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Os Dois Amores/XXI

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O amor é a paixão das inconseqüências e dos absurdos.

A impossibilidade de bem defini-lo provém da mesma natureza desse sentimento. Tem-se escrito mi­lhões de volumes sobre o amor, e a inteligência humana ainda o não retratou com todas as suas cores, porque sempre ele se mostra com uma nova nuança.

Fizeram-no parente da amizade, deram-lhe até o grau de seu irmão; mas se realmente tanto nela como nele há sempre um pendor para o objeto que nos é grato, diferem ambos em tudo que resta, tanto e tanto, que parecem mais inimigos do que deviam ser dois parentes tão chegados.

Diferem muito, diferem nos princípios e rios resultados.

O belo título de amigo adquire-se à custa de uma longa provação, que dura anos. Aglomeram-se obséquios sobre obséquios; é preciso que o tempo e o trato mútuo de dois homens tenha feito conhecer a ambos sua também mútua dedicação, e o desinteresse e a paciência, e até certo ponto conformidade de sentimentos, e de sentimentos que sejam nobres; para que no fim de tudo isso saia o nome de — amigo, — não da flor dos lábios, mas do âmago do coração.

O amor não é assim: às vezes é a obra de um instante tão breve como um suspiro.

Às vezes não se estuda a nobreza dos sentimentos da pessoa a quem se vai, sempre involuntariamente, amar; e nunca se espera por nenhuma prova de dedicação e paciência, e não se pode esperar por alguma de desinteresse; porque o amor é terrivelmente interesseiro no seu gênero.

Às vezes dois olhos pretos, dois lábios de coral, e um instante para vê-los, resumem toda a história de um grande amor.

Pois bem, aí tendes um amor e uma amizade: o primeiro, filho do temperamento ou da simpatia, ou do que quiserdes; o filho, em suma, de um curto momento em que não houve nem reflexão nem vontade; a segunda, sentimento refletido, criado pela dedicação, amamentado pela virtude, educado cuidadosamente durante muitos anos.

Aí tendes a amizade, virgem encantadora cheia de pureza, de formosura, de graça e de castidade; e o amor, menino impertinente, audacioso, exigente, importuno, teimoso... para dizer tudo, menino malcriado.

O que é que acontece no correr da vida de ambos?...

Acontece que o filho do momento, que devia ser o mais fraco, é o mais forte; que o menino malcriado, que devia ser menos tolerado, é de quem se sofre. muito mais.

A amizade para viver precisa que a ajudem: é a lâmpada do templo, cuja luz se extingue se lhe falta o óleo; é necessário que a dedicação, o desinteresse, a paciência, que já tanto se provaram, vão sempre de seu existir dando novas provas, para que a amizade subsista; para que a virgem não fuja envergonhada.

E o amor?... amai, e vede: aquilo mesmo que destruiria para logo a mais antiga e enraizada amizade, é quase sem­pre um incentivo que dá mais vigor e mais fogo ao filho do momento.

Amai, e vede: a mulher que vos plantou no coração esse sentimento, vos desafia com seus rigores; vos faz escravo de seus caprichos; com um desdém arranca lágrimas de vossos olhos, e com uma lágrima vos faz dobrar os joelhos.

Na amizade, a traição faz esquecer; no amor, a traição faz enlouquecer.

As diferenças que existem entre os dois sentimentos continuam ainda; e, como devia acontecer, compensam finalmente os triunfos que sobre a amizade dão no princípio ao amor.

O orgulhoso que de si mesmo tirava suas forças, que vivia de seus caprichos, de desdéns e de lágrimas, devia por força cansar mais depressa do que a virgem modesta, que cami­nhava cuidadosamente à sombra de mil cuidados e guiada pela virtude e pela dedicação.

O tempo é portanto a vida da amizade e a morte do amor.

E assim como vimos há pouco, que aquilo mesmo que podia instantaneamente matar a amizade, era para o amor incentivo que lhe dava mais vigor e lhe tornava mais intenso o fogo; veremos agora, em compensação também, que o princípio que anima a primeira é causa do resfriamento e morte do segundo.

Queremos falar do gozo, porque, embora de natureza distinta, tanto o amor como a amizade têm o seu.

Dois amigos gozam-se com a troca de seus sentimentos e de seus cuidados, gozam-se partilhando mutuamente os pesa­res e os prazeres um do outro, ajudando-se na prosperidade e nos trabalhos da vida; e esse gozo anima o fogo do sentimento que o dá, enraíza ainda mais a amizade que o promoveu.

