Regateira, chamada Benedita.

— Não lhe mentira. Confesso o meu pecado; mas dou-lhe a razão. Minha mulher não me tinha amor de casta nenhuma. Tratava-me como se trata um tio. Entrava e saía a semana sem me dar um beijo, nem se lhe importava que eu comesse ou não comesse. Você sabe que eu sou atreito a moléstia de fígado, e que só me sinto aliviado com

papas de linhaça; pois ela mandava-me pôr as cataplasmas pelo galego! Diga-me se uma boa esposa consente que alguém ponha as cataplasmas em seu marido!... Um homem, quando anda pelos cinqüenta, precisa ser afagado, não é verdade?... É p’ra isso que eu me casei com uma rapariga pobre, apesar de ser fidalga, formando tenção de a deixar rica. Imagine você que ela nunca me fez um carinho. À minha beira estava sempre triste com a noite. Nunca se ria de chalaça que eu lhe dissesse; e depois que eu me deitava ficava ela duas horas a costurar, mais duas horas a rezar, e via-se mesmo que me aborrecia. Aqui tem você a razão por que eu trouxe da minha terra duas raparigas boas e bonitas que me amam com todo o afeto e choram quando se passam três dias sem eu lá ir.

— E sua mulher desconfiava?

— Sabia tudo, por que um brejeiro dum caixeiro, que eu pus fora, lho mandou contar numa carta.

— E ela que fez?

— Deu-me a carta, e disse que não tornasse a fazer os meus caixeiros sabedores dos meus desvarios.

— E não se zangou?

— Nada.

— Ora essa!...

— Pois se ela não me tinha amor nenhum!... Você não entendeu ainda?

— Agora percebo... Mais uma razão para termos a certeza de que ela fazia outro tanto.

— Pois isso é claro como a luz que nos está aluminando... Chegue-me daí a genebra, que estou com azia.

O brasileiro embocou a botija, gorgolejou três bons tragos, e prosseguiu:

— Se ela me tivesse amor, fazia o diabo em casa, logo que soubesse das minhas asneiras, não é verdade? Pois nunca me jogou a mais pequena chalaça a tal respeito!...

— Então não há que duvidar: — evidenciou Atanásio Mendes — sua mulher tinha com quem se distrair; e agora percebo eu como é que ela está inocente. Quer dizer na sua que está tão inocente como você, seu maganão!

Atanásio riu-se do chiste do próprio remoque.

— Pois sim — refletiu judiciosamente Fialho — mas você bem sabe que nós, os homens, não somos mulheres. Elas tem outra casta de obrigações. Se a mulher for igual ao marido, então não há honra nem vergonha neste mundo, não acha?

— Diz bem, compadre; mas é que elas abusam do exemplo que os homens dão, percebe você?

— Isso também é verdade — concordou Hermenegildo, fechando o olho esquerdo.

— Você parece que quer dormir... — notou o hóspede.

— Sim, ele agora parece que chega — resmungou Fialho, fechando o olho direito.

Minutos depois, esta vítima deplorável da perversão dos costumes... roncava.