Os Brilhantes do Brasileiro/XXX

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E o dia chegou.

Ângela, de manhã, pediu vênia ao conde para ir esperar a Monte Alegre sua filha.

— É de grande honra que ambos recebemos — agradeceu o velho — mas, minha senhora, peça a seu marido que me tire dos olhos estes veuzinhos escuros, e consinta que entre uma réstia de sol à chegada de Ângela.

— Eu vou recomendar o seu justo pedido, senhor conde — disse Ângela, e simulou sair de casa.

Francisco substituiu os vidros por outros mais claros nos olhos do convalescente e mandou abrir as janelas da saleta, por feição que o interior da alcova recebesse bastante luz.

O rosto do velho banhara-se de consolação, vendo distintamente Joana, e o menino que lhe brincava com os óculos, pondo-os no próprio nariz e chamando-se papão.

— Venho ajudá-lo a vestir, senhor conde — disse o facultativo. — Pode vossa excelência passar da cama para a preguiceira, se lhe apraz.

— Se eu pudesse... Mas as pernas, doutor?

— As pernas hão de ser medicadas com bifes e vinho do Porto. Queremos exercício, apetite, e bom estômago. Toca a levantar, meu general.

Ergueu-se trôpego e amparado a Francisco. Depois de vestido, olhava para o sobrado, e chorava de alegria, dizendo:

— Já vejo o chão que piso... Saí da sepultura...

— Ora, senhor conde — tornou o marido de Ângela, depois que o reclinou no canapé. — Vossa excelência deve preparar-se para ver sua filha, como pai, mas também como homem. Se receia grande abalo, predisponha-se para rebater as expansões nocivas à sua compleição debilitada.

— Não há de haver dúvida. Já estou preparado... Sinto o coração; mas coração de setenta anos.

Anunciou-se a chegada de Ângela.

O conde sentou-se com esforçado ímpeto.

— Então! — acalmou Francisco. — Não quero grandes movimentos, senhor conde!...

— Oh, doutor? Não me deixa ser ao menos pai! — sorriu o velho.

Ângela entrou vestida como em casa, apenas coberta duma capa de pano preto. Acercou-se do pai, ajoelhou, e abraçou-o pela cintura. O conde inclinou a face para a cabeça dela, e murmurou:

— Deixa-me ver a tua face, minha filha.

Ângela encarou-o entre risonha e lagrimosa. O velho contemplou-a com a fixidez duma vista débil, beijou-a na fronte, e disse:

— Benvinda sejas!... És a minha pobre Ângela!... Perdoa à tua fatalidade e à minha... Levanta-te, e senta-te aqui ao meu lado.

Joana, Vitorina e João Pedro choravam soluçantes.

— Por que chora esta gente? — perguntou o general.

— A satisfação de ver Deus neste lance — disse Francisco.

— Então, alegrem-se! — tornou o conde. — Ângela, que é de teu marido e teu filho.

— Meu marido está aqui... — e apontou Francisco.

— Onde? Quem? teu marido!... Quem é?

— Eu, senhor conde! — disse Costa, inclinando-se a beijar-lhe a mão. — Antoninho, vem cá...

A criancinha correu aos braços do pai, que o levantou aos lábios do avô.

— Deixem-me pensar nisto que é um sonho, meu Deus! — volveu o general. — Tu, Ângela... és a esposa... de Francisco Costa...

— Sou, meu pai..

— Estou, portanto, em casa de minha filha... do meu genro... És o anjo que me velavas de noite... és, minha Ângela?... Aqui me trouxe Deus, a restaurar a luz da minha alma, e a descerrar as trevas dos meus olhos para vos ver, meus filhos!

