Os Brilhantes do Brasileiro/XXIX
Estão prestes o operador e o ajudante.
Ângela, baldado o esforço que empregou para assistir, afastou-se, pálida e tremula, para o seu oratório.
Joana e Vitorina assistiam para coadjuvar o operador.
O conde treme.
— General! — disse Francisco Costa. — Quem se enrostou com os esquadrões de cavalaria de Chaves imperturbável, não desmaia diante duma lâminazinha de aço.
— Tremo de medo; mas não é medo do golpe. Se depois de me rasgar as névoas, doutor, eu não vejo mais que trevas!...
— Será ver o que ninguém viu, senhor conde. Ver trevas, é vista dupla, que eu não prometo dar a vossa excelência. Basta que veja a luz — replicou jocosamente o operador. — Não obstante, eu encontrei essa imagem em Milton, que tinha a autoridade de cego.
O operador escolheu o método da extração.
Atravessada com o queratótomo a córnea transparente, o humor cristalino, cuja opacidade impedia a impressão de raios visuais, depois de comprimido o globo brandamente, destacou-se, e saiu no gancho de Wenzel.
Terminada a operação, o conde viu a mão do operador, tomou-a nas suas e beijou-a.
— Vi! Meu Deus! Vejo o seu rosto, Sr. Costa — exclamou Simão de Noronha. — Aqui estão duas senhoras, não estão?...
— É minha irmã e Vitorina.
— E sua senhora?
— Está preparando compressas.
— Eu queria vê-la...
— Noutra ocasião. Vamos já colocar os apósitos.
— Já?! Mais quantos dias cego!
— Quarenta e oito horas em que vossa excelência, pensando nos cegos irremediáveis, cuidará que as horas são instantes.
Conduzido para o leito o operado, em quarto quase de todo escuro, assentaram-lhe chumaços molhados sobre os olhos cingidos de ligaduras.
Terminado o curativo, Ângela voltou, apertou a mão do pai, e disse estremecidamente:
— Parabéns para vossa excelência e para nós, senhor conde!
— Não tive a fortuna de vê-la, Sr.ª D. Maria!... — queixou-se o velho.
— Estava lá dentro...
— E não esteve aqui enquanto me operaram? Não a senti...
— Estava pedindo a Deus por vossa excelência.
— É um anjo, minha querida senhora! Esta casa... toda ela é um santuário... Olhe que vi seu marido. Já o conheço. Tem um belo aspecto! É trigueiro e muito barbado, não é?
— É, sim, senhor conde.
— Sua cunhada não a divisei bem; mas pareceu-me banca e magra, não é?
— É, sem dúvida.
— A criada conheci que era velha; mas estava encoberta pela Sr.ª D. Joana...
— As velhinhas escondem-se — ocorreu a jovial Vitorina. — é o que faltava aparecer uma velha carcomida logo de pancada a um senhor que não via criatura viva há dois anos?
— Pois quero e desejo vê-la, e muitas vezes, Sr.ª Vitorina. Tem-me tratado com muito amor. Já tive outra criada com o seu nome. Onde isso vai! Há bons trinta e dois anos que a não vejo!...
— Já deve ser da minha idade, então... — observou a velha, trejeitando para as damas.
— Sim, se vossemecê anda pelos setenta...
— Setenta! Deus nos acuda!... Pois eu tenho lá setenta anos!
— Então quantos tem vossemecê?
— Fiz sessenta e nove há seis meses.
— Ah! Então recolho o meu juízo! — casquinou o conde. — Está vossemecê muito nova, Sr.ª Vitorina. Cuidado com as ilusões da mocidade, menina!
Riam as senhoras, e Vitorina continuou a provocar as jocosidades do conde, que eram ouvidas com admiração, mormente pela filha, que, nos raros dias de convivência com seu pai, o não vira sorrir uma vez só.
Quando, ao cair da tarde, se anunciou a chegada de João Pedro, saiu a encontrá-lo no quinteiro Ângela.
O velho embasbacou, e encostou-se à mula, de que desmontara, porque as pernas lhe faltavam.
A filha do conde de Gondar em poucas palavras elucidou-o sobre o que lhe convinha fazer para que a cura de seu pai não fosse perturbada por alvoroços de espírito ou nevralgias que lhe irritassem os olhos.
Logo que o ensejo se apropositou, Francisco Costa, estando já precavido o escudeiro, volveu a falar ao conde no seu intento de procurar Ângela.
— Ai está João Pedro que dirá a vossa senhoria o nome do homem com quem minha filha foi casada.
O escudeiro custava-lhe a conter em posição sisuda as mandíbulas abertas pelo riso, quando respondeu, voltado para Ângela:
— Chamava-se Hemorragilde.
Abafaram todos o froixo da gargalhada, tirante o conde, que murmurou:
— Vejam que nome! Parece gótico; mas ainda parece mais nome de moléstia... Hemorragilde!...
— Se o senhor conde permitir — disse o cirurgião — vai João Pedro ao Porto com cartas minhas, visto que o dispensamos aqui, e pode lá fazer bons serviços ao nosso intento.
— Pois que vá onde vossa senhoria ordenar — anuiu o conde.
— E, segundo as notícias que nos for comunicando, vossa excelência ordenará o que há de fazer-se. Conjecturemos que ele encontra a Sr.ª D. Ângela. Que manda o senhor conde que ele diga a sua filha?
