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Os Ciúmes de um Pedestre

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OS CIÚMES DE UM PEDESTRE

Martins Pena

[OU O TERRÍVEL CAPITÃO DO MATO]

Comédia em 1 ato

PERSONAGENS

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ANDRÉ JOÃO, pedestre

BALBINA, sua filha

ANACLETA, sua mulher

ALEXANDRE, amante de Balbina

PAULINO, amante de Anacleta

ROBERTO, pai de Anacleta

O cabo da patrulha

Soldados permanentes


A cena passa-se no Rio de Janeiro.

[ATO ÚNICO]

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Sala ordinária. Porta no fundo e laterais. No segundo plano, à direita, um armário, e à esquerda, uma escada de mão, que se supõe conduzir a uma trapeira sobre o telhado. No alto de cada uma das portas laterais haverá um buraco. Uma mesa, sobre a qual estará uma vela apagada. É noite.

CENA I

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Ao levantar do pano, estará a cena às escuras e só. Ouve-se dar meia-noite em um sino ao longe. Logo que tenha expirado a última badalada, aparece PAULINO sobre a escada e principia a descer com precaução.


PAULINO, ainda no alto da escada – Meia-noite. São horas de descer... (Principia a descer.) Ele saiu... Anda a estas horas em procura de negros fugidos... Que silêncio! O meu bem ainda estará acordado? A quanto me exponho por ela! Escorreguei no telhado e quase caí na rua. Estava arranjado! Mas, enfim, o telhado é o caminho dos gatos e dos amantes à polca... Mas cuidado com o resultado!(Neste tempo está nos últimos degraus da escada.) Ouço rumor

CENA II

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BALBINA, da esquerda, metendo a cabeça no buraco da porta.


BALBINA, chamando – Minha madrasta? Minha madrasta?

PAULINO, à parte – Mau! A filha está acordada...

BALBINA, no mesmo – Da. Anacleta? Da. Anacleta?

ANACLETA, da direita, metendo a cabeça no buraco da porta – O que queres, Balbina?

PAULINO, à parte – É ela...

BALBINA – Já deu meia-noite...

ANACLETA – E foi só para me dizeres isso que me chamaste? Vai dormir, que eu não estou para conversar a estas horas e de poleiro... Adeus.

BALBINA – Pelo amor de Deus, espere!

ANACLETA – Para quê?

BALBINA – Estou com medo...

ANACLETA – Ora, não sejas criança. Vai dormir.

BALBINA – Não posso... Eu estava cosendo; fui espevitar a vela e apaguei-a... Fiquei às escuras. Nisso deu meia-noite... Arrepiaram-se-me os cabelos....... Levantei-me e ia meter-me na cama assim mesmo vestida, quando ouvi as tábuas do forro estalarem como se uma pessoa andasse sobre elas...

PAULINO, à parte – E não enganou-se...

ANACLETA – O medo é que te fez crer isso.

BALBINA – Não, não foi o medo, bem ouvi... E fiquei com tanto susto, que nem ousava respirar. Afinal, cobrei ânimo para chegar até aqui e chamar-lhe.

ANACLETA – Quem pode a estas horas andar lá pelo forro?

PAULINO, à parte – Eu...

BALBINA – Não sei.

ANACLETA – Foi engano teu. As tábuas à noite estalam com o calor.

BALBINA – Bem pode ser; mas tenho medo. Não posso ficar só às escuras, morrerei de susto. Se eu pudesse ir para lá...

ANACLETA – Bem sabes que é impossível. Ambas estas portas estão fechadas e teu pai levou as chaves.

BALBINA – Meu Deus! Mas fique aí conversando comigo, até que meu pai entre.

ANACLETA – Isto é, queres que fiquemos aqui até de madrugada, que é a hora que ele volta?

PAULINO, à parte – Muito bem, não enganei-me!

BALBINA – Meu Deus, meu Deus, por que meu pai desconfia tanto de nós, que nos deixa assim fechadas cada uma no seu quarto? Se ao menos nos deixasse juntas!

ANACLETA – Ele diz que uma mulher só é capaz de enganar ao diabo, e que duas juntas enganariam o inferno em peso.

PAULINO, à parte – Que tal o pedestre? E o mais é que não deixa de ter sua razãozinha...

BALBINA – E por isso deixa-nos presas e separadas quando sai para suas deligências. Pois olhe: se meu pai continua a desconfiar assim e aperta comigo, eu prego-lhe alguma.......

ANACLETA – E eu também.

PAULINO, à parte – Bravo, isso mesmo é o que eu quero...

BALBINA – Nunca lhe dei motivos para assim tratar-me.

ANACLETA – E eu, que motivos lhe tenho dado? O remédio é ter paciência. Adeus.

BALBINA – Não, não, espere!

ANACLETA – Escuta. Vai à gavetinha da mesa que está aí no canto à esquerda, tira uma caixinha de fósforo que lá guardei esta manhã, e acende a tua vela.

BALBINA – Pois sim, mas não saia daí enquanto eu procuro o fósforo.

ANACLETA – Medrosa! Pois vai, que fico esperando.

BALBINA – Pelo amor de Deus, não saia daí! (Desaparece do buraco.)

CENA III

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[BALBINA,] PAULINO, e ANACLETA no buraco da porta.


PAULINO, à parte – Vamo-nos aproximando... (Caminha com precaução para aonde ouve a voz de Anacleta.)

ANACLETA – Pensa meu marido que se guarda uma mulher prendendo-a debaixo de sete chaves! Simplório! Não sabe que quando elas não se guardam a si mesmas, nem quantas fechaduras e portas há são capazes de as reter. O pior às vezes é desconfiar.

PAULINO, à parte, caminhando – Não há dúvida, o pior é desconfiar...

ANACLETA – Os ciúmes despropositados de alguns maridos fazem com que as mulheres pensem em coisas que nunca lhe passariam pela cabeça, se eles tivessem mais confiança.

PAULINO, à parte – Pobres maridos! Eu arrisco-me a falar-lhe...

ANACLETA – Se o meu não me atormentasse com ciúmes, eu não teria de certo dado atenção ao meu vizinho...

PAULINO, à parte – Ai que fala da pessoa!

ANACLETA – Pois como desconfia de mim, hei de namorar o vizinho, ainda que não seja para vingar-me...

PAULINO, alto – Sim, sim, meu bem, vinga-te! Aqui estou eu para vingarmo-nos!

ANACLETA – Ai, ai, ladrões! (Sai do buraco e continua a gritar dentro.)

PAULINO, assustado, batendo na porta – Fi-la bonita! Espantei-a! Sou eu, sou eu! É o vizinho... Não sou ladrão, não grite... Olhe que sou eu... (Anacleta continua a gritar dentro.) Pior! Isto não vai bem... (Batendo na porta:) Sou eu, sou o vizinho amado... Tome esta cartinha... por baixo da porta... (Assim dizendo, mete uma carta debaixo da porta. Balbina aparece no buraco da porta à direita.)

BALBINA – O que é? Que gritos são estes?

PAULINO, à parte – Mal vai ela... Safemo-nos, há já uma de mais... (Encaminha-se para sair.)

BALBINA – Minha madrasta? (Paulino cai sobre uma cadeira.) Quem está aí?

PAULINO, perdendo a cabeça – Não é ninguém...

BALBINA sai do buraco e principia a gritar – Ladrões, ladrões!

PAULINO, só e assustado – Mais esta! O melhor é safar-me... Como grita! Que goelas! Se chega o pedestre, estou arranjado! Namoro de telhado dá sempre nisto... Aonde diabo está a escada? (Esbarrando-se no armário:) Isto é um armário... Estou desorientado... Calaram-se. A escada deve estar deste lado... Ouço passos! Meu Deus, será ele?

PEDESTRE, dentro – Anda para diante...

PAULINO – Oh, diabo, é ele! Se aqui me pilha, mata-me... Ou ao menos leva-me para a Correção. (Procura a escada com ansiedade.) Ah, enfim! (Vai a subir apressado e a escada rebenta pelo meio, e ele rola pela cena.) Ai, ai! (Levantando-se apressado:) Maldito namoro! Que hei de fazer? A escada quebrou-se! Abrem a porta! Jesus! (Procura o armário.) Ah! (Esconde-se no armário.)

