Os Brilhantes do Brasileiro/VI
Já Hermenegildo Fialho estava aflito com a demora dos três parlamentários enviados à esposa. Não cuidava ele que Ângela comparecesse na polícia, ou se havia esquecido de ter concordado com a autoridade sobre a urgência da acareação entre ama e criada.
A paciência dava-lhe empurrões. Caia aquele sujeito sobre as molas das otomanas flácidas e fazia ringir os aços. Ressaltava com pasmosos saltos dum coxim para outro, e parecia tentar um suicídio por despejo da janela à calçada dos Clérigos, quando enxergou na Praça-nova Joaquim Antônio Bernardo, Pantaleão Mendes e Atanásio José da Silva.
Os solicitadores da honra de Fialho caminhavam à pressa e com ar de embezerrados. O brasileiro pregara os olhos neles, a ver se lhes lia alguma coisa nas fisionomias, cá do segundo andar onde os outros lhe viam a cara grande e escarlate como a lua dos teatros.
— O homem dá-lhe ataque apoplético! — disse Atanásio a Pantaleão.
— Asno será ele se lhe der algum ataque! — observou Joaquim Antônio, empregando a gramática e a filosofia do seu uso.
— Qual ataque nem qual diabo! — corroborou Pantaleão Mendes. — Um homem é um homem, sabe você, amigo Atanásio? E mulheres não faltam, física e moralmente falando. Haja dinheiro e saúde: o mais, regalório!
— Pois sim — redargüiu Atanásio, quando subiam a escada —; mas você não se vá pôr a dizer isto nem aquilo da mulher, percebe você? Conte o que se passou, e deixe obrar a natureza.
— Não me dê conselhos... — resmoneou Pantaleão. — Deixe o negócio por minha conta; que a honra dos meus amigos é como se fosse a minha.
Hermenegildo estava no topo da escada com os braços em cruz no costado, e o queixo debaixo caído e apoiado sobre o papo dos bócios.
— Então que há? — perguntou ele esgazeando pelas caras homogêneas dos três um relance de olhos penetrante.
— Vamos conversar — respondeu Pantaleão, levando-o de braço dado para a sala.
— Vocês tardaram tanto! — volveu o brasileiro.
— Estivemos à espera que a sua mulher se despachasse lá da polícia; depois, palavra puxa palavra, e deitou-nos a conferência a esta hora — explicou Atanásio, encarregando Pantaleão, por um gesto de cabeça, de ser o relator dos casos acontecidos.
O qual tirou do interior umas palavras, cortadas por pausas que davam à narrativa uns toques de seriedade, prejudicando o índole ridícula da cena.
— Senhor compadre — disse o marido de Francisca Ruiva. — Sua mulher não estava em casa; aqui o amigo Joaquim foi-lhe na peugada, e soubemos que ela tinha sido chamada à presença do administrador. Esperamos uma hora e pico. Nisto chegou ela e mais a criada. Estávamos sentados no banco do pátio, quando sua mulher deu conosco, e fez-se amarela como esse colete que você traz vestido. Erguemo-nos, fizemos-lhe as nossas cortesias, e disse eu que lhe queríamos uma palavrinha em particular. Mandou-nos subir, e chamou para dentro que nos abrissem a sala de visitas. Entramos, e daí a pouco chegou ela, assim com modos de quem se não importava muito conosco. Sentou-se, e perguntou o que queríamos; não foi isto, amigo Atanásio?
— Tal e qual; é como você diz.
