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Os Dois Amores/XVIII

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Eer a noite dos anos da "Bela Órfã"; noite de festa no "Céu cor-de-rosa", e que deveria ser de inocentes gozos para os numerosos convidados, que enchiam aquela fe­liz habitação.

Além da casa, que estava toda brilhante de luzes, o jardim tão querido de Celina achava-se também iluminado, e patente àqueles que quisessem aí passear.

Não havia certamente no "Céu cor-de-rosa" o luxo deslumbrante das festas dos milionários, que gastam; em compensação, porém, o bom gosto transpirava em tudo.

Mariana ostentava sua beleza tão especial, tão deslumbradora, tão perigosa.

Celina, que era como a princesa da festa, levava, sem querer, sem pensar, vantagem sobre a bela tia.

Uma simplicidade feiticeira presidira, como sempre, o seu toucador. Seus longos cabelos estavam atados com graça indizível, mas tão pouco trabalho pedia aquele penteado, que adivinhava-se para logo que era o resultado da destreza de suas mãozinhas; agradava ainda mais por isso. Um pouco para o lado esquerdo de sua cabeça, aparecia um botãozinho de rosa, como surgindo dentre as tranças de madeixas.

Seu vestido era o único que lhe convinha.

Uma virgem pede um vestido branco. A cor branca exprime a alvura de sua alma, a inocência de seu coração. Qualquer outro vestido assenta mal numa virgem.

Além disto, uns sapatinhos de cetim, e mais nada. Para que quer enfeites a formosa donzela?... para que, se a natureza se incumbe de enfeitá-la com os mais interessantes adornos?...

Tudo na "Bela Órfã" respirava encanto, graça, candura e inocência: era um anjo.

Não há sacrilégio nesta comparação.

Quando a mulher reúne às graças físicas, virtudes cristãs, pureza e bondade, pode por um homem ser comparada a uma santa ou a um anjo.

A uma santa, em qualquer tempo, em qualquer condição, que esteja essa mulher; mas contanto que reúna os encantos de espírito que há pouco foram apontados.

A um anjo, porém, somente enquanto é virgem; porque só então na mulher transpira essa inocência que é por força vinda do céu; essa inefável pureza que não pode existir se­não nos anjos e na virgem.

Os anjos são as virgens do céu, como as virgens são os anjos da terra.

Mas Celina tinha naquela noite um não sei quê de mais belo, de mais interessante em si, em seus modos, em seus olhares. Era um receio que se não compreendia, um pudor como nunca suscetível...

Quando teve de receber os cumprimentos de Cândido, cobriu-se seu rosto de uma onda de rubor... por que co­rava?...

Forçada a responder, sua resposta foi o murmurar de algumas frases trêmulas, quase imperceptíveis, que ela deixou passar por entre seus lábios, hesitando e tremendo... por que tremia?...

— Ah! D. Celina!.. tinha exclamado Mariquinhas, correndo para ela logo que entrou na sala. D. Celina! Estás hoje bela como nunca o foste tanto!

— Deveras?... perguntou Celina alegremente.

Dantes não lhe importava tanto o parecer bonita, gostava de sê-lo, como todas as moças. Desde, porém, os últimos três dias, a "Bela Órfã" desejava redobrar os seus encantos.

— Olha, tornou Mariquinhas, falando-lhe ao ouvido; estás tão galante, que, se eu pudesse, fazia-me moço durante esta noite.

— Mas para quê?...

— Para amar-te.

— Ora...

— Para pedir-te um beijo.

— Meu Deus! respondeu Celina corando; se tu foras um moço não te atreverias a ofender-me pedindo-mo; e sendo moça como és, não mo pedes, e eu to ofereço.

Aqueles dois rostos tão novos e tão lindos aproximaram-se, e soou o ruído de um beijo.

— Não tem tanta graça como teria o outro, disse Mariquinhas sorrindo.

— Ah! D. Mariquinhas! Você é mil vezes maliciosa.

Felícia, e muitas outras senhoras moças e belas também, vieram cercar a "Bela Órfã".

A música soou, convidando a dançar.

Os mancebos correram às senhoras; todas as contradanças, e mais ainda do que aquelas que se poderiam dançar nessa noite, foram pedidas e prometidas.

Insensivelmente a "Bela Órfã" correu com os olhos todos aqueles mancebos, como se algum procurasse entre eles... pareceu primeiro temer encontrá-lo, e depois entristecer-se por não vê-lo... realmente buscava ela alguém?

