Os Fidalgos da Casa Mourisca/XXVI

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XXVI



Clemente, o filho da Anna do Védor, que nos tem andado longe da vista desde a primeira vez que o encontramos, estava destinado a influir na sorte dos principaes personagens d'esta historia; convem portanto que outra vez o chamemos mais para a luz.

Sabemos já que a vida publica d'este bem intencionado rapaz não era isenta de espinhos. As resistencias e estorvos que se oppunham á carreira direita, que o seu vivo sentimento de justiça lhe traçára, deixavam-lhe intimos desgostos e turbavam-lhe a bucolica serenidade dos seus dias.

Embora ás iniquidades que observava fosse estranha a sua vontade e a sua cooperação; embora a consciencia lhe não exprobrasse uma unica infracção voluntaria das leis, que religiosamente acatava, ainda assim, como todas as almas bem formadas, Clemente tinha motivos de sobra para lhe amargurarem o coração generoso e leal, vendo de perto a parcialidade e as paixões más, que presidiam á distribuição da justiça pelas mãos dos seus superiores e os privilegios que faziam desviar a balança da horisontalidade com que elle sonhára.

Todos os caracteres nobres não adquirem, sem doloroso aprendisado, a desconsoladora sciencia, que se chama scepticismo. Cada illusão que se desvanece é um golpe fundo no mais sensivel da alma, e os conflictos da vida social deixam feridas que só lentamente cicatrizam.

Clemente estava n'este caso. Modestas como eram, as suas funcções civis tinham-lhe aberto os olhos para muitas coisas obscuras e desenvolvido no espirito um fermento de descrença.

Assustado com o que sentia, temendo saber mais e ser obrigado a operar como instrumento passivo em iniquidades que lhe repugnavam, Clemente sentiu o desejo de se acolher á vida privada, onde não lhe chegasse aos ouvidos o rumor das injustiças humanas.

Um novo incidente, em que tomaram parte os fidalgos do Cruzeiro, principaes fautores de todos os attentados no concelho, acabou de decidil-o.

Vimos em um dos capitulos precedentes, que elles protegiam muito ás escancaras a fuga de um refractario ao serviço militar, facto que sobremaneira irritára Clemente, o qual chegou a tentar pôr em prática as medidas extremas, que a lei lhe permittia. Encontrou, porém, na authoridade administrativa, que afagou a influencia eleitoral dos fidalgos, froixo apoio, e o refractario conseguiu escapúla.

Logo depois de realisada a fuga, Clemente, que a attribuia sobre tudo á falta de energia do seu chefe, recebeu d'este um officio censurando-o asperamente pela debil vigilancia que tivera no caso e admoestando-o para ser de futuro mais activo e diligente.

Esta duplicidade indignou o ingenuo rapaz, que resistiu a custo á tentação de ir dizer ao administrador algumas amargas verdades.

Dias depois houve um serão em casa de um lavrador da freguezia, e Clemente recebeu aviso de que os manos do Cruzeiro premeditavam para essa noite umas vinganças contra uns serandeiros com quem mantinham uma rixa antiga.

O regedor, não só por dever do cargo, como pelo desculpavel desejo de dar uma severa lição a esses incorrigiveis, causa principal dos seus desgostos, tomou providencias, reuniu os cabos e rondou as proximidades da casa do serão.

A precaução policial foi util, porque evitou alguma desgraça séria. Pela meia noite os dois irmãos do Cruzeiro sahiram ao caminho a um camponez, que recolhia do serão, e atacaram-n'o com impeto, que não denunciava um proposito innocente.

O regedor cahiu porém sobre elles, e a muito custo conseguiu captural-os, jurando que sómente os soltaria á ordem expressa da authoridade superior.

A ordem veio e redigida em termos severos para o honesto rapaz, a quem se recommendava mais tino e cordura no desempenho das suas obrigações.

Os apaniguados dos fidalgos, parasitas que ainda se nutriam da seiva quasi exhausta d'aquella carcomida arvore genealogica, clamaram contra o attentado do regedor e chegaram a ameaçar-lhe a existencia, fazendo-lhe esperas nocturnas. Mas, o que mais é ainda, o povo, os pobres, os opprimidos, os esmagados de hontem, esses mesmos, quasi levaram a mal ao regedor a falta de attenção que tivera para com os fidalgos. Transtornar uma regra social estabelecida, embora seja para bem, escandalisa sempre os fanaticos da ordem; e ha-os tão fervorosos, que a adoram, ainda quando ella revista a feição moscovita.

