Os Fidalgos da Casa Mourisca/IX

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IX


Duram pouco as effusões, dissipa-se em breve o enthusiasmo dos primeiros instantes, em que tornamos a vêr scenas e pessoas conhecidas, de que por muito tempo vivemos separados. A alma, de subito agitada, readquire gradualmente a serenidade do costume; e o coração, que julgava saciar emfim a ancia de mal definidos gozos em que continuamente vive, conhece que ainda não chegou essa hora; porque o invadem de novo as mesmas vagas e inquietadoras aspirações que sentia.

É grande a alegria do regresso, mas rapidos os momentos, em que se experimenta na sua intensidade. Chegou-se de longe a phantasiar um prazer perduravel, sem fim e, apoz as primeiras e irreprimiveis expansões, desvanece-se a illusão em que se vinha; como sempre, como em toda a parte, o vazio sente-se no coração, que nenhum gozo enche, e ahi se volta a aspirar sem saber a quê, e a aguardar uma nova aurora sem saber d'onde.

Quando, á noite, Bertha se retirou emfim ao seu antigo quarto, havia já satisfeito a sêde de affectos e de saudades, que a devorava, ao chegar.

O coração batia-lhe com o rithmo normal, habituára-se de novo a sua sensibilidade aos objectos que lhe foram familiares na infancia; da impressão que o primeiro olhar que lançou sobre elles lhe produzira, já nem indicios restavam.

O passado, resuscitando, perdêra já o prestigio e a poesia, que só como passado tem.

Ó feiticeiras fadas, que nos acompanhaes quando por longe andamos, devorados de saudades, a lembrar-nos da terra em que nascemos, porque tão depressa nos abandonaes á chegada? Porque dissipaes os vapores inebriantes de que rodeaveis aquellas imagens aos nossos olhos fascinados, e nos fazeis vêr a realidade como a viamos d'antes?

Bertha, só no remanso e solidão do seu quarto, sentiu uma profunda melancolia tomar-lhe o coração. Os cuidados e disvelos de Thomé e de Luiza não tinham sido sufficientes para transformar completamente aquelle aposento em um d'esses recintos, perfumados e graciosos, em que respira, como em atmosphera propria, uma mulher delicada.

A este desconforto relativo não podia ser de todo insensivel a organisação feminil de Bertha.

Sem que ella propria tivesse consciencia do que lhe produzia esse effeito, sentia-se com uma disposição para lagrimas, que a surprendia.

O socego da hora, o silencio do campo, apenas cortado por uns indistinctos murmurios, que são o mysterio das noites campestres, conspiravam para augmentar-lhe esta melancolia.

Ha horas assim, em que parece que sentimos confranger-se dentro de nós o coração, e o futuro escurecer e contrahir-se o circulo que nos abrange a existencia, como um horizonte, que as nuvens pesadas da tempestade estreitam cada vez mais a suffocar-nos.

Não accusem Bertha por esta inexplicavel tristeza que lhe invadiu o coração na propria noite, em que voltára á casa paterna. Não duvidem por isso dos affectos d'aquella amoravel indole de mulher.

Nem todas as almas nascem dotadas da commoda flexibilidade com que algumas a tudo se amoldam. Ha-as tão delicadas, que a menor mudança resentem.

Os corações que se prendem depressa com raizes onde se demoram, são os que mais soffrem nos primeiros momentos de uma transplantação.

Não era isto em Bertha pezar por ser tão modesta a casa dos seus paes; a sua tristeza era mais de instincto , que de razão. E pelas impressões que vem do instincto, ninguem é responsavel; só á razão ha direito de pedir contas, e a de Bertha não recearia prestal-as.

Como para fugir á estranha melancolia que a dominava, Bertha chegou á janella do quarto, que deitava para os campos.

Ha uma mysteriosa solemnidade no espectaculo que de noite, e noite de pouca luz, se goza assim de uma janella aberta, no campo. Ha fóra um silencio que amedronta, uma escura vastidão que apavora, silencio que ás vezes interrompe o rastejar furtivo de um reptil, o cahir de uma folha, e não sei que outros ruidos vagos; escuridão, onde parece distinguir-se o movimento de umas fórmas estranhas e monstruosas.

