Os Lvsiadas/III
Agora tu Caliopeme enſina,
O que contou ao Rei, o illustre Gama:
Inſpira immortal canto, & voz diuina,
Neſte peito mortal, que tanto te ama.
Aſsi o claro inuentor da Medicina,
De quem Orpheo pariſte, o linda Dama:
Nunca por Daphne, Clicie, ou Leucothôe
Te negue o Amor diuido, como ſoe.
Poem tu Nimfa em effeito meu deſejo,
Como mereçe a gente Luſitana,
Que veja & ſaiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre & mana,
Deixa as flores de Pindo, que ja vejo
Banharme Apolo na agoa ſoberana.
Senão direy, que tẽs algum receio,
Que ſe eſcureça o teu querido Orpheio.
Promptos eſtauão todos eſcuitando,
O que o ſublime Gama contaria
Quando, deſpois de hum pouco eſtar cuidãdo,
Aleuantando o roſto, aſsi dizia:
Mandas me, o Rei, que conte declarando,
De minha gente a grão geanaloſia:
Não me manda contar eſtranha hiſtoria:
Mas mandas me louuar dos meus a gloria.
Que outrem poſſa louuar esforço alheio,
Couſa he que ſe coſtuma, & ſe deſeja:
Mas louuar os meus proprios, arreceio,
Que louuor tão ſospeito mal me esteja,
E pera dizer tudo, temo & creio,
Que qualquer longo tempo curto ſeja:
Mas pois o mandas, tudo ſe te deue,
Irey contra o que deuo, & ſerey breue.
Alem diſſo, o que a tudo em fim me obriga,
He não poder mentir no que diſſer,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me ha de ficar inda por dizer:
Mas perque nisto a ordem leue & ſiga,
Segundo o que deſejas de ſaber.
Primeiro tratarey da larga terra,
Deſpois direy da ſanguinoſa guerra.
Entre a Zona que o Cancro ſenhorea,
Meta Septentrional do Sol luzente,
E aquella, que por fria ſe arrecea
Tanto, como a do meyo por ardente,
Iaz a ſoberba Europa, a quem rodea,
Pela parte do Arcturo, & do Occidente:
Com ſuas ſalſas ondas o Occeano,
E pela Auſtral, o Mar Mediterrano.
Da parte donde o dia vem naſcendo,
Com Aſia ſe auizinha: mas o Rio
Que dos montes Rifeios vay correndo,
Na alagoa Meotis, curuo & frio
As diuide: & o Mar, que fero & horrendo
Vio dos Gregos o yrado ſenhorio:
Onde agora de Troia triumfante,
Não vê mais que a memoria o nauegante.
La onde mais debaxo està do Polo,
Os montes Hyperboreos aparecem,
E aquelles onde ſempre ſopra Eolo,
E co nome do ſopros, ſe ennobrecem,
Aqui tam pouca força tem de Apolo,
Os rayos que no mundo reſplandecem.
Que a neue eſtà contino pelos montes,
Gelado o mar, geladas ſempre as fontes.
Aqui dos Cytas, grande quantidade
Viuem, que antigamente grande guerra
Tiuerão, ſobre a humana antiguidade,
Cos que tinhão antão a Egipcia terra:
Mas quem tão fera estaua da verdade,
(Ia que o juyzo humano tanto erra:)
Pera que do mais certo ſe informàra,
Ao campo Damaſceno o perguntàra.
Agora neſtas partes ſe nomea,
A Lapia fria, a inculta Noruega,
Eſcandinauia Ilha, que ſe arrea,
Das victorias que Italia não lhe nega
Aqui, em quanto as agoas não refrea,
O congelado Inuerno, ſe nauega.
Hum braço do Sarmatico Occeoano,
Pelo Bruſio, Suecio, & frio Dano.
Entre eſte Mar, & o Tanais viue eſtranha
Gente, Ruthenos, Moſcos, & Liuonios,
Sarmatas outro tempo, & na montanha
Hircinia, os Marcomanos ſam Polonios
Sugeitos ao Imperio de Alemanha,
Sam Saxones, Boemios, & Panonios,
E outras varias nações, que o Reno frio
Laua, & o Danubio, Amaſis, & Albis Rio.