A taça trasbordou para Clemente. Pediu terminantemente a sua demissão e foi-lhe concedida, com muita facilidade por as eleições estarem proximas, e serem em regra incommodos impecilhos estes caracteres amigos do justo para o andamento da machina administrativa, quando empregada na grande tarefa de cunhar deputados com a effigie governamental.

Com grande jubilo celebrou Anna do Védor a resolução do filho. Havia muito tempo que ella lhe aconselhava aquelle passo.

— Que precisão tens tu, Clemente, de te metteres n'estas barafundas? Se não precisas d'isso para comer, para que has de perder o socego com coisas que te não dão interesse? — pregava ella, inoculando no filho a sua philosophia um tanto egoista. — Olha, rapaz, a tua casa já dá bem que fazer a um homem. E quem quizer que prenda os ladrões e ande adiante dos cabos em serviço do rei, que tu, graças a Deus, não ficas mais honrado com isso. Inda se essa gente do governo fizesse caso de quem os serve bem, mas tu estás vendo como elles são. Por isso deixa-os; elles que se avenham, que lá se entendem.

Assim que o filho efectivamente declinou o encargo da regedoria, disse-lhe a ajuizada matrona:

— Agora para a dares em cheio, sabes tu o que deves fazer? É casar-te. Isso é que era ouro sobre azul. Porque emfim, rapaz, só assim é que se ganham raizes em casa e que um homem é devéras homem de familia. Emquanto solteiros, ora adeus, por melhores que vossês sejam, lá vem um serão, lá vem uma caçada, lá vem uma doida de uma rapariga que vos faz andar a cabeça á roda. Não ha como é isto de ouvir gemer as crianças em casa e cantar a mulher a arrolal-as. Tu riste? É o que te digo. Quando eu me casei com teu pae, que Deus haja, todos me diziam: «Ó filha, não levas homem que te gaste muito os trastes da casa.» Porque, emquanto solteiro, elle tinha sido d'aquelles de se lhes tirar o chapéo, dos taes que Deus mandou fazer. Pois era vêl-o depois. Logo que podia, elle ahi estava ao pé de mim a brincar com as crianças. Até muitas vezes eu lhe cheguei a dizer: «Ó homem, sahe-me d'aqui para fóra; eu não gósto de vêr homens tão caseiros.» Por isso, rapaz, faze o que te digo, casa-te, que estás em boa idade.

— Não vou longe d'isso, minha mãe, mas bem vê que não é coisa que se faça assim do pé para a mão.

— Não, olha, tu tambem para andares muito tempo a arrastar a aza á rapariga é que não és, que isso sei eu. Pois então é tractar da coisa como de negocio serio e casar.

— Mas... e a noiva? Ahi está já a primeira dificuldade.

Anna do Védor olhou muito direita para o filho, e depois de um instante de silencio interpellou-o:

— E então tu, na tua verdade, ainda não lançaste as tuas vistas?

Clemente encolheu os hombros como quem não podia dizer que não, nem queria dizer que sim.

— Ora para mim é que tu vens com isso. Lançaste, sim, e nem podia deixar de ser, que não tinhas muito onde escolher. Queres que te diga quem é? Olha que tambem eu nunca tive outra na ideia.

— Mas eu não pensei ainda a serio....

— Adeus; e que tens tu que pensar? Porque é que te não havia de convir a pequena do Thomé?

Clemente respondeu um pouco sobresaltado:

— A mim de certo convinha; agora eu é que talvez lhe não convenha. A Bertha está educada tanto á cidade...


— E com quem queres tu que ella case, não me dirás? Com algum dos pequenos do fidalgo, hein? Que elles estão mesmo alli á espera d'ella. Deixa-te de tolices. A rapariga deve erguer as mãos ao céo se agarrar um marido, que não é nenhum labrego, que é homem de bem e capaz de estimal-a.

— Mas o pae, que a educou assim e que em tanta conta tem as prendas da filha, ha de aspirar a mais.

— O quê? O Thomé é um homem de juizo. E então digo-te mais, eu já lhe toquei n'esse negocio, e o homem não se deitou de fóra d'isso, antes mostrou que lhe agradava bem o projecto.

