Os Fidalgos da Casa Mourisca/XXIII

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XXIII



No dia seguinte pela manhã, D. Luiz mandou pedir á baroneza authorisação para fazer-lhe uma visita, reclamada por motivos urgentes.

Gabriella respondeu que o ficava aguardando com impaciencia.

E não foi por mero comprimento que o disse; os negocios d'aquella familia achavam-se em um estado tal, que era de esperar de momento para momento uma crise importante, e o menor successo podia provocal-a.

Gabriella sabia-o e aguardava-a.

Meia hora depois entrou D. Luiz sombrio e grave no gabinete da sobrinha.

Esta acolheu-o com a maior deferencia, procurando lêr-lhe no semblante o pensamento que o trouxera alli, mas empregando no exame toda a dissimulação.

— Para que se incommodou, tio Luiz? Se quizesse ter a bondade de esperar eu iria receber as suas ordens.

— Ergui-me cedo. E ergui-me sem ter dormido. Por isso fui tão matinal.

— Meu Deus! achou-se então incommodado?

— De espirito, muito; muito.

E D. Luiz passou a mão pela fronte, suspirando.

— E posso proporcionar-lhe algum allivio, meu tio? — perguntou Gabriella, conduzindo-o para um sofá, onde se sentou ao lado d'elle, olhando-o com ar de interrogação e de interesse.

— Gabriella, a sorte de minha familia está jogada. É uma família perdida — rompeu vehementemente o fidalgo.

— Não diga isso, tio Luiz.

— Digo-o e sinto-o — continuou elle mais exaltado. — Quando uma casa como a nossa, que não póde já conservar o antigo esplendor e o estado que em melhores tempos sustentou, não sabe de mais a mais manter o prestigio que teve por as praticas tradicionaes de nobreza, por acções de fidalguia, emfim por estes actos de superioridade que fazem dobrar a cabeça aos mais insolentes e intimidar a vista dos invejosos, quando uma casa chegue a um tal estado de decadencia, nenhum apoio solido tem a sustental-a e em pouco tempo cahirá em ruina total. A minha está perdida!

— Seus filhos...

D. Luiz estremeceu de irritação a estas palavras.

— Meus filhos! Que me quer dizer d'elles? D'elles me queixo eu. Jorge fez-me córar pela pouca dignidade dos seus sentimentos; Mauricio pela vileza dos seus actos.

— Mauricio?! Sancto Deus! Pois que succedeu mais?

D. Luiz, ainda tremulo de indignação, contou á baroneza a scena da vespera. A cólera do velho contra o filho era violenta e contrastava com a brandura e quasi respeito que o dominava ao fallar de Bertha.

A baroneza ia notando estes phenomenos todos.

Assim que D. Luiz concluiu, Gabrieila, encolhendo os hombros, formulou a emenda:

— Loucuras de rapaz.

— Loucuras! Loucuras de rapaz! Que diz, Gabrieila? Nem tudo se póde permittir ou desculpar ao verdor dos annos. E quando nas acções de um rapaz se nota, já não apenas o estouvamento e a inconsideração que é propria dos annos, mas os signaes de uma profunda depravação moral, esse rapaz, aos vinte annos, tem já a alma corrompida.

— Mas o que vê mais do que estouvamento nos actos de Mauricio?

— Que ia elle fazer embriagado, e na companhia de devassos, á Casa Mourisca?

— Saiba então, meu tio, que o primo Mauricio tem o fraco de se julgar apaixonado por todas as raparigas bonitas que vê. É o seu defeito. Portanto julga-se tambem apaixonado por Bertha, que me dizem ser gentil. Parece porém que não tem sido feliz por esse lado. D'ahi os seus desafogos. Depois os planos de Jorge, mal interpretados, e as malevolas instigações d'aquellas sanctas creaturas dos nossos primos do Cruzeiro fizeram-lhe já por mais de uma vez vêr no irmão innocente um rival preferido, e ahi está. Acrescentando a isto a influencia do estado anormal em que diz que elle hontem se achava, tudo se explica. Loucuras de uma cabeça estouvada; que por o coração fico eu.

— Perde-se, perde-se — insistia D. Luiz. — Não respeitar os sentimentos mais puros! nem pelo menos lhe merecer respeito aquella pobre rapariga, que tem as mais sanctas tradições de nossa familia a protegêl-a! Nem ella! É uma infamia!