Entre o remoto Iſtro, & o claro eſtreito,
Aonde Hele deixou, co nome, a vida,
Estão os Traces de robuſto peito,
Do fero Marte, patria tam querida,
Onde co Hemo, o Rodope ſugeito
Ao Otomano està, que ſometida,
Bizancio tem a ſeu ſeruiço indino,
Boa injuria do grande Coſtantino.
Logo de Macedonia eſtão as gentes,
A quem laua do Axio a agoa fria:
E vos tamhem, o terras excelentes,
Nos coſtumes, engenhos, & ouſadia,
Que criaſtes os peitos eloquentes,
E os juizos de alta fantaſia:
Com quem tu clara Grecia o Ceo penetras,
E não menos por armas, que por letras.
Logo os Dalmatas viuem, & no ſeio,
Onde Antenor ja muros leuantou,
A ſoberba Veneza eſtâ no meio
Das agoas, que tam baxa começou
Da terra, hum braço vem ao mar, que cheio
De esforço, nações varias ſogeitou,
Braço forte, de gente ſublimada,
Não menos nos engenhos que na eſpada.
Em torno o cerca o Reino Neptunino,
Cos muros naturais, por outra parte,
Pela meyo o diuide o Apinino,
Que tam illuſtre fez o patrio Marte:
Mas deſpois que o porteiro tem diuino,
Perdendo o esforço veio, & bellica arte:
Pobre eſtà ja de antiga poteſtade,
Tanto Deos ſe contenta de humildade.
Galia ali ſe verà, que nomeada,
Cos Ceſareos Triumfos foy no mundo,
Que do Sequana, & Rôdano he regada,
E do Garuna frio, & Reno fundo:
Logo os montes da Nimpha ſepultada
Pyrene ſe aleuantão, que ſegundo
Antiguidades contão, quando arderão,
Rios de ouro, & de prata antão corrèrão.
Eis aqui ſe deſcobre a nobre Eſpanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo ſenhorio & gloria eſtranha,
Muitas voltas tem dado a fatal roda:
Mas nunca poderà, com força, ou manha,
A fortuna inquieta porlhe noda:
Que lha não tire o esforço & ouſadia,
Dos belicoſos peitos, que em ſi cria.
Com Tingitania enteſta, & ali parece
Que quer fechar o mar Mediterrano,
Onde o ſabido estreito ſe ennobrece,
Co extremo trabalho do Thebano:
Com nações differentes ſe engrandece,
Cercadas com as ondas do Occeano.
Todas de tal nobreza, & tal valor,
Que qualquer dellas cuida que he milhor.
Tem o Tarragones, que ſe fez claro,
Sujeitando Partênope inquieta,
O Nauarro, as Aſturias, que reparo
Ia forão, contra a gente Mohometa,
Tem o Galego cauto, & o grande & raro
Caſtelhano, a quem fez o ſeu Planeta,
Restituidor de Eſpanha, & ſenhor della,
Bethis, Lião, Granada, com Castella.
Eis aqui quaſi cume da cabeça,
De Europa toda, o Reino Luſitano,
Onde a Terra ſe acaba, & o Mar começa,
E onde Febo repouſa no Occeano:
Eſte quis o Ceo juſto, que ſloreça
Nas armas, contra o torpe Mauritano,
Deitando o de ſi fora, & la na ardente
Affrica eſtar quieto o nam conſente.
Eſta he a ditoſa patria minha amada,
Aa qual ſe o Ceo me da, que eu ſem perigo
Torne, com eſta empreſa ja acabada,
Acabeſe eſta luz ali comigo.
Eſta foy Luſitania diriuada,
De Luſo, ou Lyſa: que de Bacho antigo,
Filhos forão pareçe, ou companheiros,
E nella antam os Incolas primeiros.
Desta o Paſtor naſceo, que no ſeu nome
Se ve, que de homem forte os feitos teue,
Cuja fama, ninguem virà que dome,
Pois a grande de Roma não ſe atreue:
Eſta, o velho que os filhos proprios come,
Por decreto do, Ceo ligeiro, & leue,
Veo a fazer no mundo tanta parte,
Criando a Reino illuſtre, & foi deſta arte.