— Devéras fallaram n'isso?

— Então não t'o estou a dizer? E o Thomé da Povoa lembra-me bem que me disse: «A minha Bertha o que deve esperar é um marido honrado, trabalhador e que a saiba estimar, e o seu Clemente é a nata dos rapazes.» Depois, aqui para nós, o Thomé sabe as circumstancias em que tu estás, e, vamos lá, isso tambem influe. E faz elle muito bem, lá isso ninguém lhe póde levar a mal.

— Porém Bertha...

— Deixa-te de acanhamentos, rapaz. Sabes o que mais? O que eu estou vendo é que tu com'assim não dás conta do recado. Por isso vae ter com o Jorge. Elle é alli tudo em casa do Thomé, é quem dá lá os dias sanctos. O que elle diz é o que se faz, nem se mexe um pé em casa sem consultar o pequeno. E juizo tem elle para aconselhar bem, que aquillo foi mesmo um milagre do céo, o nascer aquelle rapaz na família. Pois vae tu ter com elle, vae e dize-lhe as tuas tenções, e elle gue se encarregue do mais. Vae por ahi, que vaes bem. Digo-t'o eu. O Thomé tens tu de teu lado, e Luiza diz sempre com o marido; emquanto á rapariga, ella ha de reconhecer que tu não és noivo que se engeite.

Horas depois, Clemente, a quem a mãe acabára de convencer, procurava Jorge no seu gabinete de trabalho na propriedade dos Bacellos.

Clemente encontrou Jorge sentado á banca, tendo diante de si massos de papeis e de livros, que consultava com attenção.

A entrada do filho de Anna do Védor não obrigou Jorge a interromper a sua tarefa; saudou-o com a affectuosa familiaridade que de pequeno usava para o seu irmão de leite, e continuou trabalhando.

— Bons dias, snr. Jorge. Pelo que vejo trabalha-se?

— Que remedio, meu bom Clemente, que remedio? Estes negocios de minha casa estão de tal maneira enredados, que não fazes ideia.

— N'esse caso fiz mal em entrar; vim distrahil-o.

— Não, não, Clemente, não. Deixa-te ficar, que me não estorvas. O que estou fazendo não é de tal transcendencia, que não me deixe fallar com os amigos. Estou aqui a ver se descubro n'esta papelada um documento de que preciso. Aquelle frei Januario sempre tinha isto em uma desordem! Eu bem sei o que elle merecia. E que me dás tu de novo, Clemente? Disseram-me que te demittiste do logar de regedor?

— E ha mais tempo que o devia ter feito, que nunca recebi senão desgostos no officio.

— Sim, cá por este mundo, quem andar por caminho direito póde contar com encontrões, que magoam — observou Jorge, sem erguer os olhos dos papeis.

— E não foram poucos os que me deram. Perdoe dizer-lh'o, snr. Jorge, mas aquelles seus primos do Cruzeiro...

Jorge encolheu os hombros, fazendo um gesto de desprezo.

— Que queres tu, homem? Se elles nem para si mesmos são bons! Aquillo nos Cruzeiros é uma cama de tres javalis, qual d'elles mais selvagem. Que se póde esperar d'aquella gente?

— Mas teem quem os attenda, que é o que me faz zangar. Uma authoridade descer áquellas baixezas e andar ahi a receber o beija-mão d'aquelles senhores! Isto, isto, a fallar a verdade, parece-me... nem eu sei o que me parece.

Jorge esteve algum tempo sem retorquir, absorvido pelo exame de um papel que encontrára no masso. Depois, tomando á margem uma nota a lapis, e pondo o papel de lado, ponderou vagamente:

— Coisas d'este mundo, Clemente; que remedio senão aceital-o assim?

— Isso é que é verdade.

— E lá por casa como vão? Tua mãe?

— Bem; foi ella quem me aconselhou esta visita.

— Sim? Então já não t'a agradeço.

— Eu, a fallar a verdade, como sei que tem o tempo muito occupado, receio...

— Ora deixa-te de tolices. Se por acaso estivesse tão occupado que me não fosse possivel receber-te, com a maior franqueza t'o diria. Bem sabes que entre nós não ha etiquetas.

— Pois eu vinha para pedir-lhe um favor.