Cândido não se apresentou para dançar.

Sem motivo algum plausível, Celina negou a todos a segunda quadrilha; ela mesma não sabia por que a negava.

No último serão a "Bela Órfã" tinha dançado essa contra dança ao lado direito de Cândido; quereria a moça repreendê-lo assim, por não vir pedi-la naquela noite de seus anos?...

Há na vida das moças em que a educação e a inocência podem mais que as idéias livres e desabusadas de algumas sociedades que tudo pervertem, fatos tão pequeninos, ações tão leves e ingênuas, pensamentos soltos ao acaso, mas que às vezes envolvem tão importantes mistérios do coração, que é possível que tudo quanto se estava passando interiormente em Celina, esses receios misturados de desejos, essas inconseqüências enfim, não fossem mais do que a voz da natureza, que a próprio pesar da "Bela Órfã", ou sem que ela o sentisse, estivesse bradando-lhe no coração: — eu já amo!...

Tinham por momentos cessado as quadrilhas e valsas. Respiravam os pares. Duas senhoras haviam já, no intervalo daquelas, cantado.

— Então, Celina, disse o velho Anacleto, vindo direito à sua neta; já esqueceste uma promessa que te fizeram?...

— Que promessa?...

— A de se deixar ouvir aquele senhor, que como sempre lá está sentado no seu canto?...

— Ah! disse a "Bela Órfã", como recordando-se.

— Vamos a isto, tornou o velho.

E indo direito a Cândido, o trouxe para junto das senhoras.

— Eis o nosso novo cantor... teremos uma estréia esta noite.

Houve um movimento de curiosidade.

— O que pretende deixar-nos ouvir?... perguntou uma senhora.

— Uma ária de Bellini certamente, disse outra.

— Não, minhas senhoras, ousarei cantar um romance.

— Em italiano?...

— Também não, senhora, em nossa própria língua.

D. Mariquinhas fez com os lábios um momo de desagrado. Tinha razão.

O gosto estragado da época, que se faz excessivo em tudo, o é também na música, e como tal deu ao canto italiano um triunfo, uma palma universal, lançou para fora de nossas salas todos os cantos pátrios, como desterrou das igrejas os hinos sagrados. Rossini, Bellini, Donizetti e Auber, têm entre nós um tríplice trono, no teatro, nas salas, e na igreja.

— Pois então faça-nos o obséquio de dirigir-se ao piano, disse uma senhora.

— Não toco esse instrumento, respondeu o mancebo. Costumava em outro tempo acompanhar-me de harpa.

— Harpa! murmurou Mariquinhas ao ouvido de Celina; harpa; o moço é romântico.

Apareceu um criado trazendo a harpa de Cândido, que tomou lugar perto das senhoras.

Naturalmente acanhado, o mancebo afinou o instrumento com a cabeça baixa, medroso de encontrar todos aqueles olhos fitos nele.

Salustiano colocara-se defronte de Cândido com decidida intenção de confundi-lo com seu sorrir desdenhoso e sarcás­tico, e com sua luneta firmada insolentemente.

Soou um harpejo moderado, sonoro e vibrante...

Cândido ergueu a cabeça e cantou... o rosto do mancebo estava muito pálido, sua voz trêmula, comovida, mas era uma dessas vozes de tenor, que, sonora e penetrante, chegava ao coração dos que ouviam.

Ele cantava, pois:

Iguais são no fado, que têm a cumprir,

Iguais num mistério a bela e a flor;

Se a flor tem perfume, que o prado embalsama,

É délio perfume da bela o amor.

E a flor mais formosa, se não tem aromas,

No vale esquecida desabre e fenece;

E a virgem mais bela arrasta seus anos

Tristonha, isolada, se amor não conhece.

Iguais são no fado a bela e a flor,

Iguais no mistério, que vem revelar;

A flor deve os campos de aromas encher,

E a bela na vida amor cultivar.

E à rosa, que se abre fragrante, viçosa,

Em gruta profunda de vale escondido,

Por mais perfumada que seja, e se ostente,

Que serve o perfume na gruta perdido?...

E à virgem formosa, que o anjo dos risos,

Para encanto do mundo, ao mundo mandou;

Que serve o amor, se um ente obscuro,

Que o não merecia, foi quem ela amou?...

Faceiro favônio, que as flores namora,

Na gruta profunda a rosa festeja;

Depois pelos prados, de volta, voando,

Da rosa os perfumes no prado lenteja.