— Sabe o que tudo isto está pedindo, meu tio?

— O que é?

— É que se tire Mauricio d'aqui. Esta ociosidade perde-o. Este viver apertado no pequeno circulo da aldeia ha de acabar por suffocar n'elle as melhores aptidões e desenvolver-lhe as más. Creia. O tio deve vencer os seus escrupulos em deixar Mauricio partir.

— Lembrei-me já d'isso. E n'esse intuito a procurei. Mas pense bem, Gabriella. Engolfal-o na grande sociedade, onde os vicios e as tentações se conspiram para embriagar e seduzir a juventude, e elle em quem germinam já tão maus instinctos...

— Tem dotes de alma que lá se desenvolverão e neutralisarão os vicios e as tentações.

D. Luiz curvou a cabeça pensativo. Os seus preconceitos politicos eram muito vivazes, não cediam sem resistencia.

— Para que me deu o Senhor filhos! — exclamou elle, revoltando-se contra a sua perplexidade, e acrescentou:

— Mas a final que carreira póde elle seguir?

— Não fixemos d'antemão planos. Em geral os acontecimentos annullam-n'os. Decida-se a partida. Eu o recommendarei de maneira que elle proprio possa dentro em pouco escolher a carreira que lhe convenha.

— Mas, se tiver de ceder...

— Meu tio, permitta-me uma reflexão. Se quizermos prevenir todos os fortuitos inconvenientes de uma resolução qualquer, antes de a tomarmos, nehuma abraçaremos. Deixemos as objecções e os reparos para o momento apropriado. Quer que Mauricio parta?

— Se elle ha de perturbar a paz d'essa família e obrigar-me mais uma vez a humilhar-me diante d'ella... Porque meus filhos teem tido a rara habilidade de deixar a humilhação por o unico expediente ao meu pundonor! Collocaram a razão e a justiça da parte dos meus inimigos, forçoso era, para poder ter a cabeça erguida, curval-a primeiro e implorar perdão.

Gabrieila fingiu não attender á primeira parte das reflexões do tio.

— Muito bem. Vou fallar ao Mauricio. Tudo se ha de decidir em pouco tempo. Tenha fé em que se não perde uma familia, cujos futuros representantes teem, um o caracter honrado e a razão clara de Jorge, outro os bons instinctos e as brilhantes qualidades de Mauricio. Pelo contrario, creio que ella está destinada a dar um salutar exemplo áquelles, cuja estrella tambem declina, ensinando-lhes a unica maneira de continuar, nos tempos que correm, as nobres tradições dos seus antepassados.

— E qual é essa maneira unica? — interrogou o fidalgo, quasi ironico, como se já esperasse a resposta.

— Entrar nobremente no caminho da actividade e do trabalho; distinguir-se ahi, como se distinguiram outr'ora nas guerras de Africa e nas navegações os que tinham o mesmo nome para ennobrecer. Ser ocioso, por não poder ser guerreiro, é fraco titulo para a veneração dos contemporaneos. Cada seculo tem a sua tarefa, meu tio; a de hoje não se cumpre ás lançadas, nem ás cutiladas. O bom senso do tio Luiz ha de dar-me razão. Sabe além d'isso muito bem o que se faz lá por fóra, o que se faz na Inglaterra, por exemplo, onde tambem ha nobreza e orgulhos nobiliarchicos, como por cá, e mais talvez ainda.

— Bem vê que não desprezei a educação de meus filhos, nem impedi que Jorge trabalhasse, quando me pediu para o fazer. Pelo contrario, n'esse dia julguei receber uma lição d'aquella criança, e cheguei a córar dos meus setenta annos de incuria e de ociosidade. A minha velhice achou-se menos veneranda do que aquella juventude. Mas repare, Gabriella, que disse: entrar nobremente no caminho do trabalho. E nobremente não é andar a estender a mão á esmola dos antigos servos da nossa casa.

— Não houve esmola. Foi um honrado contracto aquelle, feito entre dois homens igualmente honrados. Se faltaram n'elle todas as seguranças do costume, tanto melhor; foi porque ambos se conheciam e confiavam um no outro. As garantias mais poderosas são a final essas. Contractos d'estes só se dão entre homens de bem. Olhe, tio Luiz, longe de mim discutir agora o proceder de Jorge; mas, se quer que lhe diga, tenho a intima convicção de que ahi dentro, bem no fundo da sua consciencia, não se conserva já grande resentirnento contra seu filho mais velho. Ha forçosamente uma voz interior que lhe clama que Jorge é um nobre e generoso caracter.