— Terei muito prazer em te servir — respondeu Jorge, levantando-se para procurar novos papeis na secretaria e voltando a sentar-se á banca, sempre entretido no seu trabalho.

— Como sabe, pedi a minha demissão e estou agora resolvido a viver em minha casa, e a occupar-me sómente dos meus negocios.

— É justo. E quem bem trabalha no que é seu, tambem trabalha no que é de todos — ponderou Jorge emquanto executava uns calculos arithmeticos.

— Ora, para fazer a vontade a minha mãe e tambem por me sentir com inclinação para isso, estou meio decidido a...

— A casar-te, hein? — concluiu Jorge, sem manifestar surpreza, e notavelmente embebido na execução dos seus calculos.

— Justamente.

— É uma boa resolução. Os homens como tu dão excellentes chefes de familia. Podes fazer a tua felicidade e a da mulher com quem casares.

— Isso são favores seus, snr. Jorge.

— Ora! Mas a final o que queres tu? Vens ouvir-me de conselho n'esse negocio? A mim, um rapaz solteiro?...

— Não, senhor, a coisa é outra.

— Então?

— Eu já lancei as minhas vistas...

— Sim, é natural.

— Mas não sei ainda se serei bem acolhido e, para lhe fallar a verdade, não me sinto com animo de... de tractar disso em pessoa.

— Não? Ora essa! E então?

— E então lembrei-me do snr. Jorge para lhe pedir este favor.

— De mim?! Tem graça. Queres obrigar-me a representar o papel de casamenteiro. Com todo o gosto. Mas sempre tenho curiosidade de saber a razão por que te lembraste de mim — disse Jorge que, havendo concluido o calculo, poisára a penna e esfregava vivamente as mãos para aquecêl-as. Olhando d'esta vez directamente para o seu interlocutor, perguntou-lhe:

— E quem é a noiva?

— É a filha do Thomé da Povoa.

Estas palavras dissiparam instantaneamente toda a meia indifferença com que Jorge escutára até alli as communicações de Clemente. O estremecimento que não pôde reprimir ao ouvil-as, a subita transformação que se lhe operou na physionomia, bastariam para revelar a verdade a Clemente, se este bom rapaz não tivesse uma d'aquellas almas, onde nunca entram de subito as suspeitas, mas sómente depois de muitos e porfiados embates.

— A filha do Thomé da Povoa! — repetiu Jorge estupefacto.

— Sim — tornou Clemente, interpretando erradamente aquelle espanto — a filha do Thorné da Povoa, do Thomé da Herdade... Bertha, a que foi educada em Lisboa e que voltou ha tempos...

— Bem sei — atalhou Jorge com impaciencia — mas... Bertha...

E acrescentou quasi sem consciencia do que dizia:

— Bertha da Povoa... mas... mas como te lembraste agora de Bertha sem mais nem menos? É singular!

— Como me lembrei agora? Mas não foi agora que me lembrei. Eu já tinha penâado n'isso. É a noiva que eu proprio...

— Pois sim, mas... Como te deu logo para pensar em Bertha da Povoa? É o que pergunto.

— Ora essa! Em alguma havia eu de pensar. Se não fosse n'ella, seria em outra. Succedeu ser em Bertha. Coisas do coração...

— Ahi vens tu já com o coração — acudiu Jorge com mal reprimido despeito. — Vossês fallam no coração a proposito de tudo. E até agora então, que andavas todo influido com a tua regedoria, não te importaste com o coração, nem elle te dizia nada... Ora adeus! O coração!...

E erguendo-se da banca com certa agitação, que estava espantando Clemente, pôz-se a passeiar no quarto, e tão convulso que não conseguia preparar um cigarro, que mal sustinha nas mãos.

Clemente allegou:

— Eu não digo que isto seja uma paixão muito forte, uma paixão por ahi além; mas, resolvido a tomar estado, pensei na noiva que me conviria e lembrei-me de Bertha. É uma boa rapariga, bem educada e de alguns haveres...

Jorge cortou-lhe a palavra:

— Ah! então dize-me d'isso. Agora já entendo por que te lembraste de Bertha. Devias principiar logo por ahi. De alguns haveres! Ahi é que está a questão. Vossês são todos os mesmos a final. O interesse, o maldito interesse! Pois fazia melhor conceito de ti, Clemente; digo-te francamente que fazia de ti melhor conceito. Lá porque uma rapariga tem meia duzia de centos de mil reis, já a perseguem com proposito de casamento, já...