Agora o que acontece com o amor, perguntai a todos os esposos. Interrogai principalmente a todas essas belas moças, a quem se jurou paixão eterna; interrogai a essas... um ano depois de casadas.

Elas vos dirão o que desde muito tempo já foi dito — "o desejo é a medida do prazer".

Ou, o que pouco mais ou menos exprime a mesma coisa — "a morte do amor está no gozo".

Mas enquanto se não goza, flameja um desejo imenso que acende a imaginação, e os menores encantos são perfeições angélicas, e tudo é engrandecido e divinizado no objeto que se ama. Da mulher se faz um anjo.

Não há mais nada de terrestre nela. Houve uma metamorfose operada pela imaginação.

O desejo suspira às vezes como um favônio que brinca com as flores de manhã cedo; e logo depois brame como a tempestade, como o vento enraivado varrendo a floresta virgem.

Se há um abismo, o homem lança-se dentro dele; se lá dentro... se lá embaixo ele viu o rosto da mulher que ama...

Se há um muro de bronze, o homem trabalha uma vida inteira para lançá-lo por terra.

E nem os anos, e nem a ausência podem fazer esquecer a mulher que se ama.

Porque não houve gozo.

E pode a mulher ser caprichosa e ligeira; pode zombar, pode parecer inconstante, pode desdenhar, podem mesmo as­severar que ela é falsa; o homem estará preso a seus pés como um mísero escravo.

Porque não houve gozo.

É, com isto, e mercê destas considerações mil vezes já enunciadas de modo mil vezes melhor, que se explicava o amor extremoso e irresistível de que o jovem Henrique se achava possuído pela filha de Anacleto.

Henrique era um exemplo que se podia dar dos dois sentimentos que acabam de ser discutidos.

Laços de uma pura e virginal amizade o ligaram a Carlos. Grilhões de um amor tirânico e invencível o prendiam aos pés de Mariana.

A amizade porém dos dois mancebos era mais velha que o amor de um deles; e Carlos, com o zelo de um amigo fiel, tinha acompanhado todo o correr desse amor, que durante muito tempo se lhe figurou em abismo.

Com franqueza a lealdade combatera esse sentimento de Henrique durante seus primeiros tempos; apoiara sua via­gem à Europa, e, apesar de ler o nome de Mariana em todas as cartas de seu amigo, só começara a falar dela nas suas quando começara também a viuvez da filha de Anacleto.

Depois da volta de Henrique à pátria, acompanhava-o ao "Céu cor-de-rosa", e observava...

Os dois amigos estavam juntos na manhã que se seguia depois da noite dos anos de Celina.

Henrique achava-se pensativo e profundamente melancó­lico.

— Previ que estimarias ver-me hoje cedo, disse Carlos.

— Estimo ver-te sempre; que quer porém dizer a tua pre­visão?

— Adivinhei que estarias pensativo e triste.

— Então adivinhaste também o motivo?

— Também.

Henrique corou sem querer; ensaiou um sorriso, e perguntou:

— E qual é?...

— Sou teu médico, Henrique, e vi que a noite de ontem deveria fazer-te mal.

— E fez-me.

— Portanto, fiz bem em vir conversar contigo: necessáriamente tens muito que dizer-me.

— Não; tenho ao contrário alguma coisa que perguntar.

— Vamos, pois.

— Que observaste ontem à noite, Carlos?

— Provavelmente menos do que tu, Henrique.

— Menos do que eu?...

— Sim; porque eu examinei tudo com o olhar frio do observador, e tu viste tudo com os olhos enganadores da paixão.

— E então?...

— Então tu deixaste ontem o "Céu cor-de-rosa" com a convicção terrível de que tinhas um rival poderoso no jovem Salustiano.

— E tu?...

— E eu vim com a certeza de que a bela viúva detesta esse homem mais do que tu mesmo.

— É possível?!

— Mas eu trouxe também a certeza de que entre ela e Salustiano existe um segredo, que é uma barreira que se le­vanta contra o teu amor.

— Oh!... mas esse fatal segredo...

— É um segredo... não o saberás... não o saberemos.

— Mas eu daria meu sangue... metade de minha vida para poder arrasá-lo.

— E nunca o saberás.

Henrique torceu as mãos com violência, e depois exclamou com acento de dor profunda:

— Que eu não possa esquecer essa mulher!