— Não disse ainda que Jorge fosse vil e infame. Mas diz bem, Gabriella, não discutamos agora isto. Peço-lhe então que decida Mauricio a sahir para evitar novas imprudencias e indignidades; não tanto por nós, como por essa boa rapariga, que é digna devéras de toda a sympathia. Que parta e que não me appareça.

E D. Luiz sahiu do quarto, repetindo esta ultima recommendação.

A baroneza ficou pensando:

— Decididamente é preciso pôr Mauricio d'aqui para fóra. Este caracter em uma cidade grande é uma coisa insignificante; a agitação que causa perdia-se na grande agitação d'aquelle mundo. Aqui é um terrível elemento de desordem e talvez de sérias catastrophes. Agora quem me agrada mais e muito mais é o tio Luiz. Sim, senhores. Acho-o menos bravo, apesar dos seus furores. Como elle fallava da filha do Thomé! Do Thomé, que é a final a pedra de escandalo d'isto tudo! Quem o domaria a este ponto? A rapariga, ao que parece, tem condão para se insinuar. O tio Luiz tem um grande fraco por ella, conhece-se. Já o que o padre me contou de quando foi a historia de entrega das chaves, e agora esta entrevista... Preciso de conhecer Bertha; está dito. É uma influencia que é bom cultivar. Digam o que quizerem; não ha nada melhor para amansar um velho bravio como este. É vêr a falta que fez aquella pobre Beatriz. Ao pé de um velho quer-se sempre uma rapariga para não os deixar azedar e tomar estes ares selvagens e opiniões avinagradas, que o tio Luiz já ia adquirindo. Nada; o padre procurador o mais distante d'elle possivel, que prégue a outros os seus soporiferos sermões sobre o direito divino e sobre a corrupção da época; no logar d'elle colloquemos Bertha, e quero saber se o leão não ha de amansar. Agora vamos lá vêr Mauricio. Para fallar a verdade, ainda não sei bem o que se ha de fazer d'elle; mas em todo o caso, mandemol-o para Lisboa, porque nos está causando muito embaraço aqui.

E Gabriella dirigiu-se para a sala do almoço, onde Mauricio todas as manhãs a precedia.

Encontrou-o na varanda, que deitava para uma ribanceira, como absorvido na contemplação do abundante jorro de agua que d'alli se despenhava por entre fetos vigorosos, cuja rama encobria o fundo do precipicio. Os raios do sol da manhã irisavam a humida poeira, que a a agua, ao quebrar-se, levantava do abysmo.

Gabriella aproximou-se de Mauricio sem ser percebida, e depois de o observar alguns momentos, poisou-lhe a mão no hombro.

Mauricio voltou-se quasi sobresaltado. Ao vêr a prima sorriu.

— Não a senti chegar.

— Isso vi eu. Que profunda meditação era essa? Queira Deus que não estivesses sentindo a attracção do abysmo. Dizem-me que é irresistivel; sobre tudo para certas organisações.

— Não, os abysmos physicos não são os que me attrahem.

— O que é o mesmo que dizer que os moraes alguma attracção exercem sobre ti.

— Estou quasi a persuadir-me disso.

— De quê?

— De que me impelle uma força irresistivel por um caminho, no fim do qual a minha quéda é inevitavel.

— É um presentimento tragico.

— É uma opinião dictada pela experiencia.

— Experiencia! Essa palavra na tua bôca, Mauricio! O eterno mote dos velhos, glosado por um rapaz de dezoito annos, e estouvado como todos sabemos!...

— E porque não ha de ser esse mesmo estouvamento o que me perde? Os estouvados são os homens que não teem na razão força bastante para conterem os impulsos das paixões, e que por isso obedecem a estas, sem que os façam parar os preconceitos do mundo e os conselhos dos juizos frios.

— Se me faz favor, esses são os apaixonados. Os estouvados não chegam nunca a ir muito longe sob o impulso de uma paixão, porque mudam de soberana a cada momento, d'onde resulta um mover indeciso, um fluctuar sem rumo, um jogar entre ventos encontrados, que não lhes permitte vencer longo caminho.

— N'esse caso rejeito o epitheto de estouvado.

— Achas então que ha já o governo constituido e definitivo no teu coração?