— Ó snr. Jorge — interrompeu Clemente, tão surprendido como vexado com o que ouvia — por quem é faça melhor opinião de mim. Não só me não lembrei de Bertha apenas pelo dinheiro, mas nem a quero perseguir. Olha quem? Eu! Se a rapariga disser que não, ou o pae, paciencia. Mas parece-me que a minha proposta não a deshonra.

Jorge principiava já a conhecer a sem-razão com que fallava, mas não podia ainda ceder totalmente ao bom senso que despertava em si. Não tinha previsto o caso, que se lhe offerecia, e sentia-se por isso irritado contra a hypothese que tão imprevistamente lhe surgira no caminho.

— Pois sim... mas... — murmurava elle, sem saber o que dissesse — mas... Bertha... Olha, se queres que te falle a verdade... Bertha não te convem.

— E porque acha?

— Porque... Ora, porquê?... Eu não posso bem dizer porquê... porque... porque não.

— Parece-lhe talvez que tem uma educação muita fina para mim?

— Não, não digo bem isso... mas...

— Eu tambem concordo. Mas attenda o snr. Jorge que aqui na terra as pessoas melhor educadas do que eu não a querem para mulher. Eu sei de fidalgos que não se lhes daria de inquietal-a, e já o teem mostrado. Mas creia que menos a honram os olhares d'esses taes, do que a minha proposta. Eu não apreciarei, como conviria, os talentos de Bertha, mas talvez os respeite melhor. E em todo o caso julgo que se poderá fazer de mim um bom marido.

— Ninguem te diz menos d'isso... mas... bem vês que... Eu não sei quaes são as tenções de Thomé, porém parece-me que...

— De Thomé sei eu que approvaria o casamento, porque já o disse a minha mãe.

A estas palavras cresceu outra vez a irritação de Jorge.

— Então já é negocio tractado? Os paes fallaram-se. Está dito tudo. É o absurdo costume cá da terra. Provavelmente vão exercer pressão sobre a pobre rapariga, que se sacrifica para fazer a vontade á familia. Olha, sabes que mais, Clemente, isso não é bonito. Para que hei de estar a dizer o contrario? Não é bonito. Nem eu te quero dizer tudo o que penso d'isso.

— Mas, valha-me Deus, eu estou devéras admirado de vêr o juizo que o snr. Jorge faz de mim! Pois imagina que eu consentiria em casar com alguma mulher contra vontade d'ella?

— Tu é que disseste que tua mãe e Thomé já se entenderam — observou Jorge, continuando a passeiar no quarto.


— Disse que fallaram n'isso e que elle não desapprovára. Mas o snr. Jorge conhece o Thomé e por isso sabe que elle não é homem capaz de obrigar a filha. Deus me livre de imaginar tal! Mas emfim vejo que o snr. Jorge não approva a minha escolha; eu respeito-o muito e não quero ir contra o seu parecer. Direi a minha mãe...

Jorge acudiu com vivacidade:

— Não, não. Eu não desapprovo. Essa é boa! Que tenho eu com isso? Segue lá o teu destino. E se fores feliz... tanto melhor. Eu sou teu amigo, desejo a tua felicidade. Anda... tenta... nada perdes em tentar. Emfim... eu não tenho objecções a pôr... só me parecia que... Mas emfim, anda para diante.

— Pois sim, mas... eu desejava que o snr. Jorge fosse quem fallasse.

Cresceu a impaciencia a Jorge.

— Não, não, isso é que não. Perde isso da ideia. Que lembrança! Eu fallar! E porque hei de ser eu? Que tenho eu com isso? Conheço o Thomé, não conheço a filha. Que me importa a mim saber se a Bertha te quer para marido, ou se não quer? Era até ridiculo. Mas como te lembraste de mim para esse emprego?

— Foi minha mãe quem me aconselhou.

— E porque não vae ella? Assim como tractou com o pae, que tracte com a filha. Quem quer negociar casamentos para os filhos não incumbe a estranhos parte da missão.

— É porque minha mãe julgava que o snr. Jorge não era para nós de todo em todo um estranho — murmurou tristemente o collaço de Jorge, a quem a imprevista maneira por que fôra acolhido por este tinha deixado em profundo desconsôlo.

