Os Brilhantes do Brasileiro/XXIV

Wikisource, a biblioteca livre


A opinião dos três capitalistas dignamente acatados no anterior capítulo frisava com a opinião geral da sociedade portuense sobre o casamento de Ângela com o cirurgião Costa. As segundas núpcias tinham evidenciado o crime das primeiras. A infâmia de Ângela era indelével, e já pode ser que mais repulsiva, desde que ela afrontou a moral, passando em frente dos amigos de Fialho pelo braço do amante que causara a morte do honrado brasileiro, dizia a maiata, e Francisca Ruiva, e outras Ruivas, que me estão pedindo crônica. E hão de tê-la. A cortesia não se exercita somente com as senhoras honestas.

Francisco José da Costa leu a opinião pública no volver de olhos dos magotes que se arrebanhavam nas praças, e no petulante encarar das mães, que segredavam às filhas a desmoralização da mulher de Fialho. O cirurgião era

alvo da injúria, cuspida nas costas, por seus próprios colegas. Era simples o libelo infamatório: acusavam-no de se ter formado à custa dos brilhante de um brasileiro, roubados por sua mulher.

Ângela encontrou um dia numa algibeira de casaco uma recente carta anônima em que um amigo aconselhava a seu marido que saísse do Porto, se precisava de viver pela arte. E ajuntava ao conselho a causa promotora de tão amigável aviso: É odioso na sociedade o homem que se habilitou para entrar nela com o dinheiro de uma senhora casada. E, se esta senhora roubou, desonrou e matou o marido... mil vezes horrendíssimo!

Ângela da Costa leu e chorou. Depois argüiu-se de fraca, e desmerecedora dos bens com que Deus lhe apremiara a sua paciência nas injúrias.

Guardou a carta, e assim que o marido recolheu, foi para ele risonha, e disse em tom de queixume:

— Por que me não mostraste logo esta carta, meu filho?

— Ah! — acudiu Francisco — Tinha tenção de mostrar-te; mas esqueceu-me a carta e o intento. É o que foi. Mas olha, Ângela, este esquecimento não argüi insensibilidade, nem uma coisa impropriamente chamada cinismo. Sabes o que é? Conformidade, tolerância, e quase uma desculpa à opinião pública.

— Desculpa!... — interrompeu Ângela.

— Sim, filha. Porventura, tu já te justificaste? E eu já me justifiquei? Não. A sociedade sabia que uma mulher casada vendeu uns brilhantes; que o marido dessa mulher a expulsou; que esse marido morreu; que um homem, seis meses depois, aparece casado com a viúva do roubado, do assassinado a punhaladas de desonra... Que queres, Ângela? Quem ousará defender-nos?

— Mas faz tu pública essa paga assinada por...

— Deus me livre, minha louca. A quitação foi escrita e assinada para que soubesses que não devias nada a teu marido, e que a roubada em tuas jóias tinhas sido tu. Satisfações à sociedade? São justas, quando ela não condena antes de ouvir os réus, quando não escarra nas faces das vítimas, antes de examinar os vincos por onde passaram as lágrimas. A nossa causa de moral pública está perdida; não obstante, a reabilitação davam-ta os juizes, se houvesses herdado os duzentos contos de Fialho. Os que me denigrem o caráter, se eu a esta hora fosse o marido da viúva com duzentos contos, chamando-me "tratante feliz", sentar-se-iam lisonjeados nos coxins das minhas cadeiras, e pediriam aos meus lacaios, com urbanidade, o favor de me entregarem os seus bilhetes de visita. Mas, filha, esta soledade que mora à volta de nós é o cordão com que a mão da Providência abaliza a felicidade de duas almas que não podem corar uma da outra. Quando eu desejar mais do que tenho, quando invejar felicidades que não sei imaginar, Ângela, hei de pedir-te perdão de ter sido o mais vil dos teus inimigos.

Apertou-o Ângela com arrebatamento nos braços, e murmurou:

— Se tu quisesses...

— O quê, minha filha?

— Viver numa aldeia, entre umas serras, sozinho com a nossa Joana, esquecidos, e tão amados...

— Sim, quero, minha providência... Adivinhaste a minha aspiração de não sei quantos anos...

— Eu sei, meu amor. Li-a nos teus livros, e que fantasias eu criava para completar as tuas!... Se eu tivesse filhos, e lhes pudesse incutir a certeza de que todo o seu futuro e mundo era o espaço contido nos horizontes das nossas montanhas...

— E não sabes tu, Ângela — volveu jubilosamente Francisco — não sabes que eu careço de ser cirurgião? Que todas as portas se me fecham aqui? Não cuidava que eu viesse quase pobre do Brasil? Vim, minha filha, vim. Contava com muito se lá permanecesse, mas a minha riqueza eras tu. Apenas tenho a subsistência segura de dois anos nesta mediania em que tu fazes milagres de abundância. Mas o futuro...

— Pois então para onde iremos, Francisco? Tenho pressa; quero ir amanhã, hoje, já...

— Olha numa terra, que chamam Barroso, não há facultativos. O sítio é triste, é montanhoso, as casas são colmadas, os alimentos grosseiros, os frios do inverno glaciais, e os ardores do estio queimam as urzes e secam as fontes. Queres ir para Barroso?

— E tu? Irias tu contente para aí?

— Vou.

— Vamos, filho — exclamou ela entusiasticamente!