Hum Rei, por nome Affonſo, foy na Eſpanha,
Que fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que por armas ſanguinas, força & manha
A muitos fez perder a vida, & a terra:
Voando deſte Rei a fama eſtranha,
Do Herculano Calpe aa Caſpia ſerra,
Muitos, pera na guerra eſclarecerſe,
Vinhão a elle, & aa morte offerecerſe.
E com hum amor intrinſeco acendidos
Da Fè, mais que das honras populares,
Erão de varias terras conduzidos,
Deixando a patria amada, & proprios lares
Deſpois que em feitos altos & ſubidos.
Se moſtrarão nas armas ſingulares.
Quis o famoſo Affonſo, que obras tais,
Leuaſſem premio digno, & dões agoais.
Deſtes Anrique dizem que ſegundo,
Filho de hum Rei de Vngria exprimentado,
Portugal ouue em ſorte, que no Mundo
Entam não era illuſtre, nem prezado:
E pera mais ſinal damor profundo,
Quis o Rei Caſtelhano, que caſado,
Com Tereſa ſua filha o Conde foſſe,
E com ella das terras tomou poſſe.
Eſte deſpois que contra os deſcendentes,
Da eſcraua Agar, victorias grandes teue,
Ganhando muitas terras adjacentes,
Fazendo o que a ſeu forte peito deue.
Em premio destes feitos excellentes,
Deulhe o ſupremo Deos, em tempo breue,
Hum filho, que illuſtraſſe o nome vfano
Do belicoſo Reino Luſitano.
Ia tinha vindo Anrique da conquista,
Da cidade Hyeroſolima ſagrada,
E do Iordão a area tinha vista,
Que vio de Deos a carne em ſi lauada,
Que não tendo Gotfredo a quem reſiſta,
Depois de ter Iudea ſojugada.
Muitos que nestas guerras o ajudárão,
Pera ſeus ſenhorios ſe tornàrão.
Quando chegado ao fim de ſua idade,
O forte & famoſo Vngaro estremado,
Forçado da fatal neceſsidade,
O ſpirito deu, a quem lho tinha dado:
Ficaua o filho em tenra mocidade,
Em quem o pay deixaua ſeu traſlado:
Que do Mundo os mais fortes igualaua,
Que de tal pay tal filho ſe eſperaua.
Mas o velho rumor, não ſey ſe errado,
Que em tanta antiguidade não ha certeza,
Conta que a mãy tomando todo o eſtado
Do ſegundo Hymeneo, não ſe despreza:
O filho orfão deixaua deſerdado,
Dizendo que nas terras, a grandeza
Do ſenhorio todo, ſo ſua era,
Porque pera caſar ſeu pay lhas dera.
Mas o Principe Affonſo, que deſta arte
Se chamaua, do Auô tomando o nome,
Vendoſe em ſuas terras não ter parte,
Que a mãy com ſeu marido as mãda & come,
Feruendo lhe no peito o duro Marte,
Imagina conſigo como as tome.
Reuoluidas as cauſas no conceito,
Ao propoſito firme ſegue o effeito.
De Guimarães o campo ſe tingia,
Co ſangue proprio da intestina guerra,
Onde a mãy que tam pouco o perecia,
A ſeu filho negaua o amor, & a terra,
Co elle posta em campo ja ſe via,
E não ve a ſoberba, o muito que erra.
Contra Deos, contra o maternal amor:
Mas nella o ſenſual era maior.
O Progne crua, o magica Medea,
Se em voſſos proprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhay que inda Tereſa peca mais:
Incontinencia ma, cubiça fea,
São as cauſas deste erro principais.
Scilla por hũa mata o velho pay,
Eſta por ambas, contra o filho vay.
Mas ja o Principe claro, o vencimento,
Do padrasto & da inica mãy leuaua,
Ia lhe obedece a terra num momento,
Que primeiro contra elle pelejaua.
Porem vencido de Ira o entendimento,
A mãy em ferros aſperos ataua:
Mas de Deos foi vingada em tempo breue,
Tanta veneração aos pais ſe deue.