Se vos demoraes silenciosos n'essa contemplação por algum tempo, já não a interrompereis por uma palavra, por um movimento, sem que essa interrupção vos sobresalte ou intimide quasi. Estremecereis ao ouvir-vos no meio d'aquelle silencio. Instinctivamente falla-se baixo. Parece que aquella paz, que aquella quietação, que aquella treva nos absorve, que nos domina, que nos attrahe e que de alguma maneira nos faz parte integrante de si mesma.

Opera-se em nós uma quasi magnetisação. Adormece a sensibilidade que nos revela o mundo exterior; exalta-se o espirito; e o ruido, que nos acorda d'este sonho, faz-nos estremecer. E o que se pensa calado n'esses momentos, Sancto Deus! Como a imaginação vagueia, como parece que d'aquellas confusas sombras, que temos diante de nós, nos surjem as memorias do passado e veem, em silencioso vôo, adejar sobre as nossas cabeças e estontear-nos com as suas rapidas e vertiginosas voltas.

O passado de Bertha era uma singela historia dos mais innocentes affectos. Não havia n'ella a intensa luz dos amores, apenas o debil clarão da aurora que os precede, essa mysteriosa vibração de alma, que sente nascer em si faculdades novas.

Eram pois imagens apraziveis as que n'aquelle momento lhe appareciam.

Entre ellas a mais persistente era a da sua pobre amiga Beatriz, a delicada criança, que parecia ter vivido sómente para semear de saudades o coração de quantos a conheceram.

Reviviam para Bertha n'aquella hora todas as scenas da infancia passadas com ella; os jogos, os folgares e até as lagrimas, choradas em commum.

Que tempos!

E ao lado da meiga e pallida figura de Beatriz surgiam as das outras duas crianças, seus irmãos. Via o rosto infantil de Jorge, no qual já então havia uns assomos da seriedade do seu caracter futuro; lembrava-se Bertha das vezes em que elle tomava um ar grave para admoestar ou reprehender os seus mais turbulentos companheiros, e do respeito que todos lhe tinham, e do muito em que estimavam a sua opinião; e a contrastar com esta serena imagem, esboçava-se a do inquieto, vivo e estouvado Mauricio, criança prompta nos risos e no chôro, violenta nas expansões, tão amoravel como colerica, e em cujo coração infantil ferviam já nascentes as paixões de homem. Era esta talvez de todas a imagem que avultava mais distincta nas recordações de Bertha. Que de episodios em que ella recebia a luz principal do quadro! Dos dois irmãos fôra este o predilecto; o seu coração de criança abrira-se mais á franqueza de Mauricio, do que á seriedade de Jorge; havia no olhar d'este uma expressão grave que a intimidava. Depois a differença da idade concorria para augmentar esse effeito.

E Bertha, pensando n'isto tudo, erguia os olhos para o vulto da Casa Mourisca, onde se tinham passado aquellas alegres scenas. Era escuro todo elle, e parecia alli posto, como um d'estes monstros enormes, que guardavam os jardins encantados.

De repente o monstro abriu um olho.

Appareceu uma luz em uma das torres do palacio.

Era a unica que divisava em toda aquella escuridão.

Bertha não pôde mais desviar os olhos d'ella.

De quando em quando, desapparecia momentaneamente a luz, como se alguem passeiasse diante. Depois fixou-se, e sómente mais de espaço a espaço se eclipsava, para surgir mais viva. Tudo parecia indicar que se velava alli dentro.

—Será o snr. D. Luiz?—perguntava a si mesmo Bertha, observando a luz.—Em que pensará elle a estas horas? Pobre velho, alli só, n'aquella casa deserta!… É em Beatriz de certo que pensa como eu… Ou, quem sabe? talvez não seja o fidalgo, mas algum dos filhos; Mauricio, provavelmente… Sim, alli deve ser o quarto d'elles…

E a imagem do mais novo dos filhos de D. Luiz entrava outra vez no campo da visão de Bertha.

As palavras que trocára com elle aquella tarde, a maneira como a olhára, e o que o pae depois lhe dissera a respeito do rapaz, tudo a fazia reflectir.

Adivinharia Thomé com o seu bom instincto de homem do campo?

Haveria para o coração de Bertha perigos na presença de Mauricio?

Era tão natural! Em uma alma, preparada para o amor, e que, á similhança da noiva nos livros sagrados, espera ha muito, perfumada de mirrha e de puros aromas, o noivo que tarda; encontra tão facil asylo a imagem de um adolescente, como Mauricio, sobre tudo se o rodeia o prestigio das saudades de um passado ridente e o vago reflexo que sempre deixam de si umas pueris paixões, com que se illudiu a infancia, que razão tinha Thomé para receios e razão tinha Bertha para, pensando n'elles, sondar com inquieta apprehensão o sanctuario dos seus mais intimos affectos.