— Estou convencido de que se fixou o meu destino.

— Pelo lado do amor?

— Sim; pelo lado do amor.

— A noticia contraria grandemente os meus planos.

— Os seus planos?

— Sim; não sabes o que me trouxe aqui? Vim para declarar-te que o tio Luiz exige terminantemente que o Mauricio parta quanto antes para Lisboa, por se ter a final convencido de que, apesar de todos os perigos da vida da capital, é esse um passo preferivel a deixal-o permanecer aqui, no seio da ociosidade que, como sabes, é a mãe dos vicios todos.

— N'esse caso principia hoje a lucta. Eu declaro que não parto.

— Devéras?

— Devéras. A minha sorte está decidida, prima. E qualquer que seja o resultado d'esta resolução...

— Mas, vamos a saber, primo Mauricio, e Bertha?... (porque me parece que se tracta de Bertha) e Bertha corresponde-te?

— Creio que sim. Por timidez procura fugir-me, ou por desconfiança talvez. Por isso mesmo hei de provar-lhe que sou sincero, e que atravez de todos os preconceitos...

— Está a tentar-te o papel de Romeu, é o que estou vendo. Desconfio da sinceridade d'essa exaltação.

— Pois verá.

— Ora ponhamos as coisas no seu logar. Não principies tu a phantasiar escaramuças de Montechi e Capuletti, que provavelmente não terão logar, com grande damno das feições romanticas do caso. A coisa ha de passar-se mais prosaicamente, como hoje se passa tudo. O primo Mauricio, depois de uns arrufos do tio Luiz, havia de, mais anno menos anno, vêr sanccionado por elle o seu casamento. Muito bem. Ahi o tinhamos patriarcha rural, burguezamente installado na lareira da Herdade, com os filhos a treparem-lhe aos joelhos, e conversando em sancta paz com o papá Thomé e com a mamá Luiza, ouvindo o estalar das pinhas, e abrindo a bôca de somno, quando a ceia se demorasse alguns minutos além das nove horas. Por este mesmo tempo, outros rapazes da sua idade, e talvez com menos aptidão do que elle, caminhariam por entre os fulgores da moda, da elegancia e da gloria, conhecidos e apreciados nos circulos onde radia a intelligencia e onde as brilhantes qualidades do espirito encontram sempre em que se exercerem. Não chegariam a este solitario Mauricio ás vezes umas invejasinhas d'esses taes, mesmo ao suave calor da fogueira patriarchal?

— E quem me impediria de os seguir tambem? — disse Mauricio contrariado. — N'esses caminhos que diz não é força progredir solitario. O apoio de um coração...

A baroneza abanou a cabeça em signal de duvida, dizendo:

— Desengana-te, Mauricio, se ainda te sorri a vida da grande sociedade, não procures a companhia de corações como o de Bertha.

— Porque não?

— Os corações como o de Bertha precisam do calor suave da vida de familia para rescenderem o grato perfume do seu amor. Para um homem a quem ainda attrahem as luctas da vida e as lides da gloria, não é das mais adequadas companhias a d'estas mulheres extremosas e modestas, que sómente se satisfazem com affectos, e cujo amor não se nutre da gloria do objecto que amam, mas exclusivamente do amor que d'elle exigem. Almas que o ciume desalenta, que a ausencia definha, não são para companheiras d'aquelles homens. Se um dos taes mais imprudente liga um d'estes corações ao seu destino, ou o martyrisa, cedendo aos proprios instinctos de gloria, ou sacrificando-lh'os, tortura-se, e a tortura reflecte-se sobre essas almas amoraveis, que a adivinham.

— E poderá ser verdadeiro um amor que não tenha essas qualidades que diz?

— Póde. Pois não póde! É preciso que evites, Mauricio, o preconceito que tem muita gente de que tudo é falso e mau nos brilhantes circulos sociaes. Não é. Lá ha tambem amores e affeições verdadeiras, podes crêl-o, mas, nascidas e creadas em condições diversas, vivem e resistem a ventos que definham as outras. Uma mulher d'aquelle mundo, sem que deixe de amar seu marido, não aspira a monopolisal-o para o seu amor. Pelo contrario, deseja que elle desempenhe a sua missão na sociedade. Com a gloria que ahi adquirir, se illumina ella tambem, e em vez de o reter na obscuridade do lar domestico, impelle-o para a luz e sente que o seu amor por elle cresce na proporção em que os outros o admiram. É uma vaidade que se converte em estimulo. Estas mulheres assim servem de incentivo ás aspirações, e são as que convem aos artistas, aos politicos, em uma palavra, aos ambiciosos.