CENA IV

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Abre-se a porta do fundo e por ela entra o PEDESTRE com uma lanterna de furta-fogo na mão esquerda e trazendo preso, na mão direita, pela gola da camisa, ALEXANDRE, disfarçado em negro.


PEDESTRE – Entra, paizinho...

ALEXANDRE – Sim sinhô... (O Pedestre, depois de entrar, fecha a porta por dentro.)

PEDESTRE – Agora foge...

ALEXANDRE – Não sinhô... (O Pedestre acende uma vela que está sobre a mesa e apaga a lanterna.)

PEDESTRE, enquanto acende a vela – Quem é teu senhor?

ALEXANDRE – Meu sinhô é sinhô Majó, que mora na Tijuca.

PEDESTRE – Ah! e que fazias tu à meia-noite na rua, cá na cidade?

ALEXANDRE – Estava tomando fresco, sim sinhô.

PEDESTRE – Tomando fresco! Olha que patife... Estavas fugido.

ALEXANDRE – Não sinhô.

PEDESTRE – Está bom, eu te mostrarei. Hei de te levar amarrado a teu senhor. (À parte:) Mas há de ser daqui a quatro dias, para a paga ser melhor. (Para Alexandre:) Vem para cá. (Encaminha-se com Alexandre para a segunda porta à esquerda e quer abri-la.) É verdade, está fechada... E a chave está lá dentro do quarto de Balbina. (Para Alexandre:) Espera aí. Se dás um passo, dou-te um tiro.

ALEXANDRE – He!

PEDESTRE – He, hem? Vê lá! (Encaminha-se para a porta do quarto de Balbina, tira da algibeira uma chave e abre a porta. Balbina, ouvindo da parte de dentro abrirem a porta, principia a gritar.)

BALBINA, dentro – Ai, ai! Quem me socorre? Quem me socorre?

PEDESTRE – Que é lá isso? Balbina, por que gritas? Sou eu. (Abre a porta e entra no quarto.) Que diabo!

CENA V

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ALEXANDRE, PAULINO espiando da porta do armário e ANACLETA espiando pelo buraco da porta.


ALEXANDRE, com o seu falar natural – Estou só... Tomei este disfarce, o único de que me podia servir para introduzir-me nesta casa, a fim de falar à minha querida Balbina... Com que vigilância a guarda o pai! Quem sabe como me sairei desta empresa... Quem sabe... Talvez muito mal; o pedestre é endiabrado... Coragem, agora nada de fraqueza...

PAULINO, à parte, do armário – Estou arranjado! Como sair daqui?

ANACLETA, chegando ao buraco da porta – Um negro! Meu marido já entrou... E o vizinho? A carta era dele... Sairia?

PAULINO, vendo Anacleta no buraco – É ela! Psiu...

ALEXANDRE, voltando-se – Quem chama? (Paulino e Anacleta, vendo o negro voltar-se, desaparecem.) Aqui há gente... Mau, já não vou gostando... (Olhando espantado ao redor de si.)

CENA VI

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Entra o PEDESTRE e BALBINA.


PEDESTRE – Por que gritavas?

BALBINA – Pensei que eram ladrões. Ouvi bulha aqui na sala...

ALEXANDRE, à parte – Como o meu coração bate! Prudência... (Principia a fazer sinais para Balbina.)

PEDESTRE – Fui eu que entrei, e mais cedo do que costumo. Encontrei este tratante dormindo na calçada, aqui mesmo defronte da porta. Estava tomando fresco... Ladrões, dizes tu? Ladrões em casa de pedestre? Tão tolos não são eles. Aqui não há que roubar, e vinham entregar-se com a boca na botija, pois não?

BALBINA, reconhecendo Alexandre - – Meu Deus!

PEDESTRE – Hem?

BALBINA, disfarçando – Nada, não senhor. (À parte:) Que loucura! (Neste tempo Alexandre tem na mão uma cartinha, que mostra a Balbina.)

PEDESTRE – Anda, vai-te deitar, que estás sonhando. E tu... (Volta-se para Alexandre e o surpreende mostrando a carta a Balbina.) Ah! (Salta sobre ele e arranca-lhe a carta.)

BALBINA, à parte – Meu Deus!

PEDESTRE – Ah, patife, tu trazes cartinhas! (Voltando-se para a filha:) E tu as recebes... Velhaca!

BALBINA, recuando – Meu pai!

PEDESTRE – Vejamos quem te escreve, para depois castigar-te. (Abre a carta e lê:) “Meu amor... (Falando:) Ah, já és seu amor? (Continuando a ler:) Apesar das cautelas de teu pai, um estratagema me conduzirá junto de ti... (Falando:) Ah, um estratagema! (Olha receoso ao redor de si)... e arrancando-te à sua crueldade, serás minha esposa.” (Falando:) Não tem assinatura... (Fica pensativo.)

BALBINA, à parte – Eu tremo!

ALEXANDRE, à parte – O que fará? Em boas meti-me!

PEDESTRE caminha para Alexandre sem dizer palavra e dá-lhe uma bofetada – Principio por ti ... (Alexandre, esquecendo-se do caráter que representa, quer ir sobre o Pedestre, mas vendo Balbina, que com as mãos postas pede-lhe que se modere, contém-se. Pedestre, agarrando Alexandre pela gola da camisa:) Quem mandou esta carta?

ALEXANDRE, à parte – Felizmente não me conhece...

PEDESTRE – Quem mandou esta carta? Fala, ou eu...

ALEXANDRE – Não sei, não sinhô; foi um branco que me deu.

PEDESTRE – Que branco?

ALEXANDRE – Não sei, não sinhô.

PEDESTRE – Ah, não sabes? (Querendo puxar da espada.)

BALBINA – Meu pai!

PEDESTRE – Espera tu, que temos também que falar. (Para Alexandre:) Então? Quem é o branco?

ALEXANDRE – Eu vou contá tudo. Um branco me disse: José, toma dez tostões; quando dé meia-noite vai para o Beco dos Aflitos fazê negro fugido... E quando o pedestre que mora lá mesmo no Beco dos Aflitos sair, deixa ele prendê você e levá para casa... E entrega esta cartinha à sinhá Balbina... Está... Mas não sei quem é o branco... Foi para ganhar dez tostões...

PEDESTRE – Hum, é assim? Que trama! Vem cá, negrinho da minha alma, tratante... Amanhã, hem? Correção, cabeça rapada e... (Faz sinal de dar pancada.) Mas antes, hem? meu negrinho, hei de te dar uma reverendíssima maçada de pau bem repinicadinha. Vem cá, meu negrinho...

ALEXANDRE, querendo resistir – Mas sinhô...

PEDESTRE – Vem cá, vem cá... (Vai levando-o para o segundo quarto à esquerda e mete a chave na fechadura, para abrir a porta.)

BALBINA, à parte, enquanto o Pedestre abre a porta – Pobre Alexandre, a quanto se expõe ele por mim! Mas que loucura a sua, assim disfarçar-se!

PAULINO, à parte, espiando do armário. Isto principia muito mal... E acabará ainda pior!

PEDESTRE, empurrando Alexandre para dentro do quarto – Entra! (Fecha a porta e tira a chave.)

BALBINA, à parte, a tremer de susto – Ai de mim! Matai-me, meu Deus! (Pedestre encaminha-se para Balbina e, chegando junto dela, observa-a por alguns instantes, calado. Balbina treme de susto, enquanto o pai a observa. Pedestre, sem dizer palavra, volta-se, e abrindo a gaveta da mesa, dela tira uma palmatória. Balbina, vendo-o tirar a palmatória.) Ah!

PEDESTRE, indo para ela – Dá cá a mão!

BALBINA – Meu pai!

PEDESTRE – Dá cá a mão!

BALBINA – Oh! (Recuando.)

PEDESTRE, seguindo-a – Dá cá a mão!

BALBINA, escondendo as mãos atrás das costas – Não sou criança para levar de palmatória!