Estas palavras de timida censura e a maneira branda e resignada com que foram ditas, commoveram Jorge e abateram a tempestade que lhe perturbára a habitual serenidade do seu espirito. Fazendo um esforço para dominar os despeitos que ainda sentia revoltos no coração, disse com maior placidez, apertando a mão de Clemente:

— E julgava bem tua mãe. Eu não posso ser para vós um estranho, nem vós para mim o sois. Farei o que desejas. Não faças caso das minhas palavras. Tenho andado um pouco impertinente estes dias por causa de certos negocios, e por isso fallei ha pouco mais vivamente. Desculpa. O teu projecto é razoavel, eu fallarei n'elle a Thomé. Que duvida? O que não prometto é servir-me de qualquer influencia que tenha sobre elle, porque... porque emfim... tenho escrupulos.

— Nem eu quereria que o fizesse. Basta que lhe exponha o caso; que lhe diga que estou resolvido a casar, e sentindo amor...

— Será melhor não fallarmos em amor — atalhou Jorge com renascente impaciencia — porque afinal, Clemente, vendo as coisas como ellas são, tu não amas Bertha.

Ao olhar espantado com que foram acolhidas estas palavras, Jorge respondeu já com mais força:

— Não amas, homem, não amas. Talvez estejas persuadido de que a amas, mas não ha tal amor. Desengana-te. Isso em ti é um projecto frio, pensado, no qual só achaste vantagens e portanto resolveste adoptal-o. Tens considerações por Bertha, entendes que podes estimal-a; mas amor é outra coisa. Deixemos porém isto. Fica decidido, eu fallarei a Thomé e dar-te-hei a resposta.

— Agradeço-lhe, snr. Jorge. Mas veja lá, se lhe custa...

— Porque ha de custar? Ora essa! Se fallo quasi todos os dias com o Thomé. Em logar de conversarmos no tempo que faz, ou no estado das terras, conversaremos n'isso. Sim, porque para mim é um assumpto como outro qualquer, O casamento de Bertha é um assumpto em que eu posso conversar com Thomé, naturalmente. Pois que tinha eu com o casamento de Bertha? Eu não sou irmão d'ella. Estimo-a, é verdade, mas... o que é certo é que... é que me não compete importar-me com o casamento de Bertha. Já vês então que não me póde ser custoso fallar n'isto ao pae... Pois porque te parecia que me havia de custar?

E Jorge dizia tudo isto com uma volubilidade e com uma inquietação que admirava Clemente.

— A mim? Por nada — respondeu este. — Eu dizia que no caso de não querer.

— Mas porque não? Fallo. Não tenho a menor duvida. Ámanhã dar-te-hei a resposta. Adeus. Agora peço-te licença para examinar umas contas.

— Eu retiro-me.

— Então adeus. E vae descançado; hoje mesmo tractarei d'isso. É uma coisa tão simples! Pois não te parece que é uma coisa simples? Sim, porque bem vês que eu nisso não tomo parte activa. Por acaso tinhas algum motivo para suppôr...

— Nenhum.

— Mas parecia que julgavas que eu tinha algum motivo... talvez...

— Eu não julgava tal — respondia Clemente cada vez mais espantado com a insistencia de Jorge, tão singular pelo menos como a sua primeira irritação.

Jorge conduziu o seu amigo até á porta do gabinete, onde se despediu d'elle, apertando-lhe affectuosamente a mão.

Depois de Clemente sahir, Jorge voltou a sentar-se á banca, e, como quem se dispunha a proseguir no trabalho interrompido, pôz-se com affectada tranquillidade a aparar um lapis, e trauteando a meia voz; mas tal era o estado nervoso em que ficáa e a sua distracção tão completa, que o lapis desfazia-se-lhe nas mãos, em vez de se apromptar para serviço. De repente arremessou de si o lapis, o canivete e varios livros e papeis que encontrou diante, e erguendo-se exclamou com accentuada amargura:

— Está pois decidido que eu vá pedir a Thomé da Povoa, e para Clemente, a mão de sua filha! Tem graça! Sempre se me preparam casos n'esta vida!

Principiou a passeiar na sala, com os braços cruzados, a cabeça pendida e o pensamento disputado por as mais contrarias paixões.