— Mas quem lhe disse que eu era ambicioso? — perguntou Mauricio, já em tom differente, e demorando na baroneza um olhar analysador, como de quem pela primeira vez descobria n'ella qualidades dignas de attenção.

— E podes negar que o és? — proseguiu Gabriella — Ora falla-me com franqueza. Resignar-te-ias sem pesar á ideia de passar o resto da tua vida esquecido e obscuro n'este canto da provinda, tendo por unica diversão uma caçada de lebre? Conformar-te-ias com as modestas aspirações de Jorge, que se satisfaz com dirigir em bom caminho a administração d'esta casa? Não sonhas muita vez com a brilhante sociedade dos salões da capital, onde todas as aristocracias se confrontam, onde se tracta com tudo quanto ha de elegante, de nobre, de distincto nas sciencias, nas letras e nas artes? Não tens já sentido a anciedade de viajar, de te engolfares nos focos da civilisação moderna; finalmente de viver em um mundo, onde os teus talentos, as tuas qualidades possam ser devidamente apreciadas?

— É muito lisonjeira, prima Gabriella. Mas, quando eu sonhasse com tudo isso... E não negarei que mais de que uma vez essas phantasias me tenham enlevado, mas de que me serviria? Acaso o mundo está á minha espera para me patentear todas as portas d'esses logares de fascinação?

— Para os rapazes de vinte annos, de talento e de vontade não ha barreiras no mundo. Querer é poder. O mundo é menos feroz do que parece. Quando alguem se aproxima d'elle com a intrepidez e o arrojo do domador, esta terrivel fera abaixa a cabeça e não ataca.

— E qual póde ser a minha carreira n'esse mundo?

— Não se escolhe de longe. Na presença dos caminhos escuta-se uma voz interior, que nos diz: «Por aqui?»

— Mas creia que eu sou um inexperiente. Fóra d'estes ares sentir-me-ia embaraçado.

— Eu prometto acompanhar-te nos primeiros passos.

— Sómente nos primeiros?

Maurício fez a pergunta com uma entonação de voz e com um olhar, que causaram estranheza a Gabriella.

Fitou-o, como para perscrutal-o, e depois com um sorriso malicioso nos labios, tornou-lhe:

— Pareceu-me perceber uma musica de galanteio n'essa pergunta? Vê lá. Pois nem eu te merecerei indulgencia e contemplação?


— Demasiada contemplação me tem merecido até, e Deus sabe se por meu mal.

— Um calembourg ao que percebo. Bonito. Onde está aquelle fiel Romeu de ainda agora? Se eu insistisse, era capaz de te arrancar uma declaração formal, estou vendo.

— Tem razão para zombar, prima, porém...

— Previno-te, Mauricio, de que não vale a pena perder o tempo commigo. Eu tenho uma maneira prompta e rasgada de tractar as coisas, que se não compadece com as longuras e alternativas de um galanteio a teu modo. Bem vês que já não sou criança de quinze annos, e que perdi a paciencia d'essa idade. Mas vamos almoçar, que nos estão chamando.

Durante o almoço, ao qual não assistiu D. Luiz, a conversa resumiu-se em observações de critica e analyse culinaria de frei Januario e nas glosas laconicas de Gabriella, que pôz final á prelecção, levantando-se da mesa e ordenando que lhe apparelhassem a egoa para um passeio.

Quando, momentos depois, descia ao pateo, apanhando a longa cauda do seu vestido de amazona, encontrou Mauricio, que parecia esperal-a para a ajudar a montar e por ventura para lhe servir de jockey.

— Então que quer dizer isto? Encarregaste-te agora das funcções de monteiro-mór? — perguntou-lhe Gabriella.

— Se me permitte que desempenhe estas funcções, muito me honrarei com ellas.

— Quem póde recusar um offerecimento tão amavel? Mas que me encontras tu de novo para me olhares com esses olhos?

— É porque effectivamente ainda a não tinha visto assim.

— Assim, como?

— Tão...

— Tão?...

— Com esses vestidos.

— Ai, ainda não? É verdade que ainda me não tinha dado para isso aqui. Então tambem ainda me não viste cavalgar?