PEDESTRE – Não és criança... Mas és namoradeira, e eu cá ensino as namoradeiras a palmatória. Santo remédio! Venha!

BALBINA – Meu pai, meu pai, pelo amor de Deus!

PEDESTRE – Ah, a menina tem namorados, recebe cartinhas e quer casar-se contra minha vontade! Veremos... Venha, enquanto está quente... Venha!

BALBINA, caindo de joelhos – Por piedade!

PEDESTRE – Só quatro dúzias, só quatro dúzias...

BALBINA – Oh, não, não, meu pai! (Abraçando-lhe as pernas) Meu pai, que lhe fiz eu? Que culpa tenho eu, se me escrevem? Posso eu impedir que me escrevam?

PEDESTRE – Pode, pode! Não dê corda! Venha!

BALBINA – Mas isso é uma injustiça! Eu não conheço ninguém, não vejo ninguém, vivo aqui fechada...

PEDESTRE – Quanto mais se não vivesse...

BALBINA – Que culpa tenho, se alguém se lembra de escrever-me? Não posso prevenir isso... Escrevem-me, mandam a carta por um negro... e sou eu quem pago, eu, que não tenho culpa nenhuma! Meu pai, perdoe-me! Indague quem foi a pessoa que escreveu-me e castiga-o... Mas eu? Oh, perdão, meu bom paizinho!

PEDESTRE – Levanta-te. Olha, tu não levarás os bolos por esta, mas também não me hás de embaçar mais. Porém quero saber quem é o sujeitinho que quer armar o estratagema para lograr-me. Lograr-me! A mim, que sou macaco velho no ofício... Quero ver se é capaz de pôr o pé nesta casa ou se te fará dar um só passo daqui para fora. Então, não sabes ele quem é?

BALBINA – Já lhe disse que não, meu pai.

PEDESTRE – Está bem, chama tua madrasta. Toma a chave. Ela mo dirá. (Balbina vai abrir a porta e sai por ela.)

CENA VII

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PEDESTRE, e PAULINO no armário. PEDESTRE passeia, pensativo, de um para outro lado da sala.


PAULINO, à parte, no armário – No que diabo estará ele pensando!

PEDESTRE – Estratagema! Qual será o estratagema? É preciso toda a cautela... Ora, eis ai está! Fecham-se, aferrolham-se estas mulheres e elas sempre acham uma abertazinha para nos pregarem mesmo na menina do olho... Ah, mas deixem-nas comigo... Só fica logrado aquele que as não conhece. Porta sempre fechada – e os melros que andem por fora da gaiola...

PAULINO, à parte, no armário – Dentro já estou eu...

ALEXANDRE, à parte, no buraco da porta – Eu cá estou de dentro...

PEDESTRE – Veremos quem é capaz de lograr-me .. Lograr André Camarão! Cá a menina, levarei a palmatória. Santa panacéia para namoros! E minha mulher... Oh, se lhe passar somente pela ponta dos cabelos a idéia de enganar-me, de se deixar seduzir... Ah, nem falar nisso, nem pensar! Eu seria um tigre, um leão, um elefante! A mataria, a enterraria, a esfolaria viva. Oh, já tremo de furor! Vi muitas vezes Otelo no teatro, quando ia para platéia por ordem superior. O crime de Otelo é uma migalha, uma ninharia, uma nonada, comparado com o meu... Enganar-me! Enganar, ela! Ah, nem sei do que seria capaz! Amarrados ela e o seu amante, os mandaria de presente ao diabo, acabariam na ponta desta espada, nas unhas destas mãos, no talão destas botas! Nem quero dizer do que seria capaz.

PAULINO, à parte, no armário – Deus se compadeça de mim!

PEDESTRE – Oh, mataria o gênero humano, se o gênero humano seduzisse minha mulher!

PAULINO, à parte – Quem me reza por alma?

PEDESTRE – Ela que chega... E eu não me fio nela...

CENA VIII

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Os mesmos, ANACLETA e BALBINA.


ANACLETA – Mandou-me chamar?

PEDESTRE – Sim, espere. E tu, (para Balbina) vai aquentar uma xícara de café, que tenho a cabeça muito esquentada. (Balbina sai.)

PAULINO, à parte – Atenção...

PEDESTRE, para Anacleta – Chegue-se para cá. (Assenta-se.)

ANACLETA, aproximando-se – Aqui me tem.

PEDESTRE – Quem vem a esta casa quando eu estou fora?

PAULINO, à parte – Ninguém...

ANACLETA – Zombas comigo? (Olhando ao redor de si:) Ele saiu...

PEDESTRE – Responda ao que lhe pergunto. Quem vem a esta casa?

ANACLETA – Quando sais não fechas todas as portas e não nos deixas presas cada uma de seu lado? Como queres que aqui venha alguém?

PEDESTRE, levantando-se – Portas fechadas! Que valem portas fechadas? As fechaduras não têm buraco?

ANACLETA, à parte – Com que homem casei-me eu!

PEDESTRE, à parte – Hei de ver se descubro umas fechaduras sem buraco... (Alto:) Anacleta, ouve bem o que te vou dizer. Tu me conheces, e sabes se sou capaz de fazer o que digo – e ainda mais. Sempre que saio deixo esta casa fechada, portas e janelas, e sempre que aqui estou tenho os olhos alerta. E apesar de todas estas cautelas, Balbina enganou-me.

ANACLETA – Enganou-te?

PEDESTRE – Tem um amante, recebe cartinhas e está fiada em um estratagema para lograr-me. (Olha ao redor de si.) Mas isso veremos... Mas onde diabo viu ela esse sujeito? Quando, como? Aqui está o que me amofina, o que derrota a minha finúria de pedestre e faz-me andar a cabeça à roda. Tantas cautelas, e por fim logrado! Ah, mulheres! Diabos! Vamos, tu deves saber quem é ele? Como se chama? Onde foi que Balbina o viu? Em que lugar? Por que buraco? Por que greta?

ANACLETA – Nada sei.

PEDESTRE, pegando-lhe no braço, furioso – Nada sabes?

ANACLETA – Não!

PEDESTRE – Mulher!

ANACLETA – Matai-me, porque deixarei de sofrer!

PEDESTRE – Matar-te! Isso fica para quando o mereceres... Por ora, basta que eu seja mais cauteloso. Todas as portas, todas as janelas desta casa vão ser pregadas a prego... Um pequeno postigo naquela porta – quanto caiba meu corpo – será bastante para eu sair... E o postigo fechará como uma tampa de caxeta e aldraba – nada de fechaduras com buraco! A luz virá pelo telhado... Não, não, os telhados andam também muito perigosos... Uma candeia de dia e de noite estará acesa aqui. Quero ver se assim me logram.

ANACLETA, com muita tranqüilidade – Agora que te ouvi, ouve-me também. Fecha todas estas portas, prega-as, calafeta-as, rodeia-me de vigias e cautelas, que eu hei de achar uma ocasião para fugir!

PEDESTRE – Tu? Oh!

ANACLETA – Eu, sim! E irei direitinha daqui para o Recolhimento, donde saí, depois de queixar-me às autoridades.

PEDESTRE – Tu és capaz de fugir daqui?

ANACLETA – Sou sim!

PEDESTRE – Meu Deus, como hei de eu fechar estes demônios, estas endiabradas?

ANACLETA – Minha mãe – Deus a perdoe! – lançou-me na roda dos enjeitados. Na Santa Casa fui criada e educada...

PEDESTRE – Boa educação!...

ANACLETA – Privada dos carinhos maternais, pobre e abandonada como eu era, encontrei nessa casa de misericórdia cristã amparo e proteção; nela cresci e nela aprendi a orar a Deus pelos meus benfeitores e por minha mãe, que me havia abandonado, minha mãe, de quem só possuo no mundo esta cruz que desde o berço me acompanha... (Assim dizendo, beija uma cruzinha que traz pendente ao pescoço.)

PEDESTRE – Esta história eu já ouvi muitas vezes, e faz-me sono...

ANACLETA – Pois dorme.

PEDESTRE – Assim era eu tolo. .. Quem se casa não dorme, ou... Bem sei o que digo.