— Senhor conde — disse o cirurgião muito comovido. — Eu queria evitar-lhe lágrimas; mas não sei se me enganaria, porque também comigo me enganei. O que mais me comove é pensar eu que vossa excelência tardou tanto em procurar o puro e santo coração de Ângela. Eu ofereço a vida de meu filho a Deus que me castigue o temerário juramento: juro por Deus que não há uma nódoa na alma de sua filha, senhor conde. Eu, marido dela, defendo-a, perante seu pai, porque ninguém mais se erguerá contra o mundo que a calunia. Eu, operário pobre, cirurgião nestas pobres montanhas, não encareço as virtudes da filha do fidalgo abastado: exalto-a, porque é ela a companheira da minha vida honrada, será sempre a graça divina que cobre do ouro da alegria estas paredes nuas, este desaconchego de regalos, isto que vossa excelência já vê com seus olhos. Não demorarei a explicação do processo um pouco estranho por que vossa excelência veio a encontrar Ângela, podendo desde que aqui entrou saber que era ela quem passava as noites à cabeceira de sua cama. Eu receei que o senhor conde desprezasse ainda sua filha quando entrou nesta casa. Conheci que felizmente me enganara; mas sobreveio o medo dos incidentes fatais da operação, quando grandes excitações morais implicam a placidez do curativo. Quis preparar o seu ânimo com delongas; preveni-lo de hora a hora para receber sua filha sem surpresa. Esta de ser ela a esposa do seu facultativo cuidei eu que seria grata a vossa excelência. Não será de vexame ao nobre conde que o marido de sua filha seja o cirurgião que teve a ventura de lhe abrir os olhos para que visse a criatura feliz que primeiro trilhou todas as vias dolorosas por onde pode ir a honra de uma mulher até ao calvário, em que o mundo costuma crucificá-las na ignomínia. Ela aí está, senhor conde, a sua filha Ângela. Ainda vossa excelência não viu ao lado dela a sua antiga criada que, desde os dois anos, a acompanhou, e lhe matou a fome com os cordões ganhados no serviço de seu pai e sua tia.

— És tu, Vitorina! — exclamou o conde. — Pois tu vives, mulher, e não abraças o teu amo!

— Não, que vossa excelência chamou-me velha, e fez rir as minhas amas, a zombar de mim!

E, dizendo, abraçou-se-lhe aos joelhos, e beijou-lhe as mãos, lavando-lhas de lágrimas.

Nesse lance anunciou-se o primo Pizarro, com outros fidalgos flavienses que pediam a honra de ser apresentados ao senhor conde de Gondar.

— Que entrem — disse o general. — Mando como em casa tua, minha Ângela.

Pizarro foi com os braços abertos felicitar o velho que exclamou:

— Saiu-me a cara que eu imaginava, primo Pizarro. Parece-se bastante com o general seu tio. Aqui estou com os meus olhos envidraçados; mas conheço tudo que Deus criou, e já sei que hei de ir vendo terra até ela se abater debaixo dos meus pés. Apresento a vossa excelência, e aos seus amigos que me honra, Ângela da Costa, futura condessa de Gondar.

— Quem? — inquiriu o pávido fidalgo.

— Ângela, minha filha, casada com meu genro, o Sr. Francisco José da Costa. Agora, minha querida Ângela, se crês que Deus tem na terra os seus agentes para os grandes fins de premiar ou punir, vai abraçar aquele cavalheiro que foi o mensageiro providencial que me trouxe aqui.

Ângela inclinou-se nos braços respeitosos de Pizarro, que, mal cobrado do seu assombro, disse:

— Sr.ª D. Ângela, vejo que Deus tomou a si o encargo de a vingar da sociedade.

Conclusão

Restaurado de forças físicas à proporção que a alma lhe remoçava, o conde ordenou, em tom militar, que toda a sua família das Boticas se transferisse para Ponte do Lima. Francisco José da Costa contrariou seu sogro, alegando que se tinha contratado por tempo de três anos com o município, e não podia deixar os seus doentes, sem que o seu lugar estivesse ocupado. O conde tais artes usou, de inteligência com Pizarro, que dias depois um médico, com vntajosíssima oferta pecuniária do conde, se oferecia a substituir Costa.

Mudou-se a família para Ponte.

Dias depois, Ângela era agraciada com o título de condessa de Gondar, e seu marido participante do título, em duas vidas.