Prolongou-se esta contemplação em Bertha, e succederam-se-lhe no espirito os mais diversos pensamentos, emquanto os olhos se fixaram na luz da Casa Mourisca. Só muito tarde desappareceu subitamente essa luz. Bertha, como acordando de um sonho, voltou-se então para o interior do quarto, do qual lhe parecia haver andado longe em todo aquelle tempo.

A vela, quasi gasta, que tinha ao lado do leito, mostrava-lhe o muito que, sem o sentir, se prolongou aquella sua abstracção.

A vista dos objectos do quarto evocou-a á realidade. Passou as mãos pelo rosto, como para desviar de si a sombra dos graves pensamentos que a opprimiam, sacudiu a cabeça suspirando, e procurou serenar o espirito, para dormir.

—É necessario ter juizo—murmurava ella, soltando as tranças—e soprar quanto antes estes nevoeiros que me rodeiam, para vêr, como elle é, o sol da realidade. É tempo de me deixar de loucuras, e de aceitar a vida que tenho a viver, como ella deve ser aceita por uma mulher como eu. Os annos de criança passaram.

E adormeceu n'esta prudente e ajuizada resolução.

Assim como a luz, que, por entre as trevas da noite, rompia de uma das janellas da Casa Mourisca, tivera quem a observasse e prendesse a ella uma longa serie de pensamentos; tambem a do quarto de Bertha não se perdêra no espaço, sem encontrar uns olhos que lhe recolhessem alguns raios na passagem.

Jorge era quem velava no unico aposento alumiado do velho solar do fidalgo.

Costumava prolongar a sua leitura e os seus estudos por altas horas da noite, interrompendo-os de quando em quando por demorados passeios no quarto, ou melhor diremos, continuando-os assim.

Era d'elle o vulto que Bertha via passar por diante da luz, occultando-a momentaneamente.

Esta noite havia porém mais agitação em Jorge do que lhe era habitual; os seus movimentos tinham o que quer que era nervoso e quasi febril; concentrava menos o espirito na leitura, e interrompia-a mais frequentemente.

As vigilias de Mauricio não eram mais curtas do que as de Jorge, mas consagravam-se a differente mister; gastavam-se em aventurosas digressões pelos montados e valles da aldeia, em visitas aos solares das circumvisinhanças, onde houvesse uma mesa de wist ou um canto de fogão, animado pelo sorriso das damas.

Quando voltava a casa, vinha ainda encontrar o irmão estudando, e era de costume d'elles passarem alguns momentos a conversar.

N'aquella noite, Mauricio recolheu-se muito tarde. Ao sentil-o, Jorge, que passeiava no quarto, sentou-se depressa á banca, e inclinou a cabeça sobre um livro que tinha aberto diante de si.

Á entrada de Mauricio, Jorge apenas lhe acenou com a mão, e proseguiu ou fingiu que proseguia na leitura que encetára, até terminar a pagina.

—Boas noites, nigromante—saudou-o Mauricio.—A estas horas, n'esta torre, á luz mortiça d'um candieiro e com um livro aberto diante de ti, representas admiravelmente um astrologo.

Jorge apenas lhe respondeu com um sorriso e continuou a folhear o livro.

Mauricio chegou-se á janella:

—Mas é preciso, de quando em quando, examinar as estrellas tambem. E ellas hoje que estão tão scintillantes! Ah! grande novidade no nosso firmamento! Graças a Deus que, além de nós, ha já mais alguem na aldeia que não dorme a estas horas!

Jorge fechou o livro, e foi ter com o irmão á janella.

—Que queres dizer?—perguntou aproximando-se.

—Que descobri um planeta novo! mais uma luz na aldeia!

—Uma luz?!

—Sim, e é em casa de Thomé.

Jorge fitou a luz com certa curiosidade e conservou-se algum tempo calado; depois murmurou:

—Thomé ainda de vela a estas horas! É singular!

—Faz-lhe mais justiça — tornou Mauricio.—Thomé dorme ha boas quatro horas. A gente do campo é incapaz do extravagante delicto de escandalisar com luz as trevas da noite. N'aquillo percebem-se vestigios de habitos cidadãos. Quem vela é a filha, com certeza.