ANACLETA – Então vai ouvindo. Como recolhida, tive quatrocentos mil-réis de dote... E tu te casaste comigo por causa desses quatro­centos mil-réis, e só por eles.

PEDESTRE – Eu os daria agora a quem me livrasse da pensão de te guardar.

ANACLETA – E deixei assim uma habitação de paz por este inferno em que vivo. Oh, mas estou resolvida, tomarei uma resolução. Fugirei desta casa, onde vivo como miserável escrava; irei ter com meus benfeitores, contar-lhes-ei o que tenho sofrido desde que os deixei. Pedirei justiça, para mim e para tua primeira vítima... Oh, recorda-te bem, André, que tua primeira mulher, a infeliz mãe de Balbina, morreu arrebentada de desgostos, e que teus loucos ciúmes abriram-lhe a sepultura...

PEDESTRE – Morreu para minha tranqüilidade; já não é preciso vigiá-la...

ANACLETA – Oh, que monstro!

PEDESTRE – Anacleta! Anacleta! Tu queres pregar-me alguma! Nunca te ouvi falar assim, e se agora o fazes, é que te sentes culpada...

ANACLETA – Não, é que me sinto cansada; já não posso com esta vida; não quero morrer como ela.

PEDESTRE – Até agora tenho-te tratado como um fidalgo, nada te tem faltado, a não ser a liberdade...

ANACLETA, à parte – É o necessário...

PEDESTRE – Confiava em ti... porque tinha sempre a minha porta fechada. Mas minha filha enganou-me, apesar das portas fechadas, e tu também me enganarás...

ANACLETA – Oh!

PEDESTRE, com voz concentrada – Se é que já não me enganaste!

ANACLETA – Isto é muito!

PEDESTRE, pegando-lhe pelo braço – Mulher, se eu tivesse a mais pequena desconfiança, o menor indício que... bem me entendes... eu... eu... te mataria!

ANACLETA, recuando, horrorizada – Ah!

PEDESTRE, caminhando para ela – Sim, a minha afronta eu lavaria no teu sangue, e a minha... (Aqui vê ele no seio da mulher a ponta da carta que Paulino meteu por baixo da porta e que ela apanhou, e com rapidez a arrebata.)

ANACLETA – Ah! (À parte:) Estou perdida!

PEDESTRE, com a carta na mão – Uma carta! Hoje já são duas! Chovem cartas em minha casa, apesar das portas fechadas! Ela também! (Indo para Anacleta:) De quem é esta carta? Eu tremo de a ler!

ANACLETA – Esta carta?

PEDESTRE – Sim!

ANACLETA – Não sei...

PEDESTRE – Oh! (Abrindo a carta com furor e amarrotando-a nas mãos:) Ei-la! (Arredando-a dos olhos, todo trêmulo.)

ANACLETA, suplicante – André!

PEDESTRE – A prova da minha desonra! (Tomando-a pelo braço, a conduz para junto da vela que está sobre a mesa.)

ANACLETA – Deixai-me! O que queres de mim?

PEDESTRE, apresentando-lhe a carta à luz da vela – Lê!

ANACLETA – André, piedade! (Muito aterrorizada.)

PEDESTRE – Lê comigo! (Lendo:) “Minha bela Anacleta...

ANACLETA, repetindo – Minha bela Anacleta...

PEDESTRE, lendo – ... Teu marido é um animal...

ANACLETA, repetindo – ... Teu marido é um animal...

PEDESTRE, no mesmo – ... e tu és um anjo.

ANACLETA, no mesmo – ... e tu és um anjo.

PEDESTRE, no mesmo – Esta noite irei ver-te...

ANACLETA, no mesmo – Esta noite irei ver-te...

PEDESTRE, no mesmo – ... e se não tiver a fortuna de encontrar-te...

ANACLETA, no mesmo – ... e se não tiver a fortuna de encontrar-te...

PEDESTRE, no mesmo – ... deixar-te-ei esta carta...

ANACLETA, no mesmo – ... deixar-te-ei esta carta...

PEDESTRE, no mesmo – ... para conheceres quanto te amo...

ANACLETA, no mesmo – ... para conheceres quanto te amo...

PEDESTRE, no mesmo – ... e quanto desprezo o burro do teu marido.”

ANACLETA, no mesmo – ... e quanto desprezo o burro do teu marido.

PEDESTRE, puxando-a para a frente do tablado, encruzando os braços e com grande tranqüilidade – Que tens que dizer?

ANACLETA – Tudo me persegue...

PEDESTRE – E te crimina. (Mudando de voz:) Olha para mim! Reconheces-me?

ANACLETA – Oh, para que deixei eu o Recolhimento para seguir este homem?

PEDESTRE – Já fizeste as tuas orações?

ANACLETA – Que queres tu dizer?

PEDESTRE – Recomenda tua alma a Deus, que eu esperarei um instante. (Passeia.)

ANACLETA – Oh, André, André, piedade! Escuta-me! (Aqui entra Balbina com uma xícara de café.)

BALBINA – Está o café, meu pai. (Pedestre dá com a mão na xícara e a atira pelos ares.) Ah!

PEDESTRE, voltando-se para Anacleta e desembainhando a espada – Estás pronta?

ANACLETA, agarrando-se com Balbina – Balbina! Balbina!

BALBINA – Ai, ai!

PEDESTRE puxa Anacleta pelo braço, a qual arrasta Balbina consigo – Tu vais morrer, mulher infiel, traidora!

ANACLETA, gritando – Quem me socorre, quem me socorre?

BALBINA, ao mesmo tempo – Meu pai, meu pai!

PEDESTRE – Ninguém agora te arrancaria de minhas mãos! Quero vingar-me! Morre!

ALEXANDRE, do buraco da porta – Tenha mão!

PEDESTRE, ao ouvir esta voz, volta-se e deixa o braço de Anacleta – Ah, negro, diabo!

ANACLETA, vendo-se livre, corre para dentro – Socorro!

PEDESTRE, conhecendo que foi o negro quem falou, segue a Anacleta, furioso – Espera, espera! (Saem ambos de cena.)

BALBINA – Meu pai, meu pai!

ALEXANDRE, do buraco da porta – Psiu, psiu! Balbina, vem cá!

PAULINO, do armário – O que será de mim? Misericórdia, que mortandade!

BALBINA, correndo para Alexandre – Fuja, fuja; senão, mata-me também!

ALEXANDRE, do buraco – Abra a porta, que fugiremos juntos. Já não quero ficar aqui nem um instante.

BALBINA – Ele tirou a chave!

PAULINO, dentro do armário – Olé, o negro quer fugir com a moça! Aonde me meti eu!

ALEXANDRE – Balbina, Balbina, o que há de ser de nós? Quem mandou-me cá vir? Mas eu te amo tanto!

PAULINO, do armário – O caso é esse, agora percebo: disfarçou-se, pintou-se de negro para cá entrar. Olhem que menino! Se eu não estivesse com tanto medo, ria-me do logro que levou o pedestre. (Ouve-se dentro gritos e bulha, como de uma pessoa que rola pelas escadas abaixo.)

BALB1NA – Meu Deus, ele matou-a!

ALEXANDRE, do buraco – Não é possível!

PAULINO, no armário, fechando a porta – Eu desmaio... Quem me acode?

ALEXANDRE – Vai ver, vai ver, já não posso estar aqui... As pernas tremem-me... (Sai do buraco.)

CENA IX

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Entra o PEDESTRE, ainda com a espada na [mão] e muito pálido e assustado.


BALBINA – Meu pai, meu pai, o que tem? Tão pálido! Responda! E minha madrasta?

PEDESTRE, apontando para dentro, todo trêmulo – Morta!

BALBINA – Morta! Meu Deus! (Corre para dentro.)

PAULINO, à parte, no armário – Um assassinato! E eu sou a causa, oh!

PEDESTRE, como assustado – Ela me enganava... Está morta! Morta! E agora? Enterra-se... e fico descansado. Sim, descansado, tranqüilo. Amanhã perguntar-me-ão por ela e eu... Oh, talvez fizesse mal... Mal? Se ela estivesse inocente... Inocente... Oh! (Com ternura:) Anacleta, Anacleta! Mas ela traiu-me, fiz muito bem... O homem deve vingar-se... (Com ternura:) Anacleta! Vem gente...