— Ainda não.

— Olhem que descuido o meu! — disse Gabriella, saltando agilmente sobre o sellim, auxiliando-se da mão de Mauricio; e emquanto ageitava as dobras do vestido, preparava as redeas e acabava de apertar as luvas, proseguiu:

— Pois n'esse caso vaes ver o que são primores na arte. Ao que parece vens tambem?

— Se me permitte? — disse Mauricio, parando junto do cavallo, que ia já a montar.

— Com uma condição.

— Qual é?

— Quando eu te disser que nos separemos, hás de condescender.

— Obedecerei, embora me custe.

— É indispensavel. Tenho hoje uns projectos, que não posso realisar senão sósinha.

— Acompanhal-a-hei até onde me permittir.

— Está dito. A cavallo!

E, instigando de subito a egoa, partiu a galope, fazendo signal a Mauricio para que a seguisse.


Apesar de toda a diligencia d'este em montar, e da desfilada em que lançou o cavallo, não lhe foi facil attingil-a. Sendo emfim alcançada, a baroneza afroixou a rapidez da egoa, e os dois cavalgaram a passo, um ao lado do outro.

A violencia do exercicio avivara o carmim nas faces da baroneza e dera-lhe ao olhar uma animação maior do que a que lhe era habitual.

O sorriso que lhe entreabria os labios, e o arfar do seio, agitado pelo impeto da carreira, realçavam os dotes naturaes d'aquelle typo feminino, no qual se já se desvanecêra o frescor da primeira juventude, sobreviviam ainda os traços permanentes de uma belleza correcta.

Mauricio não se fartava de a admirar aquella manhã. Fôra para elle uma imprevista revelação. Dir-se-ia que até alli uma nuvem lhe occultára as perfeições da prima e que, de repente, essa nuvem se rasgára para o surprender.

O prestigio da elegancia, da moda, dos distinctos habitos sociaes, do espirito cultivado na frequencia da mais selecta sociedade, estava actuando no coração de Mauricio, predisposto como o de poucos para aquelle influxo.

A belleza e a intelligencia de Gabriella, aprimoradas ambas por uma arte, que sabia occultar-se para não prejudicar os effeitos que obtinha, attrahiam Mauricio de uma maneira irresistivel.

A baroneza tinha a perspicacia necessaria para o perceber. O seu amor proprio feminino era naturalmente afagado pela descoberta; mas, além d'esta desculpavel fraqueza, outras razões havia mais poderosas para que essa observação a lisonjeasse.

Gabriella, como já dissemos, ficára viuva muito joven, do barão de Souto Real. Tendo ainda instinctos de juventude a satisfazer, promettêra a si propria consultar o coração antes de prender-se segunda vez.

Quando recebeu a carta de D. Luiz e veio ter com elle á Casa Mourisca, sabedora das difficuldades financeiras com que luctava o fidalgo e dos nobres esforços de Jorge para remedial-os, occorrêra-lhe o pensamento generoso de favorecer o empenho do primo, offerecendo-lhe com a sua mão os recursos de que elle precisava para realisal-o. A admiração e o respeito que lhe inspirava o caracter sisudo de Jorge permittiam-lhe dar esse passo com o coração folgado.

Custava-lhe apenas ter de renunciar aos fulgores da capital, a que se habituára e que amava com toda a paixão de uma mulher da moda; mas confiava em que o seu bom senso e os subsequentes cuidados de familia lhe suavisariam o sacrificio. Tractando porém mais de perto com o primo, comprehendeu que devia desistir do seu projecto.

Jorge pareceu-lhe incapaz de se apaixonar; e com certeza, não a amando, não se resolveria a aceitar a mão que ella lhe offerecesse, mórmente por levar comsigo os recursos que o poderiam auxiliar na sua nobre empreza.

Gabriella abandonou pois a ideia que tivera. Em Mauricio não pensára ao principio. Achava-o tão leviano, que, como ella dizia, não podia lembrar-se seriamente de fazer d'elle um marido. Agora porém, notando a subita impressão que occasionalmente lhe produzira, e cujos effeitos duravam e progrediam, a baroneza principiou a encarar o caso debaixo de differente luz.

Se Mauricio se apaixonasse por ella, ser-lhe-ia facil fazêl-o partir para Lisboa e vencer a repugnancia que elle parecia oppôr a abandonar a aldeia justamente na occasião em que a resistencia do pae havia cedido.