—Ah! sim... Bertha... esquecia-me de que tinha voltado—acudiu Jorge, esforçando-se por dizer isto em tom natural e indifferente.

—Voltou, e bem outra do que foi!—advertiu Mauricio.

—Em quê?—perguntou Jorge, olhando para o irmão.

—Foi d'aqui uma criança agradavel, e veio uma encantadora mulher!

—Ah! ah; já notaste?—disse Jorge, com um sorriso contrafeito.

—Digo-te a verdade, Jorge. Parecia-me impossivel, ao vêl-a, que fosse a filha do Thomé. Um ar tão delicado, umas maneiras tão distinctas, tão de cidade!…

—Olha se te deixas apaixonar por ella; anda lá!—continuou Jorge, ainda no mesmo tom.

—Não seria prova de mau gosto, afianço-te. Que superioridade, comparada a todas as nossas primas d'estes arredores! O que é a educação!

Jorge encolheu os hombros, dizendo com certo modo irritado:

—Provavelmente não produzirá em mim os mesmos effeitos. Tenho a certeza de que hei de sentir saudades, ao vêl-a, da Bertha, que conheci pequena.

—Não duvido, porque és bastante philosopho para isso. Eu por mim confesso-te que, na idade em que estou e, apesar de toda a sympathia que tenho por crianças, não me sinto com disposições para repetir as palavras de Christo, a respeito d'ellas. Eu prefiro que se cheguem para mim… as grandes…

—Em vez da criança alegre e innocente—proseguiu Jorge com acrimonia—da criança que brincava comnosco e com a nossa pobre Beatriz, preferes encontrar a collegial, com o espirito voltado todo para a moda, com um pouco de geographia e de historia na cabeça e deixando cahir da bôca, quando falla, palavras francezas, como deitava perolas preciosas a heroina d'aquelles contos que nos ensinavam em pequenos. E é isto o que te encanta?… Pois olha, eu até já não gosto de vêr aberta aquella janella a estas horas. Sabe-me aquillo a romanticismo, e é nas raparigas uma doença impertinente, insupportavel.

E Jorge retirou-se da janella com um mau humor difficil de explicar.

—Ora! se o facto de uma janella aberta de noite fosse indicio do crime que dizes, até tu, o homem menos capaz de commettêl-o que eu conheço, poderias ser tambem accusado. Enganas-te; Bertha é realmente adoravel. Verás. As mulheres, Jorge, teem isso comsigo. Amoldam-se muito mais depressa aos habitos de elegancia do que os homens. Com certeza ninguem suspeitará, ao vêr Bertha, a origem aldeã que ella teve. A mim parecia-me impossivel que aquella gentil rapariga, que tão airosamente cavalgava ao meu lado, fosse a filha de Thomé da Povoa e d'aquella excellente Luiza.

—Ah! pois cavalgaste ao lado d'ella? Já?!—notou Jorge, em um tom de acerba ironia, que era novo n'elle.

—Sim; encontrei-os na estrada quando chegavam. Não a conheci ao principio. Aproximei-me, conversei com ella, achei-a encantadora. E depois tinha no olhar tantas promessas!

Jorge deu em passeiar, evidentemente agitado.

—É o que eu digo—murmurava elle com um sorriso nervoso, e continuou:

—Mauricio, Mauricio; cautela! Cuidado com esse galanteio! Póde ser de mais sérias consequencias do que as duzias de paixões que tens tido por as nossas primas d'estes sitios. Essas o peior resultado a que poderiam conduzir-te era a casar com alguma d'ellas e a enxertar assim no tronco illustre da nossa arvore genealogica alguma illustrissima vergontea de uma sêpa igualmente ante-diluviana.

—Ahi estás tu de novo zombando da nossa aristocracia. Desconheço-te, Jorge. Realmente não sei d'onde te veio essa febre democratica e philosophica, com que andas ha tempos. Picou-te a mosca revolucionaria.

Jorge acudiu com uma vivacidade, que provavelmente não lhe era inspirada pelo assumpto:

—Não sabes d'onde me vem? Vem-me de meia hora de reflexão por dia. É o que basta para me rir da fidalguia de toda esta nossa parentela, que se deixa devorar por dividas, imaginando que ha em si alguma coisa que resista á sua inutil ociosidade; e que hão de ficar muito admirados quando, ao receberem um dia esmola da mulher do seu rendeiro, esta os não tractar por fidalgos, nem lhes agradecer a honraria de aceital-a.