Eis ſe ajunta o ſoberbo Castelhano,
Pera vingar a injuria de Tereja,
Contra o tam raro em gente Luſitano,
A quem nenhum trabalho agraua, ou peſa:
Em batalha cruel, o peito humano,
Ajudado da Angelica defeſa.
Não ſo contra tal furia ſe ſuſtenta:
Mas o inimigo aſperrimo affugenta.
Não paſſa muito tempo, quando o forte
Principe, em Guimarães eſta cercado,
De infinito poder, que deſta ſorte,
Foy refazerſe o immigo magoado:
Mas com ſe offerecer aa dura morte,
O fiel Egas amo, foy liurado.
Que de outra arte podêra ſer perdido,
Segundo estaua mal aperçebido.
Mas o leal vaſſallo conhecendo,
Que ſeu ſenhor não tinha reſiſtencia,
Se vay ao Caſtelhano, prometendo,
Que elle faria darlhe obediencia.
Leuanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promeſſa, & conſciencia
De Egas moniz mas não conſente o peito
Do moço illuſlre, a outrem ſer ſogeito.
Chegado tinha o prazo prometido,
Em que o Rei Castelhano ja agoardaua,
Que o Principe a ſeu mando ſometido,
Lhe deſſe a obediencia que eſperaua.
Vendo Egas, que ficaua fementido,
O que delle Caſtella não cuydaua,
Determina de dar a doçe vida,
A troco da palaura mal comprida.
E com ſeus filhos & molher ſe parte,
A aleuantar co elles a fiança,
Deſcalços, & deſpidos, de tal arte,
Que mais moue a piedade que a vingança.
Se pretendes Rei alto de vingarte,
De minha temeraria confiança,
Dizia, eis aqui venho offerecido,
A te pagar co a vida o prometido.
Ves aqui trago as vidas inocentes,
Dos filhos ſem peccado, & da conſorte,
Se a peitos generoſos, & excellentes,
Dos fracos ſatisfaz a fera morte.
Ves aqui as mãos, & a lingoa delinquentes,
Nellas ſos exprimenta, toda ſorte
De tormentos, de mortes, pelo eſtillo
De Scinis, & do touro de Perillo.
Qual diante do algoz o condenado,
Que ja na vido a morte tem bebido,
Poem no çepo a garganta: & ja entregado,
Eſpera pelo golpe tam temido:
Tal diante do Principe indinado,
Egas eſtaua a tudo offerecido:
Mas o Rei vendo a eſtranha lealdade,
Mais pode em fim que a Ira a Piedade.
O grão fidelidade Portugueſa,
De vaſſallo, que a tanto ſe obrigaua,
Que mais o Perſa fez naquella empreſa,
Onde roſto & narizes ſe cortaua,
Do que ao grande Dario tanto peſa,
Que mil vezes dizendo ſuspiraua.
Que mais o ſeu Zopiro ſão prezâra,
Que vinte Babilonias que tomàra
Mas ja o Principe Affonſo aparelhaua,
O Luſitano exercito ditoſo,
Contra o Mouro que as terras habitaua,
Dalem do claro Tejo deleitoſo:
Ia no campo de Ourique ſe aſſentaua,
O arraial ſoberbo, & belicoſo:
Defronte do inimigo Sarraceno,
Poſto que em força, & gente tam pequeno.
Em nenhũa outra couſa confiado,
Senão no ſummo Deos, que o Ceo regia,
Que tam pouco era o pouo bautizado,
Que pera hum ſo cem Mouros aueria.
Iulga qualquer juyzo ſoſſegado,
Por mais temeridade que ouſadia,
Cometer hum tamanho ajuntamento,
Que pera hum caualleiro ouueſſe cento.
Cinco Reis Mouros ſam os inimigos,
Dos quaes o principal Ismar ſe chama,
Todos exprimentados nos perigos
Da guerra, onde ſe alcança a illuſtre fama:
Seguem guerreiras Damas ſeus amigos,
Imitando a fermoſa & forte Dama,
De quem tanto os Troyanos ſe ajudârão,
E as que o Termodonte ja goſtârão.
