Os Dois Amores/XXVIII
Entraram as duas moças na sala, e Salustiano, que se tinha recostado a uma janela, voltou-se para recebê-las.
Sentaram-se todos três.
Era bem de estudar-se a expressão fisionômica de cada uma daquelas três personagens.
Celina, que havia sido trazida quase à força para a sala, mostrava-se contrafeita e acanhada; sentou-se bem unida a Mariquinhas, cuja mão apertava como procurando uma defesa.
Salustiano esforçava-se para ostentar a impassibilidade de que se jactava; mas não podia esconder de todo a comoção que sentia na presença da moça que amava, e o quanto o contrariava uma terceira pessoa, que ele não queria encontrar ali naquela ocasião.
Mariquinhas completava o grupo. No meio dos dois desapontados aparecia risonho, belo e malicioso o rosto da interessante moça. Seus olhos vivos e travessos confundiam realmente Salustiano, que, a pesar seu, já não tinha sarcasmos para suas palavras, nem para seus sorrisos.
— Sinto havê-la incomodado... tinha dito Salustiano muito desenxabidamente.
— Oh! não, não nos incomodou, respondeu Mariquinhas; deu-nos ao contrário muito prazer.
— Seria isso possível?... perguntou o moço, fitando os olhos em Celina.
— Pois ainda duvida?... tornou a primeira.
— Perdão, minha senhora; mas considero tão subida essa felicidade que muito me custa acreditar nela.
— Ora esta!... eu achava a coisa muito simples!
— Talvez para V. Exa.
— Digo mesmo que a sua visita foi um verdadeiro obséquio que V. Sa. nos fez.
— Lhes fiz?! V. Exa. fala em nome de mais alguém?... perguntou sorrindo-se o moço.
— Certamente: falo também em nome da minha amiga.
Celina apertou com força a mão de Mariquinhas.
— Ai! não me apertes a mão, d. Celina!...
— Ora, d. Mariquinhas, você está sempre brincando!
— Mas, como eu dizia, V. Sa. nos fez um verdadeiro obséquio aparecendo aqui.
— Bem... suponhamos que V. Exa. não está apenas dizendo palavras muito lisonjeiras; suponhamos que eu tenho a vaidade de acreditar que fiz um verdadeiro obséquio a V. Exas. aparecendo aqui; devo porventura concluir que eu era esperado e desejado?
Mariquinhas pensou um momento; sorriu-lhe a malícia nos lábios, e depois respondeu:
— Esta d. Celina compromete as amigas terrivelmente! é capaz de conservar-se em silêncio um dia inteiro!
— Tenha V. Exa. a bondade de responder por ela.
— Pois bem: digo que não era positivamente V. Sa. quem desejávamos ver.
— Eis aí o que eu não compreendo.
— Queríamos a presença de um de certos cavalheiros, e V. Sa. serve-nos a mil maravilhas.
— Posso saber para quê?...
— Para um estudo particular.
— Ora!... eis-me compreendendo ainda menos do que ainda há pouco.
— Trata-se de um segredo de moças.
— Bem... não perguntarei mais nada.
— Oh! pelo contrário, pergunte. Eu sou como as outras; quando tenho um segredo, fico louca para contá-lo a todos; na alma de nós outras, um pensamento que se não deve revelar não é um segredo, é um martírio.
— Então, o que é segredo?
— Para as moças?...
— Sim, minha senhora, o que é um segredo para as moças?
— É uma coisa que se diz baixinho aos ouvidos de quase todos.
— Pois, nesse caso, minha senhora, peço a V. Exa. que, se me julgar digno disso, diga-me o seu segredo, ainda que seja baixinho.
— Oh! este pode-se contar em voz alta.
— Se portanto me supõe digno...
— Sem dúvida que o julgo; até V. Sa. nos há de servir de muito.
— Estou à espera, minha senhora.
— Trata-se de um romance...
— De um romance?!
— Sim, de um romance, que d. Celina e eu estamos compondo.
— Parabéns, minhas senhoras; mas eu não sei... V. Exas. querem porventura um terceiro colaborador?...
— Qual?...
— Eu. V. Exa. tinha falado em mim.
— Deus nos livre! perderíamos a glória de autoras.
— Por quê?
— Os senhores homens custam muito a julgar-nos capazes de escrever; e portanto era V. Sa. quem ganharia todas as honras da obra.
