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Os Brilhantes do Brasileiro/V

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D. Ângela já descia as escadas, encaminhando-se à administração, quando foi intimada a comparecer em juízo. Pela primeira vez, em sua vida de vinte e seis anos, encarava um oficial de justiça, cujo semblante carregado e voz cavernosa a traspassou de susto. O esbirro caminhava de par com ela, dando ao ato uma solenidade policial que fez espanto nos lojista vizinhos. Alguns enviaram os marçanos na cola da pálida mulher de Fialho, e ficaram conjecturando, com variadas hipóteses, por que iria capturada a vizinha.

O administrador, ao ver Ângela, ergueu-se em respeitosa postura, postergando o estilo costumado nesta ordem de funcionários, cujo lance de olhos é sempre fulminante, denotando, nos vincos da fronte severa, a carranca da justiça que os anima e afeia.

Esta desusada urbanidade do magistrado pode explicá-la a beleza de Ângela. A condição dum administrador de bairro, no exercício de suas funções, não há aí compêndio de civilidade que a pula e amacie tanto como uns olhos meigos que obrigam a respeito e amor quando intentam somente pedir comiseração.

A esposa de Hermenegildo Fialho, se não era formosa para causar assombros, tinha direito a ser considerada uma das mais galantes esposas de brasileiros, os quais, naquele tempo, eram os usufrutuários mais ou menos exclusivos das peregrinas burguesas do Porto.

Ângela não era portuense, como oportunamente se dirá; mas, no rosado sadio da musculatura e redondez das formas, pertencia à espécie de beleza sólida e tanto ou que patriarcal que distinguia e avantajava, sobre todas, as senhoras da cidade eterna de há quinze anos para além. E, como vem de molde, deixarei aqui em estilo lamentoso uma saudade à memória daquela raça forte de mulheres quase extinta, e já hoje representada por suas filhas, dessoradas no ambiente impuro dos colégios, e adelgaçadas por uma alimentação francesa que lhes depauperou a opulência do sangue herdado.

Orvalharam-se-me, há dias, estes olhos, quando, passados anos de ausência do grande confluente das famílias do Porto, volvi às praias da Foz, e reconheci a custo as belas damas da minha mocidade. Fora de lisonja, eram ainda grandiosas reminiscências dos esplendores da formosura antiga, sem impedimento da superabundância de tecidos moles que lhes almofadavam as espáduas e quadris: o que, porém, entristecia era ver as filhas destas sadias mães. Britânicamente esgrouviadas, delatando a magreza na aderência dos trajos aos ossos escarnados, as filhas das sebáceas belezas de 1850 assustam a alma devotada mais fervorosamente ao ideal; que a palidez e o osso não é o prisma por onde poetas costumam entrever as deslumbrantes coisas do céu.

Além doutras causas deste deplorável estiolamento da geração nova, insisto nas que já argüi: colégio e alimentação. O colégio em que o espírito atanazado pelo suplício lento da geografia, da história e da gramática, perde a seiva nativa, e refaz-se a expensas do corpo; de maneira que a idéia se enriquece ao passo que o músculo deteriora: questão fundamental de fisiologia, que importa ser estudada nos tratadistas especiais. Quanto à alimentação, é sabido e notório o progresso perigoso da culinária portuense nestes últimos vinte anos. A cozinha tornou-se a antecâmara da sepultura. As intoxicações, causadas pelas especiarias, sobreexcedem a mortandade feita pelo verdete, pelos fósforos e pelo ácido prússico.

Ora é de saber que as mães destas meninas apenas aprenderam o necessário de leitura e escrita para sustentar uma correspondência honesta e parcimoniosa com os sujeitos adequados ao intento lícito da família e da procriação. De espírito não consumiam coisa que lhes fizesse falta no corpo. A natureza florescia e frutificava desimpedidamente. Pode ser que a mulher ignorasse a forma do Globo e a situação geográfica da Abissínia; mas, em compensação, o rosado das faces e o alabastrino dos ombros pareciam estar pedindo asas para disputar formosura a uns anjos que vos encantam por entre as folhagens e festões dourados das catedrais. Razoável ignorância e sólida nutrição explicam a robustez daquela danosa plêiade de querubins portuenses que levavam os olhos do forasteiro. Homem de Lisboa, que entrasse no teatro de S. João, recordava-se de S. Carlos como quem se lembra de ter visto aquelas almas brancas e lívidas das formidáveis visões do florentino; ao mesmo passo que os rostos carminados das filhas do norte realizavam o mais vivaz colorido do pincel flamengo.