— Assim que a doença ou a tristeza te ameaçar, passaremos a sítios mais amenos, iremos de aldeia em aldeia, até que uma casinha entre duas árvores te convide a viver e morrer nela.

Dias depois, Francisco Costa, o grande operador que honrara as escolas da sua pátria no Brasil, aceitava o partido de um conselho chamado Boticas, em terras de Barroso.

Vitorina acompanhou a ditosa família. Ao vizinharem da terra tão selvàticamente pintada por Francisco na imaginativa da esposa, a rústica expectativa demudou-se em alegres várzeas, terras colmadas de arvoredos, regatos que vertiam murmurosos por entre outeirinhos tapisados de boninas. A casa destinada ao cirurgião de partido era telhada, e olhava sobre uns almargeais por três janelinhas de portas envidraçadas. A horta supria mais

substancialmente a falta de jardim, e em vez de musgos e trepadeiras floridas, verdejavam as couves galegas e trepavam florentes os feijões carrapatos — espetáculo bucólico de que muito se deliciava Vitorina, recordando a casinha rural de seus pais.

Ângela exclamava com as mãos postas:

— Isto é tão lindo! Se haverá uma alma triste neste povoado! Que miserável e escuro daqui se me figura o que deixamos!...

Joana cuidou em alindar a casa com a modestíssima mobília em que o município se mostrara generoso para granjear a estima do facultativo.

Ao outro dia, a esposa do boticário com sua cunhada, esposa do regedor, e as autoridades de Monte Alegre com suas famílias, visitaram o cirurgião, que ali era graduado em doutor.

De tudo isto entreluzia à cismadora Ângela um viver antigo, santa singeleza de costumes e dulcificação de almas que para ali viessem acerbadas do viver das cidades.

Aquele silêncio de terra e céu era-lhe o ambiente lúcido das suas esperanças. Não ousara imaginá-las tão acordes com a sua índole, vendo-se ligada ao esposo querido que refletia a felicidade de todos sobredourando a sua.

Começou o doutor a curar, e a voz pública a pregoar milagres. Achaques inveterados, aleijões, nevralgias, que tinham resistido aos exorcismos, espinhelas caídas e nunca levantadas, todas as castas de enfermidades sem cura encontraram remédio ou alívio.

O assombro, porém, excedeu todo encarecimento quando o doutor chamou um cego mendigo, e depois de operá-lo e tratá-lo em sua casa, o mandou trabalhar com vista no seu antigo ofício de pedreiro.

Rodeavam-no as multidões de parentes e amigos perguntando todos a um tempo se os conhecia.

Convencidos de que o cego de vinte anos voltara a ver os filhos que deixara no berço, o doutor avultou-lhes como entre milagroso, ali mandado pela Senhora da Saúde, adorada com muita fé na sua igreja.

Alargou-se a área da clínica do facultativo a seis e mais léguas em redor, por caminhos precipitosos à orla de despenhadeiros.

Mas o inverno chegou.

Os pegões do vento outonal abateram quando as neves de novembro começaram a coroar os espinhaços das serras, e a sobrepor as suas camadas endurecidas pelo gear das noites, sobre as veredas de cabras que ligavam uma aldeia a outra. Sem impedimento dos rogos de sua família, Francisco Costa ia sempre que era chamado. E, quando transpunha as raias do concelho, a visitar doentes, em noite tempestuosa, por os mesmos caminhos já famigerados na vida de fr. Bartolomeu dos Mártires, e recebia duzentos e quarenta réis de recompensa, Francisco depunha no regaço da esposa o seu bem suado ou bem tiritado óbolo, e dizia a sorrir:

— É o dinheiro de dois operários: tanto labutou o lavrador para o tirar da terra, como eu para lho arrancar do cantinho da arca. Se eu lhe pedisse mais, o doente preferia a morte.

O que muito supria na sua receita era a arte operatória, exercitada longe, mormente as operações de catarata, que já tinham levado seu nome ao território espanhol.

Então aconteceu, duas vezes, no primeiro ano, Francisco Costa entesourar na caixa econômica de sua mulher uma dúzia de peças, com esta recomendação dita em gracejo:

— Vai guardando o patrimônio do nosso primeiro filho.

Ângela estremeceu da felicidade que já lhe estremecia no seio adiantados sinais de maternidade.

— E o nosso filho que será neste mundo? Que destino lhe hás de dar? — perguntou a filha do general Noronha.

— Visto que não é provável ser ele o vigésimo senhor do paço de Gondar — respondeu a rir Francisco Costa — será artista.

— Artista!...

— Artífice é mais português. Terá uma profissão que lhe abaste à sua subsistência e à de uma família criada com pouquíssimas necessidades. Não aprenderá a ler, para crer; não saberá nada da ciência humana para entender bem o Padre Nosso, que é a ciência divina baixada até ao homem; dormirá o sono pesado do operário para não sonhar as quimeras que me fizeram a mim o motor dos teus longos infortúnios, meu pobre anjo!

— Mas hoje, filho!... — atalhou ela. — Não estou eu esquecida de tudo!... A compensação não é tão superior ao que padeci? Se Deus me der filhas, a felicidade que eu peço para elas é esta minha...

— Mas padeceste muito, Ângela... E as tuas filhas poderão ser felizes como tu sem terem padecido... — E concluiu, acariciando-a: - É preciso que elas não saibam ler Sonhos nem escrever Esperanças...