Os Dois Amores/XXXIII

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Àquele dia tão cheio de acontecimentos de imensa importância para os amores de Mariana e Celina, tinha de seguir uma noite não menos fértil.

Eram oito horas.

A voz da velha Irias acabava de chamar a Cândido para cear.

O mancebo, alegre como nunca o estivera em toda sua vida, desceu as escadas do velho sótão, e entrando na saleta do "Purgatório-trigueiro", encontrou sua mãe adotiva risonha e prazenteira, como em nenhuma outra noite se mostrara a seus olhos.

Era talvez uma noite de festa aquela que se estava passando na pobre casa; sobre a mesa havia dois pratos a mais; contra todos os antigos hábitos uma garrafa de vinho e dois copos se apresentavam aos olhos de Cândido; e para que nada faltasse, um vaso de flores naturais à mesa.

— O que é isto, minha mãe?... perguntou Cândido sor­rindo.

— É uma noite de prazer, meu filho, respondeu a velha; e graças a Deus que o teu rosto se está parecendo com o meu coração; sorriem ambos. Estás alegre hoje?...

— Oh! muito! muito!... tanto que tenho medo do meu prazer.

— Por quê?...

— Porque receio sentir-me dobradamente infeliz ao depois.

— E qual é o motivo de tua inesperada alegria hoje?...

— Minha mãe, eu vos peço perdão; mas é um segredo do meu coração.

— Pois bem... eu o respeito.

— E será igualmente um segredo do vosso, o prazer que vos transpira no rosto e que em tudo mais se demonstra em nossa velha casa?...

— Segredo ou não... eu to direi.

— Quando?...

— Mais tarde.

— Bem... esperarei; mas dir-me-eis hoje?

— Sim; depois de cearmos.

— Pois ceemos.

A velha e o moço sentaram-se, e começaram a comer com a melhor vontade.

— Minha mãe, disse Cândido, nunca me senti tão feliz!...

— Nem eu tão alegre, meu filho; bendito seja Deus!...

— Qual de nós terá razão?

— Nós ambos.

Acabado o primeiro prato, a velha encheu os copos, e disse:

— Cândido, bebamos este copo de vinho pela causa do meu prazer e pela tua ventura.

— Oh! sim! minha mãe!...

— À saúde desta feliz noite! exclamou a velha com as lá­grimas nos olhos.

— Sim... sim; e também à felicidade da tarde que passou!

Os copos esvaziaram-se.

A ceia prolongou-se até às nove horas. A velha e o man­cebo conversavam alegremente. Nunca uma noite igual se havia passado no "Purgatório-trigueiro".

Quando terminada a ceia, a velha escrava de Irias acabava de retirar-se, Cândido lembrou à sua mãe adotiva a promessa que lhe tinha feito.

— Já ceamos, minha mãe; e eu estou ansioso de conhecer o vosso segredo.

— Ainda não... creio que ainda é cedo. Que horas serão?...

— Mais de nove.

— Pois espera até as onze.

— Por que então?

— É uma puerilidade. Quero começar a falar às mesmas horas em que me bateram à porta.

— Em que vos bateram à porta?...

— Sim.

— E para quê? perguntou Cândido curioso.

— É a minha história... é o meu segredo.

— Vós aguçais a minha curiosidade, minha mãe!

— Tanto melhor.

— Falai por quem sois!

— Às onze horas da noite.

— E até lá o que faremos?

— Eu, respondeu a velha, pensarei no presente que me trouxeram a essa hora.

— E eu?...

— Tu... ora... tu podes muito bem pensar na tua ventura da tarde que passou.

— Dizeis bem, senhora!... exclamou o mancebo.

E fechando os olhos, com os lábios dilatados pelo mais gracioso dos sorrisos... pensou em Celina, até...

Até as onze horas da noite.

Quando os sinos deram o sinal dessa hora, Cândido, como despertando de um sono feliz, exalou um profundo suspiro, e abrindo os olhos, viu Irias sentada diante dele:

— Onze horas! disse o mancebo.

— Sim, é tempo, respondeu a velha; eu vou falar...

Irias e Cândido respiraram e arranjaram-se em suas cadeiras, como se aquela tivesse de contar, e este de ouvir uma dessas longas histórias que se contam nas noites de inverno. E a velha falou:

— Há vinte e um anos...

— Há vinte e um anos?! exclamou o mancebo interrompendo Irias; há vinte e um anos?! não é essa a minha idade?

— Creio que sim.

— A vossa história tem pois relação...

— Saberás, se me quiseres ouvir.

— Falai, disse Cândido torcendo as mãos com vivos sinais de impaciente curiosidade.

A velha continuou:

— Era noite; mas não como esta, que vai indo fresca e bela com seu majestoso e claro luar. Era uma noite de tempestade; a chuva caía a cântaros... os relâmpagos acendiam com intermitência cheia de temores um fogo infernal que cegava; os trovões faziam estremecer os móveis e as casas...

— Má noite!... murmurou pensativo o mancebo; má noite!... que presságio!...

— Que é isso? disse Irias; fazes-te melancólico?

— Não é nada, continuai.

— Eu estava de joelhos diante da imagem de Nossa Senhora das Dores... rezava tremendo pelos navegantes... e por mim. Nossa escrava respondia às minhas orações... a tempestade... a trovoada continuava cada vez mais horrível, quando às onze horas...

— Às onze horas...

— Uma mão pesada e forte bateu à porta de nossa velha casa... corremos ambas, eu e a escrava: "quem é?.." perguntei.

— Abra pelo amor de Deus; disseram da rua.

— Abri.