Se, depois de deixar tomar maior incremento a este novo capricho de Mauricio, ella subitamente partisse para Lisboa, sem duvida que o arrastaria atraz de si. O resto fal-o-iam as seducções da capital.

Para conseguir este resultado, julgou pois Gabriella que não devia apagar aquelle fogo que principiava a atear-se no inflammavel coração do primo; lavareda rapida e fugaz, que importava? com tanto que durasse até extinguir a outra que lá ardia.

E se durasse mais? Quem sabe? Talvez que o primeiro pensamento de Gabriella se podésse realisar com uma variante. Mauricio não era Jorge. O caracter voluvel e inconstante do filho mais novo de D. Luiz não o garantia como um modêlo de maridos. Mas a baroneza, segundo elle proprio dissera ao primo, não era d'estas mulheres exigentes que zelam a posse de todos os pensamentos e de todos os instantes do homem que amam. A vida da alta sociedade ensinára-a a ser condescendente. Se encontrasse no marido verdadeira estima e delicadeza, não seria uma ou outra infidelidade que a obrigaria ao papel lacrimoso de esposa abandonada.

Depois, Mauricio tinha pelo menos sobre Jorge uma vantagem.

Não exigiria d'ella o sacrificio dos seus queridos habitos, nem a desterraria dos luzidos circulos que ella amava tanto. Antes lhe abriria ampla carreira de gozos, quando soltasse os vôos ás ambições, que lhe adivinhára.

Assim pois Gabriella deixava-se galantear por o primo e ensaiava n'elle a sua tactica admiravel, que o encontrou mais inexperiente do que era de suppôr em quem de tanta fama de experimentado gozava.

Mauricio porém achava-se pela primeira vez diante de uma mulher educada na alta escóla d'esta especial esgrima. A arte era demasiadamente subtil para elle a descobrir. Todo o artificio estava em simular a mais completa ausencia de affectação. Parecia tudo espontaneidade, irreflexão, imprudencia até, e julgando conquistar um coração indefezo e sem arte, o novel combatente era victima de um gladiador previdente, armado de vizeira e coiraça e jogando magistralmente com armas de melhor tempera.

A baroneza estava a acabar de convencer-se de que a supposta paixão de Mauricio por Bertha não passava de uma illusão ou de um capricho.


Mas não haveria em Bertha algum sentimento menos ephemero e que podésse ameaçar-lhe o coração?

Era esse o problema que restava resolver. E para esse fim sahira a baroneza. A presença de Mauricio impedia-a de proceder n'essa investigação, por isso exigira d'elle a promessa de a deixar, quando lh'o pedisse.

Cavalgaram por muito tempo juntos, antes que fosse reclamado o cumprimento d'essa promessa. Mauricio ia cada vez mais enlevado. Sómente proximo da estrada, que conduzia á Herdade, foi que a baroneza lhe pediu para se separarem.

Mauricio quiz romper o contracto, Gabriella porém insistiu.

Ao despedirem-se a baroneza disse para o primo, com uma inflexão de voz que alvoroçou o coração do pobre rapaz:

— Agora provavelmente vaes procurar vêr a menina Bertha?

Mauricio respondeu expansivamente:

— Conceda-me que lhe beije a mão, prima, e correrei a encerrar-me em casa com as impressões d'esta memoravel manhã.

Gabriella concedeu-lhe o pedido e recompensou-lhe com um sorriso o galanteio.

E Mauricio foi effectivamente para os Bacellos, com o pensamento occupado pela imagem da prima.

No meio dos seus enlevos pungia-o uma ideia.

«E Bertha?» pensava elle.

A pobre Bertha, que a vaidosa imaginação do rapaz teimava em representar perdida de amores, não soffreria muito se outra lhe disputasse com vantagem a posse do coração d'elle. E não estava esse perigo imminente?

É porém de notar que esta contrariedade era um dos maiores incentivos para augmentar a chamma da sua nascente paixão por Gabriella.

Havia uma perspectiva de lagrimas e de dôres a servir-lhe de fundo do quadro, e Mauricio, sem ser cruel e compadecendo-se até de antemão do mal que suppunha ir causar ao coração de Bertha, sentia-se seduzido por a situação que creára.

Expliquem como podérem estas contradicções de caracter, na certeza de que o facto não é excepcional, antes muito da regra commum.