BALBINA, entrando – Meu pai, meu pai, talvez ainda seja tempo de a salvar! Ela rolou pelas escadas abaixo e lá está caída, fria e sem sentidos... Acuda-a!

PEDESTRE – Não, ela traiu-me; esqueceu-se do meu nome, do meu amor e de minha confiança.

BALBINA – Venha, ou vá chamar um médico!

PEDESTRE, com voz terrível – Não!

BALBINA – Meu Deus, compadecei-vos de nós! (Sai.)

PEDESTRE – Morta, morta, morta! Talvez não fosse culpada; talvez, quem sabe? Que abismo! Inocente! Mas a carta, a carta? Teu marido é um animal... Animal! Oh, se tivesse o indigno sedutor debaixo dos pés, se o visse tremendo, enfiado nesta espada, ah! seria feliz! Pérfida! Insultado, desonrado! Oh, quisera nadar em sangue! Pérfida! (Passeia agitado pela sala.) Esta escada quebrada... Desceria ele por aqui? Viria pelos telhados? Ah, (vendo o boné) um boné! Um boné em minha casa? Um boné! Querem-na mais clara? Mas um boné por si só é inocente, um boné nada vale... A cabeça que ele cobria é que é tudo. Procuremos a cabeça. (Principia a procurar pela sala, furioso) Não me há de escapar. (Dirige-se para o armário e o abre.) Oh, cá está!

PAULINO – Quem me acode? Quem me socorre?

PEDESTRE, arrancando-o do armário e puxando-o para frente da cena – Oh, és tu? O algoz da minha honra, da minha tranqüilidade!

PAULINO, trêmulo de susto – Eu não senhor, não senhor!

PEDESTRE, pondo-lhe o boné na cabeça – Este boné é teu... e esta cabeça é minha!

PAULINO – Ai, ai, ai!

PEDESTRE, furioso – Ah, tu pensavas que havias de entrar no asilo conjugal pelo telhado, para roubares ao marido o seu bem! Ah, contastes com a minha fraqueza! Tu vais morrer na maré da noite!

PAULINO – Ai, ai, quem me acode?

PEDESTRE – Podes gritar. Tenho o direito de te matar. Vou arrancar-te esse coração... Grita... e morre!

PAULINO, por um movimento rápido, desprende-se das mãos do Pedestre e corre pela sala, gritando – Ai, ai, quem me acode? Querem-me matar!

PEDESTRE o segue de perto – Não me escaparás; hás de morrer! (Atira uma estocada em Paulino, pelas costas.) Morre!

PAULINO, deixando-se cair ao chão de bruços, com os braços estendidos – Ai, estou morto!

PEDESTRE, parando repentinamente – Morto! Também ele! Matei-o! (Deixa cair a espada, trêmulo, e vem assentar-se junto à mesa, e aí permanece por alguns instantes, silencioso. Paulino, enquanto o Pedestre caminha para a mesa, e durante o tempo que aí demora-se sentado, levanta a cabeça e observa.. Pedestre, depois de alguns momentos de silêncio:) Fiz o que devia.

PAULINO, à parte – E eu também...

PEDESTRE, levantando-se, pensativo – Nasce o homem tranqüilo e inocente e depois faz duas mortes... Duas mortes! Fado e destino da humanidade! (Caminha para junto de Paulino, que se conserva imóvel.) Vil sedutor, cadáver aborrecido! (Empurra-o com o pé e ele rola.) Ressuscita outra vez, que te quero ainda matar de novo, cevar-me no teu sangue, arrancar tuas tripas! Oh, ressuscita outra vez!

PAULINO, à parte – Assim era eu tolo!

PEDESTRE – Minha vingança está satisfeita; dormirei tranqüilo... Tranqüilo? Mas a forca? A forca! Oh, que nem dela me lembrava! Oh, por que levantou a justiça este horrível fantasma entre o homem e a sua legítima vingança? Oh, bem se vê que quem inventou o Código e a forca não tinha mulher que o traísse... Que farei? Como ocultar estas duas mortes, como esconder estes dois corpos, que farei? Ah! (Como ferido de uma idéia repentina, corre para o quarto aonde está Alexandre e sai.)

PAULINO, levantando a cabeça com cautela e espiando – Foi-se... O que iria fazer? Se a chave estivesse na porta, eu metia pernas... Mas o endemoninhado a tirou... O melhor é continuar a fingir-me de morto. Mas que diabo quererá ele fazer do meu corpo? Ora, é bem feito, para eu não [me] meter em camisas de onze varas, saltar telhados e bolir com as mulheres dos outros. Se escapar desta, podem todos os que têm mulheres dormirem com as portas abertas, que eu abrenuntio... Ele aí vem... Estou morto...

CENA X

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Entra o PEDESTRE, conduzindo por uma mão ALEXANDRE e tendo na outra um saco.


PEDESTRE, para Alexandre – Nem uma palavra, e faze o que eu te mando; do contrário, mato-te como o matei... (Apontando.)

ALEXANDRE, assustado, vendo Paulino – Ah!

PEDESTRE – Então?

ALEXANDRE, à parte – É alta noite, e eu só com este desalmado, em sua casa...

PEDESTRE – Decide-te!

ALEXANDRE – Sim sinhô. (À parte:) O melhor é obedecer-lhe e ver se me safo...

PEDESTRE – Vem cá. É preciso metê-lo neste saco, ajuda-me. (Ambos principiam a meter Paulino dentro do saco. Durante esta operação, Pau1ino conserva toda a aparência de um corpo morto.) Anda mais depressa, não tremas. Ele ainda está quente... Patife! Assim metido no saco, tu o levarás às costas e o lançarás ao mar. (Tirando uma corda da algibeira:) Amarremos a boca do saco. (Amarram a boca do saco.) Eu te acompanharei até a praia; depois dar-te-ei a liberdade... Bom, está amarrado. Agora espera um instante, enquanto vou ver se alguma ronda se aproxima, ou se passa alguém pela rua. (Sai pelo fundo e fecha a porta por fora.)

CENA XI

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ALEXANDRE e PAULINO metido no saco.


ALEXANDRE – Fecha a porta... e deixa-me só com um homem morto! Mas quem é este homem? Por que o matou ele? Oh, tenho os cabelos arrepiados... Só com um cadáver! Que vim eu aqui fazer? Que horrível noite! E Balbina? Está junto da madrasta também morta... Oh, que terrível pedestre! O que farei, o que farei?

PAULINO, dentro do saco, sentando-se – Fugirmos...

ALEXANDRE, recuando, espavorido – Ah!

PAULINO, no mesmo – Não se assuste, que eu estou vivo...

ALEXANDRE – Vivo!

PAUL1NO, no mesmo – Sim, sim. Pois não ouve que estou falando?

ALEXANDRE, aproximando-se – Ah!

PAULINO, no mesmo – Ele saiu... E eu espero que o senhor não me lance ao mar dentro deste saco. Ande, tire-me daqui. Eu bem sei por que o senhor também está cá; tudo tenho ouvido. Veio por uma e vim por outra... Ande, tire-me daqui e fujamos... Ande depressa, uf! (Alexandre, que durante o tempo que Paulino fala está como pensativo, exclama, logo que ele tenha acabado: Balbina, Balbina! e sai pela direita, correndo.)8

CENA XII

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PAULINO, só, dentro do saco.


PAULINO – Então? Ó senhor? Foi-se... E esta! (Pôe-se em pé.) E deixou-me só, dentro do saco... Se eu pudesse arrebentá-lo! (Faz esforços.) Nada! Estou aviado, quero dizer, estou ensacado... Ó amigo? (Vai dar alguns passos, atrapalha-se no saco e cai.)Ai, que fiz um galo na testa. Quem me mandou cá vir? (Sentando-se:) Sr. Paulino, sr. Paulino, quem diria a vossa mercê que um dia se veria assim preso... (Ajoelhando-se:) Minha Nossa Senhora do Amparo, amparai-me nestes apertos, que eu vos prometo um saco de café, um saco de feijão e um saco de farinha! (Levantando-se:) Mas no entanto, esperando que a Senhora do Amparo se lembre de mim, não será mau que eu também faça alguns esforços para safar-me. A porta deve ser deste lado; o diabo é se encontro o meu assassino... Vamos a arriscar, e caminhemos à maneira do sapo; senão, arrebento as ventas. (Principia a caminhar pela cena, saltando de pés juntos.)

