Os Brilhantes do Brasileiro/XXV

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Os olhos do general Noronha cegaram inteiramente. Os especialistas de Paris tinham capitulado de catarata negra a próxima cegueira, muito semelhante nos sintomas à gota serena.

Declinava para os setenta anos o inconsolável cego. Queria voltar a Paris, esperançado na operação; mas escasseavam-lhe forças. A velhice deste homem disciplinado por pesares de toda a espécie, deste o terrível só até ao excruciar do remorso, causava a um tempo compaixão e medo. A caquexia lenta mirrara-o até lhe secar a pele sobre a aridez dos ossos; e os glóbulos dos olhos guinavam pardacentos nas órbitas descarnadas à procura dum raio de luz.

Os parentes e amigos que ele havia repelido não o procuravam nos derradeiros anos, porque sabiam que o testamento estava feito. Os legatários, entregues à sáfara da sua lavoura, nem sequer averiguavam se o senhor do Paço de Gondar era morto ou vivo. Ninguém portanto o visitava. O velho cheirava a cadáver, e o lastimar-se dum cego exasperado afugentaria até a comiseração dos herdeiros.

O mordomo, João Pedro, é que, dia e noite, lhe dava o braço ou vigiava o ansiado dormitar. Chorava, quando o via de súbito parar, voltados para o céu os olhos, e clamar: "Meu Deus, meu Deus, dai-me a minha vista, ou matai-me!"

E, em uma dessas apóstrofes à Providência divina, que lhe visitara alfim a escuríssima cegueira de alma e corpo, João Pedro disse:

— Fidalgo, vossa excelência, se quer que Deus o escute, siga a lei cristã: tenha pena de sua filha, perdoe-lhe pelo divino amor de Deus. Pode ser que depois a misericórdia de Jesus Cristo se compadeça de vossa excelência.

— E quem te disse a ti que ela era minha filha? — repetiu o cego a pergunta feita um ano antes.

— Disse-mo vossa excelência, quando ela o visitava; muitas vezes me escreveu lá para o Paço: "Manda-me boa fruta que tenho cá minha filha". Há de perdoar-me, fidalgo; mas vossa excelência só deixou de lhe chamar filha depois que ela quis casar com um homem mecânico...

— E se perverteu... — atalhou rancoroso o cego.

— Mentiram-lhe, fidalgo; ela não praticou ação má senão a de querer ser esposa dum pobre.

— Não sabes nada, pedaço de asno. Tenho ali uma carta de minha irmã Beatriz.

— Bem sei, meu senhor.

— Sabes? quem to disse?

— A Sr.ª D. Ângela.

— Quem lha mostrou?

— Viu-a ela, quando escreveu a vossa excelência uma carta sobre a sua escrivaninha. Essa carta diz que os criados da senhora sua irmã, a quem Deus perdoe, tinham arrancado a fidalga dos braços do tal filho do sacristão. Era uma mentira de clamar vingança aos anjos. Sua excelentíssima filha, quando, desesperada, procurara o tal homem, não o encontrou, tinha saído para o Porto.

— Quem to contou?

— Vitorina, que saiu de Gondar com a Sr.ª D. Ângela, quando tinha dois anos; o próprio capelão, e todos os criados da Sr.ª D. Beatriz, que lá está onde as contas são apertadas.

— Por que não disseste isso até hoje?

— Porque vossa excelência se desesperava assim que eu começava a falar na Sr.ª D. Ângela, e depois...

— Depois o que?... Não respondes?!

— Vossa excelência começava a dizer que via a mãe da menina, e a sacudir os braços que me fazia terror.

— Está bom! Está bom! — murmurava guturalmente o velho, procurando com as mãos trêmulas a boca do criado.

E recaía na concentrada prostração que durava horas e dias.

Uma vez, o general acordou de sobressalto, por noite fora, chamou João Pedro com aflição, e disse-lhe:

— Quem anda na casa?

— Ninguém, senhor... Serão os ratos que os há nela de tamanho de leitões.

— Não mangues comigo, João!

— Ó fidalgo! Eu mangar com vossa excelência!...

— Aí anda gente... os passos e a voz são de Ângela...

— Deus permitisse que fosse ela... O senhor general estava agora sonhando, e às vezes falava em sua filha.

— Falava?

— Sim, meu senhor.

— Então era sonho...

— E, se ela lhe aparecesse... se vossa excelência a visse de repente...

— Não vês que estou cego... Cego, meu Deus!

— Pois sim; mas se vossa excelência lhe ouvisse a voz, e lhe deixasse beijar as mãos...

— Tu quando a viste?

— Eu, senhor? Vi-a há oito anos, quando vossa excelência estava em França, e me mandou entregar-lhe o cofre dos enfeites.

— E estava aonde?

— Perto da vila de Barrosas, e casou no dia em que lá cheguei... Eu já contei a vossa excelência isto...

— Mas ela escreveu-me há coisas de ano e meio. Onde estava então?

— No Porto.

— E nunca mais soubeste dela nada?

— Não, fidalgo... Isto é... — tartamudeou o mordomo — quero dizer...

— Soubeste, ou não?

— Ela a mim nunca me escreveu; mas, cá em Ponte, ouvi dizer que o marido a deixara e fora para o Brasil.

— Por quê?

— Não sei... — responde pronto João Pedro, como quem esperava a pergunta, e tencionava esconder os boatos desairosos para a filha de seu amo.

— Não sabes? Alguma nova desonra!... Quem te contou isso? Quero saber...

— Não me recordo a quem o ouvi... Parece-me que foi um padre que já morreu.

— E que é feito dela? Sabes?

— Não sei, meu senhor.

— Quero que saibas... Vai saber isso ao Porto... Indaga por lá.

— E quem há de ficar à beira de vossa excelência?

— Um criado qualquer. Vai já hoje, assim que amanhecer... Sonhei que a via... Ver, meu Deus, ver!... Sonhei que a via... E o meu coração estava alegre... Procura-ma, procura-ma, João!

Seis dias depois, o mordomo voltava triste do Porto. As inculcas lançadas informaram-no de que Ângela, coberta de opróbrio e justo desprezo de todo mundo, se casara com um cirurgião, por amor de quem o marido morrera apaixonado; e ninguém sabia dizer, na vizinhança da casa onde ela habitara, o destino que levaram com certeza; havia, no entanto, quem afirmasse que tinham ido para o Brasil.

Das informações colhidas, João Pedro disse simplesmente que a Sr.ª D. Ângela, viúva do primeiro marido, casara segunda vez, e saíra ou para o Brasil ou para onde se não sabia.

E o mordomo, vendo contrair-se de angústia o rosto cavado de seu amo, chorou de compaixão dele, e de pesar de não ter encontrado Ângela.

— Agora, não se aflija, fidalgo... — disse com a voz quebrada o extremoso servo.

— Deus — soluçou o ancião — despertou-me o desejo de a ter comigo para me redobrar o martírio!... Seja feita a vossa vontade, Senhor!...