Os Fidalgos da Casa Mourisca/XV
Em uma das seguintes madrugadas foi Jorge sobresaltadamente acordado pelo velho jardineiro, que depois das ultimas reformas estava empregado no serviço interno da casa. O homem tinha uns ares de espantado, como se viera a communicar a noticia de um incendio.
— Que temos? — perguntou Jorge, sentando-se inquieto no leito.
— É que não tarda ahi a snr.ª baroneza. Já estão lá em baixo umas bagagens e uns criados, e... não está nada preparado.
— Cuidei que era outra coisa. E o que querias tu que estivesse preparado?
— Ora pois então? Sempre é uma pessoa... Lá o padre já deu ordem para se ir pedir a baixella aos...
— Não se pede coisa alguma. Ahi principia o frei Januario a fazer das suas. Dize-lhe que deixe tudo ao meu cuidado. Que se não estafe, nem afflija, que não é necessario.
— Mas... olhe lá, snr. Jorge! O fidalgo mesmo não ha de gostar...
— Faze o que eu te digo. Isso em ti, a fallar a verdade, até me admira. Não parece franqueza de soldado. Para occultar aos olhos de minha prima a nossa pobreza, que não é vergonha nenhuma, querias que fosse descobrir ás familias que teem baixellas, a nossa vaidade, que essa, sim, seria uma vergonha? Não estou resolvido a fazel-o.
O velho meneou a cabeça por algum tempo, e acabou por dizer:
— Parece-me que tem razão, snr. Jorge, como sempre. Ai, se n'esta casa todos tivessem tido o seu juizo, ella não chegaria ao estado a que chegou. Lembro-me agora de que quando o imperador...
— Deixa o caso para outra occasião. Vae arranjar, como puderes, essa gente e essas coisas todas; emquanto eu me visto e preparo para ir receber a prima...
O velho criado obedeceu com presteza militar.
Meia hora depois ouviam-se tilintar as campainhas dos machos da liteira, em que vinha a baroneza.
Gabriella, a baronezinha viuva de Souto-Real, ainda não tinha trinta annos, e mais nova parecia do que era. Alva, loira e delicadamente formosa, realisava o typo da mulher elegante, creada na atmosphera dos bailes e dos theatros, e mais á luz artificial que á luz do sol. Apaixonada por perfumes e rendas, observadora fiel da moda, sujeitava-se aos mais extravagantes caprichos d'ella, sabendo-os porém corrigir pela influencia do seu gosto apuradissimo. Tinha a languidez e a particular côr pallida das formosas de Lisboa, que não recebem do sol da provincia a vigorosa encarnação de saude. Indole verdadeiramente feminina, exercia mais imperio sobre as suas paixões, do que sobre os seus caprichos. Com difficuldade sacrificaria o mais ligeiro d'estes; aquellas, porém, subjugava-as com fortaleza varonil. Possuia um genio alegre e ás vezes um tanto satyrico, mas sem malignidade. Não professava os principios d'aquella moral intractavel, que se arma da severidade puritana contra as paixões e defeitos dos outros; pelo contrario era tolerante e latitudinaria, não se esquivando a apertar a mão aos maiores peccadores, com quem se encontrava no mundo, sem que, sob essas apparencias de leviana indifferença, deixasse de manter um descernimento seguro do bem e do mal, e um grande fundo de moralidade e de justiça.
Além d'isto possuia um bom coração e uma alma generosa.
No tracto de mais illustrada sociedade lisbonense e nas viagens em que acompanhára o barão, seu fallecido marido, adquirira uma variada cópia de conhecimentos, de que o seu natural bom senso sabia usar, sem abuso. Passava por uma das mais espirituosas damas de Lisboa, sem que se lhe notasse a ostentação pedantesca, que é o escolho em que tanta vez naufragam as que a tal nome aspiram. As primeiras capacidades artisticas, litterarias e politicas frequentavam as salas da baroneza e apreciavam a sua conversação.
Gabriella casára por conveniencia, que não por inclinação, com um homem mais velho do que ella, sem fóros de nobreza, mas pertencendo á classe argentaria, que é a verdadeira aristocracia moderna.
Apesar d'isso soube ser esposa fiel e dedicada d'aquelle homem que a livrára da precaria condição em que a decadencia da sua casa a collocára. Viuvando, Gabriella não deu indicios de se alistar nas diminutas phalanges das viuvas inconsolaveis, mas não se precipitou na escolha de esposo. A sua belleza, o seu espirito e os rendimentos que herdára attrahiram uma nuvem de adoradores, que ella ia deixando viver de illusões, sem se dar para isso ao trabalho de fabricar, á imitação de Penelope, uma interminavel teia. Esta vida e estes galanteios enfadavam-n'a, e, para distrahir-se, emprehendia pequenas viagens. Foi ao voltar de uma que fizera pela Hespanha, que recebeu a carta do tio, e resolveu desenfadar-se por algum tempo da vida das capitaes, visitando a sua provincia e os logares onde passára a infancia.