CENA XIII

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Entra ALEXANDRE e BALBINA.


ALEXANDRE, entrando – Só assim nos salvaremos!

PAULINO, parando – Ouço vozes...

ALEXANDRE – Tua madrasta já tomou a si; estava apenas atordoada pela queda que deu pela escada, fugindo de teu pai. Lá ficou deitada na sua cama. Está salva; agora, salvemo-nos também... E só o meio de que te falei... E uma vez fora daqui. tenho o meu plano...

BALBINA – A ti me entrego. (Alexandre beija-lhe a mão.)

[ALEXANDRE] para Paulino, que está imóvel – Ah, senhor?

PAULINO, ouvindo que falam com ele, salta apressado, fugindo – Deixe-me, deixe-me, não me mate, sr. Pedestre!

ALEXANDRE, correndo atrás dele e segurando – Não se assuste, sou eu...

PAULINO – Ah, é o senhor?

ALEXANDRE – Sim, sou eu. Quer sair deste saco?

PAULINO, com presteza – Sim senhor!

ALEXANDRE – Ver-se na rua...

PAULINO – Sim senhor!

ALEXANDRE – Livre e desembaraçado?

PAULINO – Sim senhor!

ALEXANDRE – Jura fazer o que eu lhe disser?

PAULINO – Juro, sim senhor!

ALEXANDRE – Palavra de honra?

PAULINO – Palavra de honra!

ALEXANDRE – Muito bem. (Desata o saco.)

PAULINO, botando a cabeça fora do saco – Ah, enfim!

ALEXANDRE – Tenho a sua palavra...

PAULINO – Conte com ela. (Tendo saído do saco.)

ALEXANDRE, para Balbina – Balbina, vem, não tenhas medo. Este é o único modo, como te disse, de sairmos daqui. (Alexandre põe o saco no chão, aberto, e Balbina, colocando-se sobre ele, deixa que Alexandre levante as bordas, e vê-se assim dentro do saco.)

PAULINO – Que diabo é lá isso? Aqui nesta casa ensaca-se gente como farinha... E como hei de eu sair daqui?

ALEXANDRE, amarrando a boca do saco – Quer vir outra vez para o saco?

PAULINO – Nada, quero saber como hei de sair desta caverna de assassinos.

ALEXANDRE – Acompanhando-me quando eu sair com o pedestre, levando este saco às costas.

PAULINO – Bravo, compreendo excelentemente! É melhor do que ser atirado ao mar. (Ouve-se bulir na fechadura.)

ALEXANDRE – Ele aí vem....... (Paulino corre, apressado, e esconde-se no armário, e Alexandre põe Balbina dentro do saco ao ombro.)

CENA XIV

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Entra o PEDESTRE.


PEDESTRE – Tudo está em silêncio, não passa ninguém... Fui até ao canto e não avistei vivalma. Vamos, com cuidado; depois virei buscar o outro corpo. Apaguemos a luz. (Apaga a vela e sai seguido de Alexandre, que leva Balbina as costas. Tendo saído, fecha a porta por fora.)


CENA XV

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PAULINO, logo que o PEDESTRE e ALEXANDRE saem, abre a porta do armário e vai saindo com cautela.


[PAULINO] – Creio que fecha a porta... Mau! E deixou-me no escuro. (Encaminha-se para a porta e conhece que está fechada.) Está fechada! Fechada! Oh, com mil diabos, estou ainda preso e em seu poder! Meu Deus, quando sairei eu desta maldita casa? Só, no escuro e com uma defunta... Ela está lá dentro morta e fui eu a causa da sua morte! Não tarda muito que venha sua alma por aí a pedir-me contas... Já tenho os cabelos todos arrepiados. Escapei de morrer apunhalado, afogado, mas de certo morrerei assombrado. Que noite, que noite! (Dá dentro uma hora, ao longe.) Uma hora! É a hora das almas do outro mundo... E eu fechado sozinho com uma defunta! (Do buraco da primeira porta à esquerda salta em cena um gato; ao ruído que este faz, saltando, Paulino se assusta e cai de joelhos) Ai, misericórdia, misericórdia! Padre nosso, que estás no céu, santificado seja vosso nome... santificado... venha a nós... que estás no céu... vosso nome... santificado... o pão nosso... santificado... que estás no céu... seja o vosso nome... as vossas dívidas... Creio que se foi embora... Nada ouço. (Levanta-se.) É a alma da desgraçada, que anda penando... Infeliz, Deus se compadeça de ti e por lá te tenha muito tempo sem mim... Ora, é célebre! Como eu perdi o amor a esta mulher, depois que ela morreu... Está-me parecendo que o medo que tenho rapado esta noite é que essa mudança. Ai, ai, eu daria o amor de todas as mulheres solteiras, casadas, viúvas e etc., só para me ver fora daqui e... (Aqui abrem a porta da direita.) Aí vem ela! É uma sombra branca... que vai até o teto... Ai, ai! (Cai de joelhos.)

CENA XVI

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ANACLETA entra pela direita.


ANACLETA, entrando – Deixaram-me só... fugiram todos... Que homem bárbaro! Como está escuro! Estou só, só e abandonada. Como tenho a cabeça abalada da horrível queda que dei... Talvez Balbina esteja no seu quarto; vejamos. Ela não teria coração de desemparar-me, fraca como estou.

PAULINO, enquanto Anacleta tem este pequeno monólogo, reza em voz baixa – Salve Rainha, que estás no céu... neste vale de lágrimas... perdoai o pão nosso... assim como nós na vida eterna... amém Jesus... (Etc. Anacleta, dirigindo-se para a esquerda, a fim de entrar no quarto de Balbina, esbarra-se em Paulino, que está de joelhos, e ambos se assustam.)

ANACLETA, assustando-se e recuando – Ai!

PAULINO, caindo de bruços – Misericórdia, misericórdia!

ANACLETA, à parte – Quem será?

PAULINO, de bruços – Senhora Alma do outro mundo, tenha compaixão de mim! Quem a matou foi seu marido... Agarre-se com ele e leve-o para o inferno... Mas eu, senhora?

ANACLETA – Ai, que é o vizinho que ainda está por cá e julga-me morta. (Dirigindo-se para Paulino:) Senhor...

PAULINO, à parte – Senhor! Esta alma é muito bem criada...

ANACLETA – Sou eu, não se assuste, não tenha medo...

PAULINO, à parte – Parece-me boa pessoa, coitadinha!

ANACLETA – Como se acha ainda aqui? Responda!

PAULINO – Assim era eu tolo!

ANACLETA – Meu marido que me julga morta...

PAULINO, levantando-se pouco a pouco – Que a julga morta?

ANACLETA – Só porque, fugindo eu do seu furor, rolei pelas escadas e caí sem sentido.

PAULINO, sentado – Pois a senhora não está morta? Pois eu não estou falando com a sua alma?

ANACLETA – Eu morta! Talvez assim me julgassem, por isso me abandonaram. Mas graças a Deus ainda estou viva.

PAULINO, levantando-se – Ainda está viva! Eu também estou vivo... Também já estive morto. Ambos estamos vivos e fechados nesta casa... E foi ele quem nos fechou... Ele mesmo, o marido... Oh, que pedestre estúpido!

ANACLETA – Senhor!

PAULINO – Não se assuste... Há uma hora que eu teria dado quanto possuo para estar como estou, só convosco. Mas as coisas mudaram; esta única hora tem-me envelhecido mais de cinqüenta anos. Saltei pela minha janela, trepei no vosso telhado, escorreguei três vezes, desci pela vossa escada, quebrei-a, presenciei os furores de vosso marido, chorei a vossa morte, fui assassinado, metido em um saco, meu Deus! e tudo isto em uma hora! Não seria melhor que eu estivesse deitado em minha cama, roncando debaixo dos lençóis?