Recuei espantada diante de um vulto que entrou: era um homem alto e envolvido em longa capa negra.

— Nada receie, disse ele sem se desembuçar.

— Quem é o senhor? e o que quer de mim?... perguntei.

Em vez de responder-me, o homem fechou a porta por onde acabava de entrar, e ao som dos trovões... perguntou-me:

— A senhora é cristã?

— Eu rezava quando o senhor bateu, respondi.

— Pode-se rezar e não crer, tornou-me. Pergunto se é cristã, se sabe sê-lo.

Por única resposta mostrei-lhe a imagem de Nossa Senhora das Dores, a cujos pés tinha eu estado há pouco.

— Nossa Senhora das Dores! exclamou o homem desconhecido: o símbolo da maternidade! a mãe de todos os homens!... de joelhos pois, senhora.

Eu me ajoelhei de novo diante da imagem, e o desconhecido prosseguiu:

— Em nome da mãe de Deus, que é também, e principalmente, a mãe dos órfãos e dos pobres, aceita, mulher, como teu filho esta infeliz criança recém-nascida, que não tem por si no mundo senão o olhar piedoso que do alto do céu está sem dúvida lançando sobre ele a Virgem...

— E tem tudo portanto! acrescentei eu com o coração cheio de fé.

O desconhecido lançou para trás a capa, e entregou-me uma inocente criancinha recém-nascida, que acabava de fazer o seu passeio no mundo ao clarão dos relâmpagos e ao som dos trovões.

Recebi-a de joelhos como estava; era tão galante essa criança! jurei amá-la como se tivesse saído de minhas entranhas; jurei pela Santa Virgem, que seria sua mãe.

A criança dormia tão sossegada!

Olhei para a imagem da Senhora... pareceu-me que sorria... que me estava animando com um olhar protetor...

A chuva tinha parado... os trovões não se ouviam mais: era sem dúvida um milagre de Nossa Senhora.

Examinei a criança... era um menino.

— Como se chama este menino? perguntei.

— Ainda não tem nome.

— Que nome lhe darei?

— O que quiser.

— Sua família?

— Pois não está vendo que é um enjeitado?

— Bem, eu o adoto; é meu filho.

— Deus lho há de pagar, disse o desconhecido. Mas a senhora é pobre... eis aqui com que pagar-lhe a ama. Depois... se ele viver, uma mão misteriosa cuidará em sua educação; como um amigo incógnito velará por ele.

E deixando sobre a mesa uma bolsa cheia de ouro, o desconhecido envolveu-se de novo em sua capa, abriu a porta e desapareceu.

A noite já estava bela e clara; bela e clara como o dia.

Fiquei só com o menino.

— E esse menino, disse tristemente Cândido, esse menino era eu.

Examinei-o todo, continuou a velha; e nem uma letra em suas roupinhas para designar sua família, e nem um sinal em seu corpo para fazê-lo conhecido de seus pais.

— Oh!... é minha mãe, senhora? perguntou Cândido.

— Abençoada seja essa noite, exclamou a velha sem atender a seu filho adotivo. Tu, Cândido, foste crescendo ao pé de mim sempre belo, feliz e engraçado. De ano em ano, à mesma noite, às mesmas horas, o homem desconhecido, embuçado em sua capa negra, vinha agradecer-me os cuidados que o meu amor gastava contigo, e deixar-me ora uma bolsa repleta de ouro, ora uma carteira contendo soma considerável em relação às pequenas despesas que me obrigavas a fazer.

— E esse homem nunca falou?... nunca disse nada a respeito de meus pais?

— Nunca. E tu eras tão pequeno, que jamais me veio à lembrança contar-te a história dessa noite. Depois, quando chegaste aos treze anos de idade, esse homem te veio arrancar dos meus braços... e sabes quanto tempo estivemos se­parados?

— Oh! eu o vi então! esse homem de roupas negras... eu me hei de lembrar sempre...

— Voltaste, continuou Irias, e é esta a primeira noite de teus anos que passamos juntos depois da tua volta. Quis referir-te o que se passou nessa noite, que começando em tempestade, acabou tão bonançosa. Oh! foi uma bela noite! bem feliz!... bem ditosa para mim.

— A noite em que me enjeitaram! balbuciou o mancebo.

— Todos os dias agradeço a Deus a felicidade de me haver feito tua mãe, porque tu és a consolação e amparo da minha velhice.

— Obrigado, senhora.

— Porque tu me amas como eu te amo.

— É certo.

— Porque tu me fazes ditosa, e hás de ser ditoso também.

— Ah! quem sabe?!

— Hás de o ser. A Senhora das Dores presidiu à hora feliz em que te eu adotei; tu és seu filho também... confia nela.

— E minha mãe?! exclamou o mancebo.

— E que outra melhor mãe do que ela?...

— Oh! nenhuma; mas aquela que me concebeu tem di­reito ao amor do meu coração!... oh! minha mãe!... minha mãe... para que eu enxugue suas lágrimas se ela chora...

— Espera.

— Tanto tempo!

— Espera; confia na Santa Virgem, a quem te recomendei quando te recebi em meus braços; a Santa Virgem te mos­trará tua mãe...

— Oh! que eu a veja!...

— Bateram na porta.

— Batem... disse a velha.

— Quando eu pedia minha mãe!...

Bateram de novo.

— É talvez ele.

— Quem?...

— O desconhecido.

Cândido lançou-se para a porta, que se abriu imediata­mente.

Entrou um vulto preto.

— É ele! exclamou a velha.

— Não, respondeu Cândido; é uma senhora de mantilha.