Pois saibam que vai volatilizar-se da terra portuguesa essa raça de mulheres que nossos filhos já não hão de ver. Eu não deploro este desaparecimento somente por que me sinto levado na corrente em que derivam as graças plásticas do meu tempo: esse egoísmo não cabe na minha alma. Lamento, sobretudo, a sorte dos meus netos, se eles tiveram bastante espírito para se não contentarem com o amor dos puros espíritos. Volvidos cinqüenta anos, neste andar, se a mulher assim continua a sutilizar-se, a conservação da espécie não me parece provável. A meu ver, o fim do mundo está-se anunciando na delgadeza, secura e descarnamento da fêmea. Virá uma geração em que mulher e homem se defrontem, não já para se quererem e amarem, se não para discutirem igualdade de direitos entre espírito e

espírito, entre osso e osso. Chegado o gênero humano a essa extremidade, acabou-se este Globo, que me parece ser o mais ordinário de todos.

Não era, todavia, assim quando existiam mulheres como a do brasileiro Hermenegildo Fialho Barrosas.

Alta e refeita; cabelos castanhos; testa larga e escantuda; sobrolhos pretos; pálpebras amortecidas com aquele doce cansaço do sono irresistível; faces que as rosas não deixam ser trigueiras, mas que um primoroso apreciador do belo desejaria menos carminadas; beiços arqueados pelo molde da pequena boca, ainda pequena quando o riso mostra o esmalte dos dentes; pescoço alto, quebrando em ondulações de jaspe e torneios de espáduas e noutras ondulações que o cantor da Ilha dos Amores sabia descrever lindamente colhendo nos pomares as suas graciosas analogias: tal era Ângela. Tal era?! Que presunção! Quem soube aí descrever uma beleza mediana por maneira que vingasse retratá-la no espírito do leitor? E que direi da mulher que, à feição de Ângela, sobrelevava às de mais graças o realce dum suavíssimo colorido de candidez em que transluzia alma sublimada e cheia de poéticas tristezas!

Que admira, pois, que o administrador do bairro cortejasse com afável sombra a esposa de Fialho, sendo que, já de antemão, propendia a protegê-la das iras um tanto brutas do mazorral marido?

— Minha senhora — disse ele, mandando retirar os circunstantes, menos a criada — seu marido acusa esta mulher de lhe haver roubado uns brilhantes...

— Meu marido engana-se — interrompeu Ângela. — Os brilhantes, que a minha criada vendeu, fui eu quem os mandou vender.

— Mas a sua criada confessou ter sido ela quem...

— Já sei que ela confessou; mas não creia vossa senhoria senão o que eu lhe digo. Esta mulher está inocente. Pode vossa senhoria mandá-la embora sem receio, que estou pronta a declarar por escrito que mandei vender os brilhantes da minha pulseira.

O funcionário sentia sinceramente não ter mais que fazer neste lance, em harmonia com o código administrativo. Quisera ele, com qualquer motivo judicial, prolongar a sua interferência nos negócios domésticos da linda criatura; mas não lhe ocorria coisa que lhe desculpasse a curiosidade, ou, mais exatamente, a fulminante ternura que o alvoroçara. Não obstante o acanhamento natural destas paixões de assalto, o bacharel, que não era já verde, e podia com a gravidade do aspecto honestar o intento, animou-se a entrar no mistério dos brilhantes com a seguinte pergunta:

— Vossa excelência tem bastante confiança no amor de seu marido?

Ângela pôs os brandos olhos no semblante do interrogador, silenciosa e desconfiada do intento de tal pergunta.

O administrador insistiu, esclarecendo:

— Pergunto eu, minha senhora, se, provada a inocência da sua criada, vossa excelência conseguirá explicar a venda dos brilhantes sem irritar o gênio de seu marido, motivando suspeitas...

Atalhou Ângela:

— Mandei vender os brilhantes para fazer bem a uma pessoa infeliz.

O funcionário receava transpor muito além a baliza do seu ofício, averiguando a espécie de filantropia que uma esposa honesta escondia de seu marido; mas o pecado da curiosidade, desculpado pela beleza da interrogada, esporeou-se até à indiscrição de perguntar-lhe:

— E essa pessoa infeliz é... é pessoa de quem seu marido possa... suspeitar... relações... menos louváveis?

Ângela doeu-se, ou, mais ao certo, pareceu corrida da pergunta, corando, e baixando os olhos silenciosa.

O administrador não instou, já convencido da impureza da caridade. Faltava sólida base para tal juízo; mas a malícia humana, se algumas vezes infama, adivinha outras. Desta vez, porém, o magistrado adivinhava apenas que naquele mistério o coração era grande parte.

— Bem — disse ele, violentando-se a respeitar o segredo alheio de sua alçada. — O que tenho averiguado é que vossa excelência mandou vender os seus brilhantes, e que a criada obedeceu às ordens de sua ama.

— Certamente.

— Pode portanto vossa excelência retirar-se, quando quiser, e a sua criada também. E estimarei — ajuntou ele com intencional mas delicada ironia — que vossa excelência consiga conciliar à sua boa ação a complacência do Sr. Fialho.

Deu ares de o não perceber a pálida esposa do brasileiro. Ergueu-se, e saiu. A criada, limpando as lágrimas, acompanhou-a.