— Eu tomei a palavra, e disse que o meu honrado compadre e amigo velho Hermenegildo Fialho Barrosas nos mandara os três a fim de averiguar a quem a senhora D. Ângela deu um conto seiscentos e cinqüenta mil réis de esmola. E vai ela esteve um quase nada a pensar, e respondeu que me não dizia a mim nem a ninguém o que não tinha dito a seu homem, entende o amigo? Depois, aqui o nosso Atanásio tomou a palavra, e começou-lhe a dar práqui-prácolá, porque torna e deixa, a senhora deve confessar o que fez ao dinheiro, quem lho apanhou, que qualidade de pessoa era; porque as mulheres não podem dispor assim dos capitais dos seus homens, aliás ninguém pode contar com o que é seu; e de mais a mais dar um conto seiscentos e cinqüenta mil réis sem dizer a quem, era caso para desconfiar de certas coisas muito feias, etc., etc., etc. Enfim, o amigo Atanásio batalhou com ela, apertou-a por todos os lados, mas respondeu você, compadre? Não respondeu? Nem ela! Vai depois, o amigo Joaquim falou também com toda a prudência e cortesia, discorrendo a respeito da honra dum homem, e também não fez nada. Enfim, como ela estivesse a ouvir sem responder uma nem duas, eu tomei a palavra, e disse que o senhor seu marido lhe ordenava que se recolhesse sem perda de tempo a um convento. Agora é que são elas! — prosseguiu Pantaleão Mendes batendo nas próprias pernas duas palmadas que soaram como se as ponderosas mãos batessem nas pernas dum Sileno de pedra. — Quem cuida você, compadre, que ela respondeu?! Que...
— Que não ia! — atalhou o brasileiro, careteando com os olhos e boca e nariz uma temerosa carranca de cólera.
— Isso mesmo! — conclamaram os três.
— "Não vou" — acrescentou o relator — "não vou para convento" disse ela. E disse mais: - "Meu marido tomou conta das jóias que eram de minha mãe; que fique lá com o dinheiro dos brilhantes, e que me mande o resto; se quiser mandar; se não quiser, que fique com tudo. Convento é que não". Há de ir! Gritei eu; há de ir, que seu marido
é quem governa na senhora. — "Não vou" teimou ela. Então que quer a senhora fazer, se seu homem a deixar, sem que comer, nem que beber, nem casa? — "Trabalharei para viver; e, se morrer de fome, Deus me dará o céu, porque morrerei honrada e inocente". Foi o que ela me disse, e nós quedamos a olhar uns p'ros outros. Disse-lhe então o amigo Atanásio que dissesse a quem deu o dinheiro, se estava honrada e inocente.
— E vai ela... — acudiu o brasileiro, ansiadamente.
— Respondeu que só se confessava a Deus, que sabia a pureza do seu coração. Não foi isto, Sr. Atanásio?
— Sem tirar nem pôr.
— Tornei a fazer-lhe outra prédica — prosseguiu Pantaleão. — Disse-lhe tudo quanto me lembrou em termos comedidos, não sei se me entende? Não acreditei que ela fosse honrada e inocente por várias razões. Ouviu-me tudo com má cara, e pôs-se de pé, e disse que, se lhe não queríamos mais nada, que podíamos ir à nossa vida. Veja você que atrevida má criação a da tal senhora! Impor deste modo três amigos de seu marido, que iam ali tratar dum negócio muito sério! Coisa assim nunca me aconteceu na minha vida; e só pela honra dum amigo velho é que se pode tragar destes bocados! À vista disto, a nossa comissão estava acabada. Não tínhamos que fazer ali. Pegamos nos chapéus, e nas bengalas, e saímos. Aqui tem o acontecido. Você fará o quiser, compadre.
Hermenegildo começou a passear na sala, jogando de braços por maneira que parecia ensaiar-se com eles para esvoaçar. Os amigos contemplavam-no com umas caras tristes, quando um criado entrou com uma bandeja, na qual transparecia em cristais a opala de antiquíssimos vinhos, lardeados de marmelada, e outras frutas açucaradas que negaceavam o apetite. O bizarro dono da casa convidou os quatro atribulados a honrarem a sua garrafeira, e sem esforço obteve que todos, exceto Fialho, rebatessem os ímpetos da sua angústia com alguns tragos de licor que investe os ânimos de força reagente, e infunde estoicismo nas mais sandias almas.
— Compadre, beba deste — disse Atanásio sobpondo ao nariz do amigo aflito o cálix aromático.