Tal era a baronezinha de Souto-Real, que acabára de apeiar-se no pateo lageado da Casa Mourisca.
Jorge ajudou-a cortezãmente a descer.
— Agradecida, Jorge — disse ella, apertando-lhe a mão. — Fazes as honras do teu castello com a galhardia de um perfeito cavalleiro.
— A prima não repare na modestia com que a recebemos, mas pareceu-me que seria mais digno da nossa amizade e do seu caracter apresentarmo-nos taes quaes somos, do que encher o pateo de criados e jornaleiros a quem vestissemos á pressa fardas...
E completou a meia voz:
— ... Emprestadas.
— Oh! por certo; e eu reconheço melhor a tua fidalguia, Jorge, na franqueza d'esta recepção, do que na libré dos teus criados e nos brazões dos reposteiros.
E conversando familiarmente com o primo, a quem tomára o braço, a baroneza subiu os degraus da escadaria, que subia para a sala nobre.
Á porta encontraram-se com frei Januario, que voltava azafamado da cozinha, aonde tinha ido dar ordens accommodadas á solemnidade do caso e ás impaciencias e appetite do proprio estomago.
O padre limpava ainda os labios ao lenço, para fazer desapparecer os vestigios de uma libação extra-official que de passagem fizera.
— Queira v. exc.ª perdoar, snr.ª baroneza, o apparecer-lhe ainda agora, mas as obrigações do meu cargo...
— Ó snr. frei Januario, por quem é, lembre-se de que somos conhecidos antigos, e que até por vezes lhe dei motivos para me abjurar como jacobina. Tinha que vêr se me preparava a honra de uma felicitação em fórma. Onde está meu tio?
— O fidalgo não estava prevenido de que v. exc.ª chegava tão cedo, e por isso ainda está recolhido no seu quarto, mas eu vou...
— Ai, não, não; por amor de Deus não o acorde!
— Não; elle está já a pé; mas emfim fazer a barba e tal... sempre leva alguns minutos.
— Que se não apresse por minha causa. Eu illudirei a grande vontade que tenho de lhe beijar a mão, conversando com o primo Jorge.
— Então, se v. exc.ª me dá licença...
— Até logo, frei Januario.
E quando este ia longe, acrescentou:
— Ó snr. frei Januario, aquelle grande dia que estava já para chegar na ultima vez que nos vimos, aquelle dia de redempção, ao que parece não chegou ainda?
O ex-frade encolheu os hombros, e respondeu com ar de mysterio:
— Ainda não é tarde, minha senhora. Pouco viverá quem não o vir.
Gabriella entrou rindo com Jorge para a sala.
— E Mauricio — inquiriu ella — tambem já tem barba para fazer?
— Parece-me que sahiu, ainda com estrellas, para uma partida de caça.
— Bom; esse, pelo que vejo, conserva puros os tradicionaes habitos de familia.
Jorge sorriu.
— Tu é que degeneraste. Deu-me que scismar a novidade. Estou tão costumada a vêr a deterioração progressiva na linha dos representantes das familias que tomam a peito não caldearem o sangue de primeira qualidade que lhes corre nas veias, que ao vêr sahir d'esta velha casa um rapaz de juizo, fiquei espantada.
— É pouco lisongeiro para a nobreza, mas muito lisongeira para mim a sua opinião.
— Digo-t'o com franqueza; e já agora deixa-me aproveitar este tempo, em que estamos sós, para fallar n'isto e assentar as bases do meu proceder. Vamos direitos á questão. As finanças não correm bem cá por casa, ao que entendi.
— Correm muito mal.
— Não admira; é doença da época. E tu tomas a peito endireital-as?
— Tentei-o.
— E conseguel-o. Consegues, porque o teu genio é o de uns certos homens que eu tenho conhecido, que conseguem tudo quanto querem, só a querer e sem fazer barulho. Ai, Jorge, lá por Lisboa ouço dizer que ha tanta falta de financeiros, que estou tentada a exportar-te. E Mauricio?
— Mauricio...
— Percebo; é mais difficil de accommodar esse. Era facil, se não fossem as pieguices de teu pae, que ha de morrer assim. Dize-me uma coisa, ó Jorge, tu és absolutista tambem?
— Eu quasi que não tenho ideias fixas em politica.