A matutina luz ſerena, & fria,
As Estrellas do Pollo ja apartaua,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amoſtrando ſe a Affonſo o animaua:
Elle adorando quem lhe aparecia,
Na Fê todo inflamado aſsi gritaua.
Aos infieis Senhor, aos infieis,
E não a my que creio o que podeis.
Com tal milagre, os animos da gente
Portugueſa, inflamados leuantauão,
Por ſeu Rei natural, eſte excelente
Principe, que do peito tanto amauão:
E diante do exercito potente,
Dos imigos, gritando o ceo tocauão:
Dizendo em alta voz, real, real,
Por Affonſo alto Rei de Portugal.
Qoal cos gritos & vozes incitado,
Pola montanha o rabido Moloſo,
Contra o Touro remete, que fiado
Na força eſtà do corno temeroſo:
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo mais ligeiro que forçoſo,
Ate que em fim rompendolhe a garganta,
Do brauo a força horrenda ſe quebranta.
Tal do Rei nouo, o eſtamago acendido,
Por Deos & polo pouo juntamente,
O barbaro comete apercebido,
Co animoſo exercito rompente:
Leuantão nisto os perros o alarido
Dos gritos, tocam a arma, ſerue a gente,
As lanças & arcos tomão, tubas ſoão,
Inſtromentos de guerra tudo atroão.
Bem como quando a flama que ateada,
Foi nos aridos campos (aſoprando
O ſibilante Boreas) animada
Co vento, o ſeco mato vay queimando:
A paſtoral companha, que deitada,
Co doçe ſono estaua, deſpertando,
Ao eſtridor do fogo que ſe atea,
Recolhe o fato, & ſoge pera a aldea.
Deſta arte o Mouro atonito & toruado,
Toma ſem tento as armas muy depreſſa,
Não foge: mas eſpera confiado,
E o ginete belligero arremeſſa:
O Portugues o encontra denodado,
Pelos peitos as lanças lhe atraueſſa.
Hũs caem meios mortos, & outros vão
A ajuda conuocando do Alcorão.
Ali ſe vem encontros temeroſos,
Pera ſe desfazer hũa alta ſerra,
E os animais correndo furioſos,
Que Neptuno amoſtrou ferindo a terra:
Golpes ſe dão medonhos, & forçoſos,
Por toda a parte andaua aceſa a guerra:
Mas o de Luſo, arnes, couraça & malha,
Rompe, corta, desfaz, a bola & talha.
Cabeças pelo campo vão ſaltando,
Braços, pernas, ſem dono & ſem ſentido,
E doutros as entranhas palpitando,
Palida a cor, o geſto amortecido:
Ia perde o campo o exercito nefando,
Correm rios do ſangue deſparzido
Com que tambem do campo a cor ſe perde
Tornado Carmeſi de branco & verde.
Ia fica vencedor o Luſitano
Recolhendo os trofeos & preſa rica,
Desbaratado & roto o Mauro Hispano,
Tres dias o gram Rei no campo fica:
Aqui pinta no branco eſcudo vfano,
Que agora esta victoria certifica:
Cinco escudos azues eſclarecidos,
Em ſinal destes cinco Reis vencidos.
E neſtes cinco eſcudos pinta os trinta
Dinheiros, porque Deos fora vendido,
Eſcreuendo a memoria em varia tinta,
Daquelle de quem foy fauorecido,
Em cada hum dos cinco, cinco pinta,
Porque aſsi fica o numero comprido:
Contando duas vezes o do meio,
Dos cinco azues que em Cruz pintando veio.
Paſſado ja algum tempo, que paſſada
Era esta grão victoria, o Rei ſubido
A tomar vay Leiria, que tomada
Fora muy pouco auia, do vencido:
Com eſta a forte Arronches ſojugada
Foy juntamente: & o ſempre ennobrecido
Scabelicaſtro, cujo campo ameno,
Tu claro Tejo regas tam ſereno.
A eſtas nobres villas ſometidas,
Ajunta tambem Mafra, em pouco eſpaço,
E nas ſerras da Lua conhecidas,
Sojuga a ſria Sintra, o duro braço,
Sintra onde as Naiades eſcondidas
Nas fontes, vão fugindo ao doçe laço:
Onde Amor as enreda brandameme,
Nas agoas acendendo fogo ardente.