E começou a passear por toda a extensão da sala visivelmente alterado.

Carlos acompanhava-o em silêncio e com os braços cruzados, até que enfim Henrique principiou a desabafar seus sofrimentos, falando.

— É incrível! exclamou ele: como se pode explicar este sentimento que tem feito o constante padecer de minha vida?... como é que pode em mim tanto essa mulher, que nem a razão, nem a ausência, nem a amizade poderão conseguir fazer-me esquecê-la?... como é que eu me prendo assim a uma rosa que me espinha; que me ofereço a um raio que me abrasa?! Oh! Carlos! Carlos! este amor é fatal como a maldição de um pai!...

— Eu to predisse: no seu começo fora possível vencê-lo; agora é tarde.

— Possível vencê-lo?! se não foras meu amigo, eu te desejaria um amor como este, para sentires como foi ele no seu começo; sabes o que é estar um homem devorado pela sede, e preso a uma coluna de ferro a dois passos de um rio de águas límpidas?... pois foi assim que eu vivi enquanto Mariana esteve casada; a minha sede era de amor, minha coluna de ferro era a honra, e essa mulher era para mim uma fonte de angélica pureza... oh!... foi muito horrível a minha vida!... foi muito horrível!

Carlos guardou silêncio.

— E agora? prosseguiu o apaixonado mancebo; — agora que nenhuma consideração digna de respeitar-se opõe-se ao meu amor; agora que eu não me envergonho declarando-o à mulher que tanto pode sobre mim; agora que eu a ouço todos os dias dizer que me ama, há de vir um homem, que até hoje desprezei, ostentar a meus olhos o poder que exerce sobre ela?... isto não é uma tentação abominável?... dize Carlos, dize, isto não é uma tentação capaz de perder-me pa­ra sempre?

Os olhos de Henrique flamejavam.

— O que queres dizer?... exclamou Carlos.

— Quero dizer, respondeu Henrique tremendo, que ontem à noite eu vi a mulher que adoro, levada pelo braço desse homem, pálida, abatida, trêmula como uma criminosa; e ele, arrogante, soberbo, terrível e feroz como um algoz; quero dizer que de então até agora eu tenho sonhado com um punhal... com a desonra...

— Insensato! bradou Carlos.

— Mais do que isso!

— Compreendes bem todo o sentido das palavras que pronunciaste?..

— Perfeitamente.

— Serás capaz de repeti-las?...

— Sem dúvida.

— Henrique, disse Carlos com voz triste e grave; falas com o teu amigo, responde pois seriamente. Pensaste já uma só vez em realizar esse pensamento abominável?...

Henrique hesitou.

— Esse pensamento é um crime, tornou Carlos, mas eu sou teu amigo para to perdoar; responde pois, pensaste já uma só vez em realizá-lo?.

Henrique empalideceu como um moribundo, e disse:

— Já... esta noite.

— Estás quase perdido! exclamou dolorosamente o amigo. a Henrique, escutando esse grito da amizade, atirou-se no sofá chorando desabridamente.

Carlos sentou-se, e refletiu durante muito tempo; o médico procurava um remédio para o seu doente; e o doente tinha medo daquele médico, que sempre se havia oposto ao seu amor.

No fim de meia hora, Carlos chegou-se para junto do amigo, e tocando-lhe no ombro, disse:

— Sê homem.

Henrique levantou a cabeça.

— Tenho pensado bem, continuou aquele; não vejo razão para tão grande dor.

— Como? perguntou Henrique.

— A bela viúva te ama.

O mancebo suspirou, e disse:

— E aquele homem?...

— É um vil... despreza-o...

— Era só isso o que tinhas para me dizer?...

— Não.

— Que mais então?

— Cumpre que tudo isto tenha um termo; e quanto mais cedo, melhor.

— Que devo fazer?... eu não sei nada... desvairo e choro.

— Pois bem: irás ao "Céu cor-de-rosa".

— Quando?...

— Hoje não; estás agitado demais. Irás ao primeiro serão.

— E depois?...

— Terás uma conferência com tua amada, e positivamente oferecer-lhe-ás a tua mão.

— E finalmente?... exclamou Henrique.

— Pedi-la-ás em casamento ao velho Anacleto.

— Tu mo aconselhas?... — bradou o amante abraçando com força a Carlos — tu mo aconselhas?...

— Sim! sim! respondeu este.

E depois continuou falando consigo mesmo:

— Dos males o menor.