— Bom, bom, já entendo. Não queres declarar-te por contemplação para com as tradições de familia. Estás como eu; eu sou, sem duvida alguma, liberal; porque emfim deves concordar que para se ficar toda a vida a ser absolutista é preciso viver, assim como teu pae, em uma aldeia como esta e com um padre procurador a dizer-nos ha vinte annos a mesma coisa; porém, como meu pae foi militar no exercito realista, não tenho remedio senão obrigar a guardar certas conveniencias ao meu liberalismo. Ora tu estás no mesmo caso.
— Talvez. É certo que do que está feito, acho muita coisa boa.
— Então estás como eu. Mas como dizia, Mauricio podia encontrar muita carreira aberta, mas era necessario que o papá o deixasse partir sem levar o topete vermelho e azul muito á vista, ou a vera effigie ao pescoço; salvar as apparencias, porque das ideias ninguem quer saber. Á sombra da Carta engorda muito absolutista encapotado.
— Meu pae está hoje em um estado de tão facil irritação, que duvido que chegue a consentir.
— Então o remedio é procurar por ahi alguma descendente de Egas Moniz ou de Martim de Freitas, que por milagre não tenha a casa ainda em ruinas, e enxertar esse garfo illustre na vossa arvore genealogica.
— Mau remedio para finanças. Deu o arejo nas arvores genealogicas, Gabriella; estão por aqui todas muito enfesadas.
— Então, então...
N'este momento ouviram-se passos ligeiros nas escadas, como de quem as subia duas a duas.
— Ahi vem Mauricio — disse Jorge, escutando-os.
Foi de facto Mauricio que appareceu á porta da sala.
A baroneza correu-lhe ao encontro, estendendo-lhe as mãos, que Mauricio galanteadoramente levou aos labios, curvando-se.
— Bravo! Já vejo que observas irreprehensivelmente as tradições dos bons tempos em que se era cortez com as damas. A provincia mantem-se mais delicada do que a côrte. Se soubesses como a moda hoje capricha por lá em um á vontade com senhoras, que até ás vezes chega a ser grosseria!
— Devéras, prima? Felizmente com certas bellezas femininas sente-se a necessidade de ser delicado, independente de proposito ou dos preceitos da moda.
— E se eu te deixasse completar a phrase, far-me-ias o favor de me incluir no numero das taes. Que requinte de lisonja! E isto a perder-se nas selvas!
— Não zombe da minha sinceridade provinciana.
— Não calumnies tu a provincia, dando esse epitheto á tua sinceridade. Nada, nada, o tio que tenha paciencia. Conservar em casa um cortezão d'esta força é quasi uma usurpação feita aos direitos da corôa.
— Bem; deixe-me fallar-lhe com seriedade. Como se sente da jornada?
— Hei de sentir-me cansada, quando tiver satisfeito toda a minha curiosidade, que por emquanto não me deixa sentir coisa alguma. Por exemplo, quaes são os teus projectos, os teus calculos sobre o futuro?
— Ó prima Gabriella, sempre cuidei que só na provincia se perdia tempo a calcular futuros. Uma pessoa de bom senso não calcula o futuro, que em um momento se transtorna.
— Bem, entendo o subterfugio. O priminho Mauricio ainda não tem planos definidos sobre a sua carreira na vida. Mas é preciso que saibas que vim aqui principalmente por tua causa. Tracta-se de te arranjar uma collocação qualquer, um assento nas camaras, um emprego na alfandega, seja o que fôr, com que tu possas transigir; foi a condição unica imposta por teu pae. Por isso vê lá.
— Olhe, prima, já que a sorte me levou á dura impertinencia de me vêr obrigado a adoptar um modo de vida, não quero tornar a impertinencia dupla, encarregando-me eu proprio de o escolher. Subscrevo ao accordo a que chegarem; decidam por mim, que ou me façam general ou tabellião, a tudo me resignarei.
— Desconfio de tanta condescendencia. Quer-me parecer que havemos de encontrar difficuldades mais serias do que as intransigencias sonhadas por o tio Luiz. Dar-se-ha que haja aqui por estes bosques scenas de Romeu e de Julieta?
— Ai, não falle n'isso a Mauricio — disse Jorge com um sorriso não de todo despido de ironia — por quem é, prima! É a sua corda sensivel, e tem de o aturar por muitas horas!
— Ah! então existe a Julieta?
— As Julietas, as Desdemonas, as Ophelias e todos os typos imaginaveis. É um enxame que elle traz constantemente poisado no coração.
— Ah! ah! pois tu és dos que declinam o amor sempre no plural? Não sabia!