— Que imediatamente venha para minha companhia — deliberou sem detença o general — que não espere novas ordens; que se recolha à minha casa de Ponte, e espere por mim... e por todos nós... porque vossa senhoria e estas senhoras iriam comigo, não é verdade? Iriam ser testemunhas da felicidade que me começou no seio caritativo e amoroso desta família...
— E se sua filha, senhor conde, quisesse vir aqui mesmo encontrá-lo, não seria isso antecipar-se a ela o júbilo de lhe beijar as mãos?...
— Sim...; mas eu queria poder vê-la... Se ela viesse enquanto dura esta escuridão, seria grande e dolorosa a minha ânsia...
— Concordo, e aconselho até que ela venha depois que vossa excelência estiver convalescido — obtemperou Francisco.
— Mas o doutor parece que dá a vinda como possível! — admirou o conde.
— Pois não é possível?! Afigura-se-me até provável... O impedimento único seria ter ela morrido. Se existe, hei de descobri-la mediante as diligências dos meus amigos. Encontrada ela, tem vossa excelência a sua filha nos braços.
— E, se ela mos repelisse!... — conjecturou o velho, quebrado do vigor com que estivera dialogando.
— Seria incrível!... — objetou o marido de Ângela.
— Eu também a repeli... — contraveio o conde.
— Tão justificados seriam os motivos...
— As calúnias, e mais que tudo... a terrível doença da minha alma... a peçonha que ma queimava... a desesperada tristeza que me ia levando à demência, e me deixou o pior... que foi a vida, a consciência dos meus crimes encadeados uns noutros, como os fuzis do grilhão que amarra o criminoso ao cepo... Aí vem o meu demônio... — disse reconcentrado o conde...
— Mal vamos assim! — acudiu o facultativo, tomando-lhe o pulso. — Senhor conde, domine-se, arranque-se dessas intermitentes, pelo menos enquanto não estiver inteiramente restaurado.
— Senhor conde! — rogou ternissimamente Ângela — peço-lhe pelo divino amor de Deus que não se aflija... Diz-me o coração que sua filha o ama, e lhe dará anos de muita alegria e sossego de alma. Verá que não me engano o pressentimento... O seu mordomo vai amanhã para o Porto. Daqui a oito dias pode muito bem acontecer que sua filha aqui esteja, a pedir-lhe perdão, se caiu nalgum erro...
— Não caiu! — exclamou o velho. — Precipitaram-na; fui eu, foram todos os que deviam ampará-la com o seio, com o coração, se ela pendesse a cair...
— Pois bem, senhor conde; melhor assim: não terá vossa excelência dificuldade em perdoar-lhe, nem ela ousará acusar seu pai nem seus parentes.
— Se ela tivesse no seu coração como está na sua voz, minha senhora! — murmurou o velho, estendendo-lhe a mão para lha apertar em impulsos de reconhecimento...
João Pedro foi para casa dum lavrador da freguesia, levado pelo doutor sob qualquer pretexto, e ai esperou as ordens, contentíssimo de ter parte no feliz desfecho que prometia o enredo da reconciliação entre a fidalga e seu pai.
Enquanto corria o tempo necessário a dissimular a ida do mordomo e vinda da resposta, examinou Francisco os olhos do conde, e exultou. A cicatrização era excelente. A fotofobia era quase nula. O velho já via através de lentes escuras graduadas as miudezas dos objetos, bem que a insistência lhe desse vágados e ligeiras dores. Ainda assim, Francisco ordenou que continuasse a escuridade no quarto.
Entretanto, lamentava o conde que D. Maria estivesse na cama sofrendo uma impertinente enxaqueca, ao tempo que ele tirara o apósito; e que as trevas do quarto fossem tantas que ele não podia destacar-lhe as feições, porque via tudo a vulto.
Passados os dias convenientes à simulada indagação, Costa, fingindo alvoroço, disse ao conde:
— Alvíssaras! — Aqui está carta de João Pedro para vossa excelência.
— Alvíssaras! — disse o conde. — Pois quem sabe o que aí vem?
— Se ele não encontrasse boas novas, é natural que voltasse logo, ou escrevesse mais tarde.
— Leia, leia então, meu amigo.
A carta dizia que a Sr.ª D. Ângela, no dia imediato, saía para as Boticas, com seu marido e filho. Acrescentava que a fidalga vivia muito pobre, e casada com um plebeu.
— Ela será rica, e ele nobre... — murmurou o senhor do paço de Gondar.
— Todavia — observou o filho do sacristão — mais grato seria a vossa excelência que ela houvesse casado com homem de geração histórica.
— Todas as gerações são históricas, Sr. Costa — acudiu o conde. — A geração da plebe francesa da minha mocidade é a mais histórica de quantas houve. Está enganado, doutor, comigo, pelo menos. Eu casei com uma pastora dos rebanhos dos meus caseiros. Chamava-se Josefa Salgueira. Amei-a como se ela descesse dum trono para me receber. Ao mesmo tempo que a pastora morria de dor por me ver ferido, a imperatriz da Rússia era uma devassa, e a rainha de Portugal era... a esposa do Sr. D. João VI... Vamos ao caso: vem minha filha? Dê-me agora os parabéns, e deixe-me apertar-lhe a mão de profetisa, Sr.ª D. Maria...
— Vai ver a sua filha... — balbuciou Ângela. — Que transportes de santa alegria vai ter a ditosa senhora!...
— Que tem de mais a mais um filho para brincar com o Antoninho... — acrescentou o general com pueril contentamento, rindo com estranho gesto. — Ó doutor, nesse dia dá-me luz em abundância? Entra o Sol neste quarto?
— Sim, senhor conde. Nesse dia, luz à discrição!