ANACLETA – O senhor foi de tudo isso culpado e causa do que eu tenho sofrido.

PAULINO – Serei eu o culpado de tudo, carregarei com mais essa – hoje estou pronto para tudo. Mas sempre vos direi que, se me tivésseis dado com as janelas na cara quando eu lá da minha vos namorava, não teria acontecido tudo isto...

ANACLETA – Nunca lhe dei esperanças; conhecia os meus deveres. Se às vezes lhe dava atenção, era para distrair-me da insip[id]ez em que vivia.

PAULINO, furioso – Para distrair, para distrair-se! E a tanto me arrisquei! Oh, grandissíssimo pateta, pedaço de asno! Camelo, came­lórío, que tanto te arriscaste por uma mulher que se divertia contigo! Arrebento!

ANACLETA – Não grite tanto, que ele pode vir...

PAULINO – Ele! Oh, agora é que minha morte é certa... E que morte? E por quem? Arreda, mulher, arreda! Eu agora preferia estar com tua alma... Sim, com tua alma, porque ainda não vi nenhum marido ter ciúmes da alma de sua mulher...

ANACLETA – Senhor!

PAUL1NO – Oh, estou capaz de te matar para ficar só com tua alma!

ANACLETA – Meu Deus!

PAULINO – Tudo está acabado, tudo! Amanhã estarei morto! Ó Sol que me alumiais, amanhã verás o meu enterro subindo pela Ladeira de Santo Antônio... Não escapo, não posso escapar... Aqui encontrado, só com ela, morrerei às suas mãos. Oh!

ANACLETA – Fujamos, fujamos!

PAULINO – Fugir contigo! Oh, de ti fugiria eu, se a porta estivesse aberta. Fugir com uma mulher! Oh, leve o diabo todas as mulheres e quem acredita nelas e...

ANACLETA, muito assustada – Ele aí vem! (Dirige-se para a direita e sai.)

PAULINO, assustado – Aí vem! (Dirige-se para a esquerda e entra no quarto e fecha a porta.)

CENA XVII

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Entra o PEDESTRE, muito assustado.

PEDESTRE – Estou perdido! O melhor é fugir enquanto é tempo... É preciso levar alguma coisa. (Dirige-se para a mesa e, abrindo a gaveta, tira uma caixinha de fósforo e acende a vela.) Ao dobrar a segunda esquina, esbarramos mesmo com uma patrulha... O negrinho meteu logo pernas com o saco às costas, e eu também. Pega, pega! gritava a patrulha, e eu do mesmo modo gritava: Pega, pega! para não desconfiarem de mim. Mas no primeiro canto furtei-lhe a volta e vim mais que depressa para casa... Ah, mas não posso escapar! O negrinho será preso com o corpo às costas; falará... Aqui virão, e o outro corpo... Está dito, nasci para morrer enforcado por causa das mulheres, que tantos trabalhos me têm dado. Vou ajuntar o pouco dinheiro que tenho e ponho-me ao fresco... Quem quiser que a enterre... Oh, diabo, deixei a porta aberta! (Dirige-se para fechar a porta do fundo.)

CENA XVIII

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O PEDESTRE, ao chegar à porta, recua por nela aparecer ROBERTO.


ROBERTO, da porta – Dá licença?

PEDESTRE, recuando – Ah! (À parte:) Estou perdido!

ROBERTO, entrando – Desculpe-me, se a estas horas...

PEDESTRE, à parte – Toda a hora é boa para se prender e enforcar um homem...

ROBERTO – Só muito poderoso motivo me obrigaria a incomodá-lo a horas tão indevidas...

PEDESTRE – Ai, que o homem não é o que eu pensei... Não me vem prender... Sem dúvida quer que eu lhe procure algum escravo fugido. (Alto:) Que ordena vossa senhoria?

ROBERTO – Senhor, há apenas doze horas que desembarquei chegando da Índia...

PEDESTRE – Ah, e ele já fugiu... Sem dúvida, ao desembarcar...

ROBERTO – Ele quem?

PEDESTRE – O seu escravo.

ROBERTO – Não é de um meu escravo que lhe venho falar.

PEDESTRE – Ah! (À parte:) Que diabo será? (Alto:) Então far-me-á o favor de dizer depressa o que quer. Bem vê que a estas horas... (Aqui Anacleta espreita pelo buraco da porta para [a] cena e nesse jogo continua.)

ROBERTO – Direi o que quero, e peço me desculpe. Há dezoito anos que um motivo, que é inútil agora dizer, obrigou-me a deixar o Rio de Janeiro, minha pátria. Parti para costa da África; mas antes, cruel e imperiosa necessidade obrigou-me a lançar na roda dos enjeitados minha querida filhinha. Com o coração partido de dor deixei esta terra, chorando a amante que o túmulo me roubara e a filha que deixava entregue a alheia caridade. Dezoito anos de exílio... Ah, mas à custa de privações e trabalhos conquistei uma fortuna de príncipe. (O Pedestre tira o boné que conservava na cabeça.) Uma fortuna colossal para oferecer à minha filha, que abandonada passara a sua mocidade... Esta manhã entrava eu pela barra; três navios preciosamente carregados seguiam-me... E estes três navios pertencem-me.

PEDESTRE – Três navios!

ROBERTO – Ao saltar em terra, apressado dirigi-me para a Santa Casa da Misericórdia, a fim de saber se minha filha ainda vivia. Como ia ansioso e trêmulo! Aí chegando, perguntei por essa inocente menina que havia dezoito anos dava-me forças para tanto sofrer e coragem para trabalhar... Dei os necessários sinais – uma cruz de ouro esmaltada, orlada de azul...

PEDESTRE, espantado – Uma cruz de ouro!

ANACLETA, da porta, à parte – Uma cruz de ouro!

ROBERTO – Foi-me respondido que essa menina, não tendo sido reclamada, o Recolhimento a dotara e casara. Perguntei com quem; disseram-me que com um homem que ao depois se fizera pedestre.

ANACLETA, da porta, à parte – Meu Deus!

PEDESTRE, assombrado, ao mesmo tempo – É ela! Oh! (Aqui Paulino principia a espiar pelo buraco da porta à esquerda; com cautela, porém, para não ser visto.)

ROBERTO – Com um pedestre! exclamei eu. Não importa. Se esse homem a tem feito feliz, se na pobreza a que seu estado o condena tem suavizado a sua sorte com os dotes de alma, se na vida doméstica a tem feito esquecer o abandono de sua mocidade, esse homem será meu genro. Amanhã terá um palácio magnífico, numerosos criados, ricas equipagens...

PEDESTRE, à parte – Oh, e eu a matei!

ROBERTO – ... ouro em que se possa fartar, ouro em abundância para satisfazer seus menores caprichos.

PEDESTRE, à parte – E eu a matei!

ROBERTO – Amanhã pisará o mais soberbo com a sua imensa riqueza e esmagará o mais rico com sua esplêndida ostentação.

PEDESTRE, à parte – Oh, e eu a matei!

ANACLETA, à porta e à parte – Meu Deus, é isto possível?

ROBERTO – Os homens que me ouviam deixaram primeiro passar esta torrente de exaltação e depois ensinaram-me a casa de meu genro. Meti-me em uma carruagem e dirigi-me para vossa casa. E agora, senhor, vós que sois o seu marido, ah, dizei-me: minha filha?

PEDESTRE, como alucinado – Vossa filha?

ROBERTO – Vive feliz? Não tem amaldiçoado seu pai?

PEDESTRE, no mesmo – Seu pai!

ROBERTO – Onde está ela? Quero abraçá-la.

PEDESTRE, no mesmo – Abraçá-la, abraçá-la!

ROBERTO – Sim, apertá-la contra o meu peito, fazê-la feliz... E a vós também, a vós que a tendes amparado. Oh, conduzi-me, conduzi-me para junto dela!

PEDESTRE, com a fisionomia desfigurada e tomando Roberto pelo braço – Vossa filha... está morta!

ROBERTO – Morta!