— Deixe-o fallar, prima Gabriella. O Jorge bem sabe que n'esta mesma occasião tão absorvido ando por uma só imagem, que é sem fundamento a accusação de inconstante que me dirige.
Jorge contrahiu a fronte, ao perceber a allusão, e disse sêcamente:
— Julguei que havias resolvido devéras ter juizo.
— Não é tempo agora de examinar esta questão — acudiu Gabriella — porque me parece que vem ahi o tio Luiz.
De facto o fidalgo apparecia á porta da sala e um pouco atraz d'elle o padre procurador.
O velho D. Luiz vestira-se quasi elegantemente para receber a sobrinha. Elegancia severa, accommodada á sua grave figura de ancião, mas elegancia inquestionavel. D. Luiz tinha uma presença magestosa e um todo de diplomata que impunha respeito.
O vestuario preto de que usava, sobre o qual sobresahia a gravata cuidadosamente lavada e engommada, augmentava o effeito natural dos seus dotes physicos.
O procurador formava inteiro contraste com o fidalgo. Curvado, olhando por cima dos oculos, com o lenço constantemente empunhado para acudir ás instantes reclamações de um defluxo chronico, parecia dominado por uma infantil timidez, mas não perdia um só gesto dos outros, que manhosamente observava.
A baroneza inclinou-se para beijar a mão do tio, que a acolheu nos braços.
— O tio Luiz! — dizia a gentil viuva, olhando-o — sempre o mesmo! Não o acho mudado.
— Não?! — disse o fidalgo com leve ironia na intonação e no sorriso.
— Olhe que não. E é natural. Bem vê que se golpes dolorosos o teem feito padecer, tambem lhe servem de conforto o socego d'estes sitios, a pureza d'estes ares, a tranquillidade d'esta vida e o affecto dos filhos que ainda lhe restam.
D. Luiz abanou a cabeça, mais triste e sombrio do que antes.
— Na sua idade, Gabriella, cicatrizam depressa as feridas. Quando se chega aos meus annos, golpe que se receba, é ferida com que se morre.
— Diga o snr. D. Luiz — interveio o padre — que o que tem é muita resignação christã, que n'estes tempos que vão correndo não é coisa vulgar.
E assuou-se.
— Mas para isso vale a meu tio o seu exemplo, snr. frei Januario — acudiu Gabriella. — Resignação ahi! Eu sou testemunha da heroicidade com que arrosta as vigilias e os jejuns.
Os presentes, incluindo o proprio D. Luiz, não puderam ouvir sem um sorriso a allusão da baroneza.
O padre córou, assuou-se com mais força e resmoneou com azedume:
— Bem sei que não é quanta Deus manda, nem quanta a alma precisa... e por peccador me tenho.
— Deve vir cansada, Gabriella — lembrou D. Luiz — Eu julgo que terão tido o cuidado de...
— Tudo está prompto. Logo que a prima queira descançar... — respondeu Jorge.
— Não sinto grande necessidade de descanço. Descançarei depois do almoço, se me fizerem o favor de dar alguma bebida quente, porque tenho frio.
Em virtude d'esta reclamação, sahiram successivamente da sala Jorge, o procurador e Mauricio, ficando Gabriella só com o fidalgo.
Este parecia hesitar em alludir ao principal motivo da visita da baroneza.
Foi ella quem rompeu o gelo da entrevista.
— Recebeu a minha carta, tio?
— Recebi, sim, e agradeço.
— Diga que perdoa. Se quer que lhe falle a verdade, julgo que não lhe escrevi em estylo muito apropriado, mas tão desacostumada ando de escrever-lhe, e a gente com quem de costume me correspondo permitte-me tal familiaridade, que me descuidei.
— A carta nada tinha de censuravel. O que por ella vi foi que deveremos renunciar aos projectos que formei a respeito de Mauricio.
— Perdão; mas como viu por ella isso?
— Desde o principio ao fim. Não me diz que para que Mauricio abra carreira no mundo, é necessario condescender com certas coisas?...
— Ai, sim, mas quem é que não tem de condescender n'esta vida?
— Gabriella — tornou D. Luiz com certa aspereza — já ha pouco lh'o disse; as nossas idades differem. Quando se possue a sua juventude ha movimentos faceis, a que se não prestam as fibras inflexiveis dos meus sessenta annos.