E o jovem poeta, que em fogo se abrasa,

Se da bela virgem amor mereceu,

Nos hinos sagrados, que manda ao futuro,

Eterna os encantos do amor, que valeu.

Iguais são no fado, que tem a cumprir,

Iguais num mistério a bela e a flor;

A flor quer favônio, que espalhe perfumes,

E a bela um poeta, que eternize amor.

A voz de Cândido, a princípio trêmula e abatida, bem depressa tornou-se firme, normal e somente comovida, como lho estava pedindo o seu cantar mavioso e terno; desde logo o mancebo esqueceu-se do lugar onde estava, dos olhos que o cercavam, e dos ouvidos que o ouviam. Era um artista, e como o verdadeiro artista, indiferente a tudo mais, ele só via a bela que o inspirava; e todo, todo se entregava à inspiração. Com olhares ardentes embebidos em Celina, modulava seu canto harmonioso, que parecia sair da alma.

Em profundo silêncio a assembléia mostrava-se suspensa e em êxtase; quando o mancebo acabou, soaram frenéticos aplausos... a comoção era geral; por alguns momentos não se pôde fazer mais nada.

Celina tinha compreendido aquele cantar do mancebo. O rubor de suas faces, a agitação de seu seio a traía, e ainda mais seus olhos pregados na figura graciosa de Cândido, pareciam aí presos por um encanto invencível.

Salustiano o compreendera também; a pesar seu, ele, rico e orgulhoso, sentia-se curvado ante a superioridade do talento. O gênio não pede, impõe respeito, e desafia inveja.

O triunfo de seu rival desenhou-se na imaginação de Salustiano, pronto e inevitável. A cólera, o despeito, todas as paixões que do ciúme se originam, ferviam em seu peito; e como se uma idéia sinistra acabasse de luzir-lhe na alma, ele deixou cair sobre Celina um olhar feroz e terrível, lançou a Cândido uma risada medonha, e cheia de um sarcasmo infernal, e foi direito a Mariana, que conversava com outras senhoras.

— Passeemos! disse ele com desdenhosa simplicidade.

Mariana levantou os olhos, e teve medo do aspecto de Salustiano.

— Passeemos! repetiu ele.

A viúva quis ensaiar um gracejo, que disfarçasse a perturbação que começava a sentir, e disse sorrindo:

— Já se viu como é moda hoje em dia pedir-se um passeio a uma senhora!

— Passeemos!... tornou Salustiano.

Mariana ergueu-se, e ainda para disfarce da perturbação, que nela ia crescendo, disse a suas amigas:

— Não há remédio... a escrava levanta-se para acompanhar o seu senhor.

Ao atravessar da sala, Mariana encontrou o olhar de Henrique descontente, cuidadoso, e como lhe dirigindo uma queixa.

— E disse bem, senhora, murmurou a seus ouvidos Salustiano com voz grave e terrível; disse bem; a escrava levantou-se para acompanhar a seu senhor.

— Como?! exclamou a viúva; pois neste lugar, e a esta hora...

— Neste lugar, em toda parte, e a todas as horas eu hei de persegui-la sempre!

— Oh! senhor!...

— Eu disse ser minha vontade que a esta casa não voltasse esse mancebo, que detesto; impus-lhe a obrigação de fechar-lhe as portas; e hoje.... ei-lo aí... devorando com os olhos a sua sobrinha...

— Mas é que meu pai...

— Sabe, senhora, que isso se chama abusar de minha paciência e desafiar-me?

— É muito!... exclamou a mísera mulher.

— Ignora que eu tenho em minhas mãos os meios de vingar-me; e que existe no seu coração um amor que eu posso destruir?..

A figura do velho Anacleto, nobre e respeitável, apareceu aos olhos de Mariana.

— Piedade! balbuciou ela: eis ali meu pai.

Salustiano arrastou a infeliz viúva para uma outra sala, e prosseguiu:

— Eu vou ter daqui a pouco uma hora de prática com o sr. Henrique.

Mariana estava pálida como uma finada.

— No fim dessa hora estarei vingado.

— Perdão!... murmurou a viúva ajuntando as mãos como se quisesse orar.

— Pois então... senhora, hoje mesmo, e antes que termine o sarau, esse mancebo deverá ter para sempre deixado esta casa.

E abandonando Mariana, que foi cair quase desmaiada sobre uma cadeira, Salustiano voltou à sala.