— Mas esse romance..
— É uma história de todos os dias e de todos os salões.
— Já está completa?
— A invenção completamos hoje; mas a execução nos está dando muito que fazer.
— O que falta?
— Quase tudo; atrapalha-nos grandemente uma das principais personagens.
— Por quê?
— Pela dificuldade de descrevê-la; mas V. Sa. chegou muito a tempo.
— E então?
— Então, é que enquanto nós conversamos, d. Celina vai tomando nota.
— Nesse caso eu...
— V. Sa. ou outro qualquer... V. Sa. é como quase todos...
— Obrigado, minha senhora.
— Cortou-me a palavra; não tem que agradecer-me, pois não sabe o que eu ia dizer.
— Adivinhei.
— Dou-lhe parabéns: veja se adivinha também o nosso romance.
— Não chego a tanto, minha senhora.
— Quer que lhe tracemos o esqueleto da nossa obra?...
— Terei muito prazer em ouvir a V. Exa.
— Não poderá fazer uma justa idéia do que será, pela falta dos episódios e dos diálogos.
— Oh! mas eu compreendo o que poderá fazer uma pena manejada por quem deve à natureza tanto espírito como V. Exa.
— Agradecida.
— Creia V. Exa. que faz um relevante serviço à tão atrasada literatura do país.
— Muito agradecida, respondeu Mariquinhas rindo-se, e sem dar mostras de doer-se da ironia com que Salustiano tentava feri-la.
— Era uma necessidade que desde muito palpitava, tornou Salustiano; o céu devia ao Brasil uma Stael, uma George Sand.
— Mil vezes agradecida; mas então V. Sa. não quer ouvir o nosso romance?
— Estou pronto, minha senhora.
— Trata-se de amor.
— Eu o previa.
— É uma jovem senhora de cabelos castanhos quase pretos, olhos de safira, lábios de coral, rosto pálido, enfim, uma jovem senhora bela e muito parecida com d. Celina.
— D. Mariquinhas, basta!... isso é quase demais! disse a "Bela Órfã".
— Quem fez a pintura da moça fui eu, e portanto posso falar. A respeito do protagonista falará então você.
— Continue, minha senhora.
— Pois bem: essa moça, a quem eu ainda não dei nome, ama um jovem modesto e bonito, e é por ele apaixonadamente amada; mas o jovem é pobre e acredita que sua pobreza é um muro de bronze erguido entre ele e a bela de seus pensamentos.
Salustiano empalideceu sem querer, ouvindo as últimas palavras de Mariquinhas. Começava a compreender o que queria dizer aquele romance.
— Acha-se incomodado?... perguntou Mariquinhas encarando Salustiano.
— Oh! não! pelo contrário,..
— Cheguei a pensá-lo, sr. Salustiano, porque V. Sa. mudou de cor.
O mancebo serenou, e respondeu sorrindo:
— Ah! foi efeito da interessante narração de V. Exa. Sensibilizei-me... realmente o seu romance é muito sentimental... toca no coração.
— Sim.. sim, tornou a moça; eu creio bem que ele tocará o coração de V. Sa.
— Mas, concluiu-se?...
— Certamente que não; ficaria sem sentido, sem pés nem cabeça.
— Era mesmo assim excelente... estava na moda; porém já que o romance não termina aí, quererá V. Exa. ter a bondade de contar-me o resto?
— Pois não! com sumo prazer; temos, como eu dizia, uma moça bela e um jovem pobre que se amam muito... romanescamente; até aí não há senão um idílio; imaginamos pois, imaginamos não, foi d. Celina quem imaginou uma espécie de tirano de comédia, um outro namorado da heroína, um mancebo rico, honrado, e vaidoso de sua fortuna, que se vem erguer como uma barreira terrível entre os dois amantes.
Celina apertava a mão de Mariquinhas de instante a instante; mas não se atrevia a dizer palavra.
— E depois?... perguntou Salustiano.
— Depois as cenas se sucedem... deverão haver lutas domésticas, esperanças que morrem e revivem... jogo de afetos... e finalmente..
— Finalmente...
— Boa pergunta! por fim de contas triunfa o amor inocente e puro... triunfa a inspiração de Deus... o moço pobre alcança a mão da moça bela.
— E o outro?