Francisco Costa, lendo o ofício do ministério do Reino, dirigiu-se ao sogro, e disse risonho:

— Um operador de cataratas conde! Meu querido amigo! Não queira vossa excelência afugentar de mim os doentes pobres que precisam dos meus serviços! Os enfermos indigentes que tem um colmeiro de palha como leito não ousariam chamar à sua caverna um conde. O pobre que se chama simplesmente Francisco folga e alegra-se de poder chamar Sr. Francisco ao irmão que lhe faz a receita. O título que vossa excelência pode sem custo e com muitíssimo proveito dar ao marido da condessa de Gondar, é permitir que ela pague do seu bolsinho ao boticário as receitas que eu mande aviar, e dar-ma também como auxiliar na cura dos pobrezinhos que adoecem de fome e frio.

O conde de Gondar viveu dez anos a mais ditosa existência de velho. Ainda viu seis netos à volta dele, perfumando-lhe de primaveras aqueles dez invernos cheios de sol.

Morreu aos oitenta, encostando serenamente a face sobre o braço da filha, que lhe dava a oscular a Cruz de Cristo.

Um ano antes tinha descido abençoada à sepultura aquela primorosa Vitorina, legando os seus cordões restaurados, e um bom casal que lhe dera Ângela à filha mais velha de sua ama.

Vivem atualmente a condessa de Gondar, o marido, que ficou sempre Francisco José da Costa, seis filhos, o mais velho dos quais, aquele Antoninho, nascido nas Boticas, é o mais requintado aristocrata do Minho, e aturde os seus condiscípulos da Universidade contando-lhes legendas do Paço de Gondar, de que ele vem a ser o vigésimo senhor. A legenda que ele ignora é a de sua avó D. Maria d’Antas.

Ângela tem hoje quarenta e nove anos. As rugas não ousam ainda combater a mocidade renascida naquele coração. Cinco meninas formosas que a seguem à missa passam pelo desgosto de ouvir dizer:

— A mãe é melhor que as filhas.

Quem ainda vive, a competir com os velhos robles do Paço de Gondar, é João Pedro, que pediu a sua reforma, e está feitor nominal do condado.

Na véspera de Natal vem sempre a Ponte consoar com "a sua gente", diz ele. E depois que as rabanadas e o Porto lhe aguçam a memória, costuma dizer todos os anos, a sós com Ângela:

— Ó senhora condessa!... mal diria eu quando a vi casada com aquele Hemorragilde!...

Ângela, com quanto já conheça, de antemão, o gracejo obrigado da noite de Natal, aplaude sempre com uma risada e dois piparotes na orelhas musgosas do macróbio.

Epílogo

Concluído o livro, suja-se uma verdadeira lauda com as escavações que mandamos fazer nos pântanos desta história.

Descobriu-se através de fétidos esgotos, que os três amigos e herdeiros de Hermenegildo Fialho de Barrosas ainda respiram a medram.

Atanásio José da Silva é barão da Silva.

Pantaleão Mendes Guimarães é barão de Mendes Guimarães.

Joaquim Antônio Bernardo, como não tinha apelido, apossou-se da quinta dos Choupos, que lhe fora hipotecada na dívida fantástica de Fialho, e fez-se barão dos Choupos.

Ainda há mais um título.

O marido de Rosa Catraia, retirado à terra onde nascera, Cabeceiras de Basto, fez-se influente político, principiando em regedor, depois camarista, presidente do município, e administrados substituto do conselho.

Lutador acérrimo em eleições de deputados, vingou levar ao parlamento um sobrinho de Rosa, formado à sua custa. A comenda que o agradecido bacharel lhe enviou fez saltar a rolha da cornucópia das graças, que mais se retorcia de vergonha sua e da pátria, como se uma e outra pudessem já alegar pudor, e negar-se a solicitações de infames.

Rosa Catraia é, pois, baronesa de Vilar d’Amôres, título um tanto lírico e romanesco, bem ajustado às escarlates bochechas e túrgidos seios que ressumbram bestidade, saúde, alegria e lubricidade seródia.

As outras baronesas, bastante mais avelhantadas, representam os estragos da corrupção moral nas pessoas, e o despejo da corrupção política nos títulos.