— Tire isso pra lá! — refusou Fialho, sacudindo a cabeça, e fechando os olhos, talvez, à tentação. E resmoneou, entre trágico e cômico:
— Se fosse veneno, metia-o no corpo...
— Não seja asno! — acudiu com hombridade Joaquim Antônio Bernardo — Pois você ainda está nessa!... Matar-se por causa de mulheres! Está a ler o nosso homem! — ajuntou o marido da maiata, gargalhando com aplauso dos circunstantes, que bascolejavam o vinho e o riso entre as mandíbulas. — Engula esse nó que tem nas goelas, e beba, amigo Fialho! Mulheres!... Com que então você, com amigos e fortuna, era capaz de tomar veneno prá mor duma desaustinada de mulher que se portou mal! Ela que se mate, se quiser; e você viva regaladamente com cento e noventa contos que tem. Faça de conta que ela morreu, e trate de arranjar outra...
— Ou duas, que é melhor — emendou Atanásio.
— Ou três, que é mais peitoral — ampliou Pantaleão, pondo a mão suavemente nos gorgomilos por onde ia passando um damasco.
O dono da casa, invejoso do espírito dos seus amigos, acrescentou:
— Quatro, quatro, para não ser pernão... O dado é sete fêmeas para cada macho.
— Macho será você! — replicou Atanásio com a boca a disbordar de marmelada.
Eis aqui o caixilho lutuoso em que enquadrava a agonia de Hermenegildo. Por pouco não descambava em orgia o tribunal de homens congregados para julgar a desonra de Ângela e salvar a dignidade do marido. Falavam todos a um tempo, alvitrando planos tendentes a evitar que a esposa infiel tivesse parte nos haveres do brasileiro. Para poder entrar nesta seção importante com energia, Fialho sopeteou duas bolachas americanas num cálix do de 1805, e pôs a mão instintivamente no bucho aquecido, e capaz de competir em calor com o coração vizinho. Os amigos, fazendo-o beber segundo cálix, aplaudiam o seu triunfo, e juravam que, ao terceiro, a honra do seu amigo ficaria lavada como as goelas.
Após longos debates, em que todos falavam à mistura, convieram em que Fialho, como comerciante que era, se obrigasse por escritura a dividas excedentes ao valor dos seus bens imóveis, e desde logo alienasse os títulos bancários, e se cozesse com o dinheiro. A soberana razão que pôs os cinco alvitristas neste acordo, deve-se a Atanásio, o qual raciocinara desta laia:
— Amigo e compadre Fialho, não há que duvidar: sua mulher tem um homem a quem deu do dinheiro. Este homem há de aconselhá-la a separar-se de você para se dividirem os bens, percebe você? Se você os tiver, que remédio há senão reparti-los? O maior logro e castigo que você pode pregar a ela e mais ao patife é não ter nada que repartir. Hem?
A resposta geral foi um brado uníssono. E logo, no afogo do entusiasmo, sacrificaram a Quarta garrafa e uma bandeja de pastéis de Santa Clara.
— Mas se ela não quiser sair de casa? — perguntou Barrosas, acalmado o barulho.
— Você já não tem casa. A sua casa está vendida. Um de nós, quando o compadre quiser, vai tomar posse, e sua mulher recebe intimação judicial para despejo, percebe você? — respondeu enfaticamente Atanásio.
— Diz você bem, compadre — obtemperou Fialho — que eu tenho procuração dela em branco. Faz-se escritura da venda da casa. E nesse caso é preciso avisá-la que se mude quanto antes. Vamos ver se ela sai ao bem.
— Duvido; - atalhou Joaquim Antônio Bernardo — aquilo é mulher finória e soberba. Sem ser por justiça, não a põe o amigo fora de casa.
Continuaram debatendo questões jurídicas ao propósito, em que as sandices se disputavam primazia, até que, chegada a hora de jantar, Hermenegildo foi hospedar-se em casa do compadre, reservando para a reunião do dia seguinte o plano definitivo.