Outro menos despreoccupado do que Mauricio desconfiaria que na vehemencia com que Jorge fulminava a incuria aristocratica, havia muito de facticio; como se procurasse desviar a attenção do verdadeiro motivo do seu estado nervoso.

—Não estou disposto a discutir a legitimidade das pretenções aristocraticas. Deixemos isso. Dizias tu que fugisse de me apaixonar por Bertha. Reconheço a prudencia do conselho. Porque é certo que ha n'aquella rapariga um não sei quê tão superior ao que por ahi vejo que, se eu não tivesse de deixar dentro em pouco tempo estes sitios, para… arranjar um modo de vida… não juro que pudesse ser indifferente áquelles encantos. Demais ha entre nós recordações de infancia e quer parecer-me que ella ainda as não esqueceu.

Jorge, sem responder, continuava a passeiar no quarto.

—Mas aquella luz não me sahe do pensamento—proseguiu Mauricio.—Que estará fazendo a pobre rapariga a estas horas da noite? Não te parece que está alguem á janella?

—Mal se póde divisar atravez das folhas d'esses castanheiros; mas julgo que sim.

—Pobre pequena! Alli, só, n'esta aldeia. Está scismando em como poderão ter realidade as vagas aspirações do seu coração.

Jorge sorriu, e acrescentou com sarcasmo:

—Ou de que maneira ha de corresponder-se com algum Romeu collegial, que deixou suspirando em Lisboa.

—Estás insupportavel, Jorge.

—Uma experiencia!—exclamou, passados alguns momentos de silencio, Jorge, voltando á janella, onde permanecia ainda Mauricio.—Tu estás dando tractos á imaginação para adivinhares qual será o pensamento de Bertha. Eu aventuro uma supposição. Assim como nós vimos aquella luz, ella vê esta, e talvez a nossa sombra na janella. É natural que supponha que para alli dirigimos as vistas, e muito provavel que adivinhe que fallamos d'ella. Sabendo-se observada, não ousa apagar a luz, por querer mostrar que tambem prolonga as suas rêveries por noite alta.

—Ora! deixa-me com as tuas observações!

— Queres verificar? Apaguemos a luz e veremos o resultado.

Mauricio condescendeu.

A unica janella alumiada da Casa Mourisca envolveu-se nas trevas da noite.

Como o leitor já sabe, Bertha, por um motivo differente do insinuado por Jorge, apagou tambem pouco depois a luz do seu quarto. — Eu que dizia?—exclamou Jorge, rindo triumphantemente, mas como se aquelle rir lhe fizesse mal.

— Pois bem; se adivinhaste, tanto melhor — disse Mauricio, despeitado.

— Tanto melhor?!

— Sim. Porque não hei de eu vêr, n’este proposito de acompanhar a nossa vigilia, uma prova de sympathia pelo companheiro de infancia que hoje tornou a vêr?

— Ah! ah! Pensas n’isso?

— Porque não? Olha, Jorge, a mulher sem as fraquezas do coração proprias do sexo não é uma mulher perfeita. Eu, se visse anjos cá por este mundo, anjos puros, correctos, impeccaveis; tirava-lhes reverente o chapéo, benzia-me diante d’elles, rezava-lhes uma oração, mas afianço-te que não os amava.

— Boa noite, Mauricio. Olha que são duas horas.

— Adeus, Jorge.

— Não sonhes com Bertha.

— Não sonhes tu com a arithmetica, que é peior pesadêlo.

E os dois irmãos separaram-se, rindo.

A ambos dominou por muito tempo a imagem de Bertha.

Jorge passou uma noite febril. Tentava desfavorecer Bertha, quanto podia, no proprio conceito, esforçando-se por convencer-se de tudo quanto a respeito d’ella dissera ao irmão, para diminuir assim a impressão, que, a seu pesar, conservava ainda da imagem da rapariga.

Mauricio dera-lhe a entender que Bertha fôra sensivel ao seu galanteio, e esta ideia torturava o espirito de Jorge.

Pela sua parte, Mauricio tanto lidou com a supposição de que a vigilia de Bertha lhe fôra consagrada, que adormeceu firmemente convencido disso e sonhou… sonhou… Oh! quem póde exprimir o longo romance dos sonhos de um rapaz aos vinte annos e quando possue uma imaginação como a de Mauricio!