PEDESTRE – Sim, e fui eu, eu mesmo que a matei!

ROBERTO – Oh, grande Deus, que tenho ouvido? (Neste tempo Anacleta tem saído do buraco da porta.)

PEDESTRE, louco – Ela me traiu... seu amante... matei-os, fiz muito bem! Portas fechadas... nada valeram... Enganou-me... matei-a... Está morta! Palácios, equipagens, ouro, muito ouro, tudo ela me fez perder... Por sua causa viverei na miséria!

ROBERTO, como aniquilado – Meu Deus!

PEDESTRE – Oh, se ela não se deixasse matar, hoje tinha três navios, três! Diabos que me tentaram! Estava rico, rico, muito rico... Ah, mulher, o que me fizeste perder!

ROBERTO, com energia – Ah, sois o seu assassino? O assassino de minha filha? Ah, não saireis de minhas mãos!

PEDESTRE, sem dar atenção a Roberto – Mulher que me perdeste na vida e na morte, mulher que me danaste em vida e me arruínas na morte, mulher que me persegues ainda defunta, os diabos te levem!

ROBERTO – Ah, chamarei pela justiça, clamarei vingança!

PEDESTRE, como em confidência – Escutai, escutai... em segredo... que ninguém nos ouça...

ROBERTO – Assassino!

PEDESTRE, no mesmo – Escutai... eu vos darei um dos meus três navios para que lhe dês vida e eu possa assim ficar com os outros dois... Vinde, que ela ali está...

ROBERTO – Ali!

PEDESTRE – Sim, sim, está morta... Mas vós lhe dareis vida por um navio... vinde... silêncio... Dar-vos-ei um dos navios que ela me fez perder...

ROBERTO, deixando-se conduzir pelo Pedestre – Oh!

PAULINO, à parte, do buraco – Atenção, agora é que são elas... (Logo que o Pedestre e Roberto estão a dois passos da porta, esta abre-se repentinamente e Anacleta, que por ela saí, abraça-se com Roberto.)

ANACLETA, abraçando Roberto – Meu pai, meu pai!

ROBERTO, surpreendido – Ah!

PEDESTRE, vendo Anacleta, recua espavorido até a extremidade esquerda e vem encontrar-se à porta em cujo buraco está Paulino – Fantasma, fantasma!

ANACLETA, nos braços de Roberto – Sou eu, meu pai, sou sua filha, eis aqui a cruz... (Mostrando a cruz ao pai.)

ROBERTO, abraçando-a – Sim, sim, és minha filha! Filha, querida filha! Meu Deus!

ANACLETA, ao mesmo tempo – Meu pai, meu pai! (Enquanto Roberto abraça a filha e continua em uma cena muda de reconhecimento e expansão, o Pedestre está aterrorizado, encostado à porta, tremendo.)

[PEDESTRE] – É ela, é a sua alma! Deixai-me, deixai-me! (Diz isto ao mesmo tempo que Roberto fala com Anacleta.)

PAULINO, do buraco da porta para o Pedestre – O1á, não tenha medo... Não trema tanto...

PEDESTRE, ouvindo falar sobre a sua cabeça, olha, e vendo a cara de Paulino, diz com grande terror – Oh, também o outro fantasma! (Precipita-se para a porta do fundo, a fim de fugir.)

PAULINO, do buraco – Espere... (Continua a cena muda entre Roberto e Anacleta. Pedestre caminha para o fundo, e quando vai a sair, encontra-se com Alexandre, que trazendo ainda às costas Balbina, dentro [do] saco, vem preso por uma patrulha. A esta inesperada visita, dá um grito e recua para a extremidade direita do proscênio, e aí caindo de joelhos treme espavorido.)

CABO, entrando acompanhado dos soldados e Alexandre – Quem é o dono desta casa?

PAULINO, do buraco – Bravo, estamos todos reunidos!

ROBERTO – Soldados! O que é isto?

CABO – Quem é o dono desta casa?

ANACLETA, para o Cabo, apontando para o Pedestre – Ali está. Mas, sr. oficial...

CABO, indo para o Pedestre – Senhor, levantai-vos. (O Pedestre levanta-se.) Aquele negro foi encontrado na rua com um saco às costas, dentro do qual está um cadáver...

ROBERTO – Um cadáver!

ANACLETA, ao mesmo tempo – Um cadáver!

CABO – Sim, que daqui saiu. E do mesmo modo o trouxe para se proceder ao corpo de delito.

ROBERTO – Um cadáver!

PEDESTRE, levantando-se – Sim, um cadáver... (Apontando para Paulino, que se conserva no buraco da porta:) ... e ali está a sua alma!

PAULINO – Ah, ah, ah!

TODOS – Sua alma!

PEDESTRE – Fui eu que o matei! Abram e verão... Fui eu que o matei, assim como matei esta mulher...

ANACLETA – Eu estou viva, graças a Deus!

PAULINO, do buraco – E eu também...

ALEXANDRE, que a este tempo tem posto o saco em pé no chão e desatado a boca e descoberto a cara de Balbina – E esta também...

CABO – Oh!

ROBERTO, ao mesmo tempo – Oh!

ANACLETA – Balbina!

PEDESTRE – Vivos! Todos vivos! Ressuscitaram! Oh! (Dirigindo-se para a mulher:) Mulher!

ANACLETA, amparando-se com Roberto – Meu pai, salvai-me!

ROBERTO, para o Pedestre – Para longe!

PEDESTRE – Mulher, eu te matei... Eu o matei também... (Apontando para Paulino.) E tu e ele ficaram vivos nesta casa, juntos, fechados... e fechados por mim, por mim próprio! Oh, de que me serviu trancar portas e fazer duas mortes? (Dirigindo-se para – Balbina:) E tu te deixaste furtar por um negro, que eu mesmo conduzi para fora de casa... Oh, de que me serviram as fechaduras, os cuidados, os ciúmes, a palmatória? Oh, estou desenganado! (Dirigindo-se para Ro­berto:) Senhor, levai vossa filha, que já me não pertence... Eu a matei, estou viúvo... Dai-lhe todos os vossos navios e riquezas; ide morar com ela em um palácio, que eu não... Em um palácio! Oh, em um palácio, que tem tantas portas e janelas! Ah, esta casa só tinha uma porta, e assim mesmo... Não, não, levai-a... Não sei, não posso vigiar mulheres, estou desenganado, vou ser frade!

ANACLETA – André!

PEDESTRE – Arreda!

ROBERTO – Filha! (Retendo-a.)

PEDESTRE, para Balbina – E tu, que tão indignamente me enganaste, casa-te com este negro, que estou vingado!

ALEXANDRE – Aceito a vossa palavra. (Passa a mão no rosto e,limpando a face, mostra ao Pedestre.)

PEDESTRE – Oh, faltava-me esta! Minha resolução está tomada... (Para o Cabo:) Senhor, prenda-me e leve-me para o convento; eu quero ser preso. (Dizendo estas palavras, agarra na gola da farda de um dos soldados e na do Cabo.) Estou preso!

PAULINO, do buraco – Ah, ah, ah!

CABO – Largue-me, largue-me!

PEDESTRE – Não me deixem fugir...

ANACLETA – André!

BALBINA, ao mesmo tempo – Meu pai!

PEDESTRE, para as duas – Deixem-me, estou preso pela polícia para ser frade! (Para o Cabo:) Não me deixem fugir... Adeus, ó mundo, adeus, mulheres! Vamos! (Vai-se pelo fundo, levando o Cabo e soldado consigo.)

CABO, levado à força – Espere, espere!

ANACLETA – Meu pai!

ROBERTO, ao mesmo tempo – Filha!

BALBINA, ao mesmo tempo – Alexandre!

ALEXANDRE, ao mesmo tempo – Serás minha!

PEDESTRE, saindo pelo fundo – Vou ser frade!

PAULINO, do buraco – E eu vou dormir, que já deu uma hora... (Alexandre ajoelha-se aos pés de Balbina; Roberto abraça Anacleta. Cai o pano, ouvindo-se sempre a voz do Pedestre, dentro.)

PEDESTRE, dentro – Quero ser frade, quero ser frade!


FIM.