— Sim, mas quando se é joven como Mauricio e se está nas circumstancias d'elle, das quaes estou informada pela sua obsequiosa confidencia, é menos prudente não ceder um pouco no tempo em que se póde ainda ceder com dignidade; porque depois... a vida para elle é longa, e quem sabe a que provações e sacrificios o sujeitará? O tio está em uma idade avançada, não espera numerosos annos de vida, não ama demasiadamente o mundo, e para a lucta conta com a inflexibilidade das suas fibras de sessenta annos. Mas elles, seus filhos, são novos, teem futuro, amor á vida e não possuem ainda a tal inflexibilidade para sustentarem o pêso de uma instituição morta sem vergar ou quebrar debaixo d'ella. Veja bem.
— De uma instituição morta! — repetiu o fidalgo, accentuando as syllabas e levantando os olhos para o tecto.
— Morta, sim, meu tio, desengane-se. Deus me livre de fallar agora em politica com o tio. Mas a verdade é que quem vive em certa sociedade, e ouve certas coisas, e estuda certos homens, acaba por convencer-se, mesmo sem pensar muito n'isso, de que um sonho como o de meu tio é... é... é um sonho.
— Seu pae morreu por um sonho assim, Gabriella.
— E eu venero a memoria de meu pae, não o duvide; assim como venero o caracter e as opiniões de meu tio; porque venero todas as convicções sinceras. Mas o que eu não queria é que se sacrificasse mais do que deve. A sua vida, a sua felicidade tem o direito de dar esse sacrificio. Mas a vida, o futuro, a honra e a felicidade de seus filhos, isso não.
— A honra?! A honra é que eu quero salvar-lhes.
— E quem lhe diz que elles teem as suas convicções?
Os olhos de D. Luiz fuzilaram ao ouvir esta insinuação.
— Se meus filhos...
— Sei o que vae dizer — atalhou Gabriella — mas não diga, porque contradiz os seus proprios actos. Esmerou-se em dar educação a seus filhos, em desenvolver-lhes a intelligencia, e agora quer que elles não usem d'esse instrumento que possuem, e que para pensar lhe venham pedir licença? Não valia ensinar-lhes a raciocinar n'esse caso.
— A razão deve-lhes ter mostrado a verdade.
— A verdade... a verdade... Ora valha-nos Deus, meu tio; e quem sabe onde ella está? Pois todas estas mudanças que succedem no mundo de que procedem, senão de se julgar a cada passo ter-se descoberto que a verdade não está onde se suppunha?
— Vejo que a convivencia social lhe tem dado uma boa dóse de philosophia para bem viver no mundo. Mas que quer? Eu regulo-me ainda por as cartilhas velhas.
— E o que lhe ensinam a fazer as cartilhas velhas a favor de seus filhos? O que é que, em harmonia com ellas, tem tentado e tenciona executar?
— Dar-lhes o exemplo de como se soffre a adversidade, quando se tem brios, e um nome que respeitar.
— A nobreza não está em soffrer de braços cruzados a adversidade, quando elles se podem empregar nobremente em repellil-a; Jorge bem o comprehendeu. Esse illustrará devéras o seu nome da unica maneira por que n'estas circumstancias elle póde ser illustrado. O que é preciso é que a ociosidade de Mauricio lhe não annulle os esforços.
D. Luiz ia a replicar quando o padre procurador entrou a annunciar que o almoço estava na mesa.
O fidalgo aproveitou de boa vontade o ensejo para cortar o dialogo que evidentemente o incommodou.
Cedo estava a familia da Casa Mourisca reunida á mesa na sala do almoço, da qual d'esta vez a voz alegre e a jovial presença da baroneza parecia afugentar parte das sombras que de ordinario pesavam sobre ella.
E na noite d'esse dia Gabriella escreveu uma longa carta a uma das amigas da capital, em que lhe narrava por miudo os episodios da sua jornada, a sua recepção na Casa Mourisca e as impressões que recebera.
Esta carta terminava por as seguintes palavras:
«Do que te tenho dito parece-me que podes concluir que se desvaneceram aquelles projectos de sacrificio que trouxe d'ahi e com os quaes não te conformavas. O meu primo Jorge é um rapaz mais serio ainda do que eu o suppunha. Não fazes ideia. Affirmo-te que é incapaz de casar por interesse, e como o espirito d'elle anda muito occupado por calculos e combinações economicas, não é tambem provavel que se deixe tomar por o amor, e portanto não casa. Assim fico dispensada de sacrificar os meus queridos habitos de vida de Lisboa, ao que vinha devéras decidida para salvar esta familia com os meus capitaes, que mal sei gerir. Este rapaz se amar, o que não é provavel, ha de ser de alguma maneira extravagante, inesperada.
O outro é uma criança, que não se póde tomar a serio por marido.»
Por aqui se vê quaes eram as generosas tenções de Gabriella ao chegar á Casa Mourisca, e quaes as modificações que no decurso d'aquelle dia os seus projectos haviam soffrido.