— O outro!... exclamou Mariquinhas dando uma risada; o outro deve muito provavelmente ficar com cara de tolo.
Salustiano mordeu os beiços. Mariquinhas prosseguiu:
— Mas veja... estávamos em uma verdadeira dificuldade!
— Qual?...
— Não sabíamos como descrever o tal sujeito rico, ousado e vaidoso...
— Ora! que modéstia a de V. Exa!... com tanta imagina, espírito tão atilado...
— Sim... sim... porém nós queremos seguir à risca a natureza... procurávamos pois um original, quando V. Sa. chegou.
— O último golpe acabava de ser dado tão diretamente que Salustiano corou até a raiz dos cabelos.
— Compreendo tudo, minhas senhoras!...
— Ora... pois o que compreendeu?
Salustiano pensou alguns momentos, e depois respondeu:
— Que devo também escrever um romance.
— Ah! disse Mariquinhas, então isto é contagioso?!
— Creio que sim, minha senhora.
— Tanto melhor, tornou a moça rindo-se; creia V. Sa. que faz um relevante serviço à tão atrasada literatura do país.
— Agradecido.
— Eu estou pensando já no muito que poderá fazer uma pena manejada por quem deve à natureza tanto espírito como V. Sa.
— Muito agradecido.
— Era uma necessidade que desde muito palpitava; o céu devia ao Brasil um Cooper, um Walter Scott, um Dumas.
— Mil vezes agradecido.
— Quando começa a escrever?...
— Ora... já está metade escrito.
— Já!.. e então!...
— É o mesmo de V. Exas.
— O mesmo?... não... não... seria um triste roubo feito a duas pobrezinhas.
— Mas o meu romance, que se parece muito com o de V. Exas. até o meio, difere completamente no fim.
— Como?
— No meu romance triunfa o moço rico, o ousado e vaidoso...
Celina ergueu a cabeça nobremente, e fitou os olhos em Salustiano.
— Crê então, que isso chegue a ser verossímil?... perguntou Mariquinhas.
— Não será somente verossímil, tornou Salustiano elevando a voz com incrível audácia, ha de ser também uma realidade.
— Bravo!... exclamou Mariquinhas; isto me está parecendo um desafio.
— Pois seja um desafio; veremos qual dos dois romances se realiza.
— Aceito, disse, levantando-se, a "Bela Órfã".
O rosto de Celina estava aceso de rubor e de cólera: em pé, ela encarava Salustiano com olhos cheios de fogo.
— Minha senhora... ia murmurando o moço.
— Eu lhe disse que aceito o desafio, senhor!... exclamou Celina. Não é bem claro isto?
Reinou então silêncio por alguns instantes, até que Salustiano despediu-se com seu sorrir sarcástico nos lábios, e saiu com o desespero e a raiva no coração.
— Bem bom! bem bom! disse Mariquinhas batendo palmas com uma alegria infantil.
— Fizeste mal, d. Mariquinhas.
— Pois sim... concedo, fiz mal; porém tu, d. Celina, fizeste muito bem.
— E agora?... quem sabe o que me espera?...
— Que nos importa o futuro? o futuro é de Deus.
— Mas eu preciso que me animem; eu sou fraca e sou só.
— Vem portanto animar-te... subamos ao segundo andar.
— Para quê?...
— Vamos ler de novo a história do teu amor.
— Oh!... sim!... tu és louca como eu, d. Mariquinhas; mas o que acabas de dizer deve ser verdade.
— Vamos pois...
— Vamos.
As moças subiram a escada correndo, como duas crianças travessas; entraram no quarto de Celina... abriu-se a gaveta onde deveria estar a história do amor da "Bela Órfã"...
— Os meus papéis!... exclamou esta.
— Que há então?... perguntou Mariquinhas.
— Eu os tinha posto aqui.
— É certo..
— Oh!... furtaram-mos!...
— Meu Deus!...
— Os meus papéis!... a minha história!... exclamou dolorosamente a "Bela Órfã".
— Como pode ser isto?...
— Onde estarão eles?...
— Quem entraria aqui?... perguntou Mariquinhas.
— Eu não sei... eu não podia ver!... o que eu sei, o que eu vejo é que estou perdida. Oh! isto foi uma desgraça!...
— Quem sabe?... disse Mariquinhas com ar pensativo; também pode ser que seja uma felicidade.