— Ahi está uma solução que eu não previa — continuou elle. — Sim, senhor; é a maneira mais simples e mais natural de cortar as dificuldades de que tanto me receiava. Assim tudo se resolve. Fixa-se o meu futuro, cessam as minhas hesitações, acalma-se a minha febre; applicarei o pensamento exclusivamente aos meus negocios... E ella... será feliz. Serão felizes... O casamento é natural... O Clemente é bom rapaz e Bertha...

Esta ideia provocou um movimento de reacção.

— Bertha e Clemente! Clemente marido de Bertha! Bertha casada com Clemente! Não me posso conformar com esta ideia. Não posso costumar-me a reunir estes dois nomes. É monstruoso, é impossivel!

E ficou por algum tempo abatido com os olhos fitos no chão, como subjugado por aquelle pensamento. Depois tornava, com nova energia:

— Mas quem tem a culpa? Sou eu, eu, que não tenho coragem para passar por cima de preconceitos ridiculos, que me prendo com teias de aranha e fico perpetuamente aguardando não sei o quê. Pois que podia eu esperar? Ou este sentimento em mim é real e poderoso ou não é. Se não é, com que direito me estou incommodando com o casamento de Bertha? Se é, porque não lhe obedeço? porque não me declaro, porque hesito...

Vinha depois a reflexão acalmar este momentaneo paroxismo.

— Sim, e havia de descarregar mais esse golpe sobre aquelle velho, que não tem culpa em acatar esses preconceitos no valor de um credo religioso! O primeiro golpe, por doloroso que elle o sentisse, foi-lhe salutar e evitou-lh'os mais crueis. Este porém só teria compensação para mim, e elle não lhe sentiria o beneficio. Vamos, deixemo-nos de loucuras. Resolvi ter coragem. Hei-de têl-a. Fallarei a Thomé.

Vinha-lhe em seguida um pensamento diverso.

— E qual será a resposta de Bertha? Ella não póde aceitar Clemente. A educação que recebeu... E porque não ha de aceitar? Clemente é um rapaz honrado, trabalhador, capaz de estimar e proteger a sua mulher. Que mais póde ella desejar? Este é o marido que lhe convem. Talvez lhe preferisse Mauricio, que se ri d'ella, que não pensará n'ella ámanhã, mas que é um rapaz da moda, elegante e que lhe sabe dizer bonitas palavras. A phantasia d'estas collegiaes...

Tornou a razão a fazer-se ouvir.

— Mas ahi estou eu com a minha loucura, accusando aquella pobre rapariga de defeitos, que nunca lhe pude descobrir. Mas se esta ideia faz-me perder o juizo! Pelo contrario, a Bertha tem muito bom senso, ha de comprehender o caracter do Clemente, apreciar as qualidades d'aquella excellente alma e aceitar a proposta... e até sem a menor hesitação. É um marido a final. As mulheres o que querem é um marido. Talvez até o Clemente agrade a Bertha... Hão de ser felizes. Porque não?... Bertha não tem aspirações mais solidas... Não póde ter... Aquillo com Mauricio é um capricho. Todos se hão de dar bem, e Bertha com a Anna do Védor... Que paz domestica! Tudo isto a final é naturalissimo. Eu sou que lhe estou dando mais importancia do que merece... Tracta-se de dizer a uma rapariga: «ahi está um homem que te pretende para mulher.» A rapariga, que não tem maiores aspirações, responde que aceita. E o casamento faz-se, e tudo entra no caminho ordinario, e eu mesmo me hei de habituar...

A explosão foi maior d'esta vez, que mais prolongado havia sido o periodo de repressão.

— Não, não me hei de habituar — exclamou elle agitadissimo — porque... porque eu amo-a! Escuso de mentir a mim mesmo. Amo-a! É uma fatalidade, mas amo-a. Foi o meu primeiro amor e ha de ser o ultimo. Amo-a e hei de padecer horrivelmente, vendo-a casada com outro. Mas, não importa, vencerei as minhas paixões. Se continuar a amal-a, ninguem o saberá; se odiar Clemente, suffocarei esse odio no coração; e se elle se despedaçar n'esse esforço, morrerei sem deixar no mundo o segredo de minha morte. O meu destino está definido; é este, o de vencer-me. Principia hoje a lucta, vou procurar Thomé da Povoa.

Depois de muitos d'estes combates intimos, Jorge tomou effectivamente o caminho da Herdade.