E tu nobre Lisboa, que no Mundo,
Facilmente das outras es princeſa,
Que edificada foſte do facundo,
Por cujo engano foy Dardania aceſa:
Tu a quem obedece o Mar profundo,
Obedeceste aa força Portugueſa.
Ajudada tambem da forte armada,
Que das Boreais partes foy mandada.
La do Germanico Albis, & do Reno,
E da fria Bretanha conduzidos,
A destruir o pouo Sarraceno,
Muitos com tenção ſancta erão partidos,
Entrando a bocaja, do Tejo ameno,
Co arrayal do grande Affonſo vnidos.
Cuja alta fama antão ſubia aos ceos,
Foy posto cerco aos muros Vliſſeos.
Cinco vezes a Lũa ſe eſcondêra,
E outras tantas moſtrâra cheio o rosto,
Quando a Cidade entrada ſe rendêra,
Ao duro cerco, que lhe eſtaua poſto.
Foy a batalha tam ſanguina & fera,
Quanto obrigaua o firme proſupoſto:
De vencedores aſperos, & ouſados,
E de vencidos, ja deſesperados.
Deſta arte em fim tomada ſe rendeo,
Aquella que nos tempos ja paſſados
Aa grande força nunca obedeceo,
Dos frios pouos Sciticos ouſados:
Cujo poder a tanto ſe estendeo,
Que o Ibero o vio, & o Tejo amedrontados.
E em fim co Betis tanto algum podêrão,
Que aa terra do Vandalia nome dèrão.
Que cidade tam forte, por ventura
Auera que reſiſta, ſe Lisboa
Não pede reſistir aa força dura
Da gente, cuja fama tanto voa.
Ia lhe obedece toda a Eſtremadura,
Obidos, Alanquer, por onde ſoa
O tom das freſcas agoas, entre as pedras,
Que murmurando laua, & Torres vedras.
E vos tambem, o terras transtaganas,
Affamadas co dom da flaua Ceres,
Obedeceis aas forças mais que humanas,
Entregando lhe os muros, & os poderes.
E tu laurador Mouro, que te enganas,
Se ſustentar a fertil terra queres.
Que Eluas, & Moura, & Serpa conhecidas,
E Alcaçare do ſal, eſtão rendidas.
Eis a nobre Cidade, certo aſſento,
Do rebelde Sertorio antigamente,
Onde ora as agoas nitidas de argento,
Vem ſuſtentar de longo a terra, & a gente,
Pelos arcos reaes, que cento & cento
Nos ares ſe aleuantão nobremente.
Obedeceo, por meio & ouſadia
De Giraldo, que medos não temia.
Ia na cidade Beja vay tomar,
Vingança de Trancoſo deſtruida,
Affonſo que não ſabe ſoſegar,
Por eſtender co a fama a curta vida:
Não ſe lhe pede muito ſustentar
A Cidade: mas ſendo ja rendida,
Em toda a couſa viua, a gente yrada,
Prouando os fios vay da dura eſpada.
Com eſtas ſojugada foy Palmella,
E a piſcoſa Cizimbra, & juntamente,
Sendo ajudado mais de ſua eſtrella,
Desbarata hum exercito potente:
Sentio o a Villa, & vio o a ſerra della,
Que a ſocorrella vinha deligente.
Pela fralda da ſerra deſcuydodo,
Do temeroſo encontro inopinado.
O Rei de Badajoz era alto Mouro,
Com quatro mil cauallos furioſos,
Innumeros piões, darmas & de curo
Guarnecidos, guerreiros & luſtroſos:
Mas qual no mes de Maio o brauo Touro
Cos ciumes da vaca, arreceoſos,
Sentindo gente o bruto, & cego amante
Saltea o deſcuidado caminhante.
Deſta arte Affonſo ſubito moſtrado,
Na gente da, que paſſa bem ſegura,
Fere, mata, derriba denodado,
Foge o Rei Mouro, & ſo da vida cura,
Dum Panico terror todo aſombrado,
So de ſeguillo o exercito procura.
Sendo eſtes que fizerão tanto aballo,
Nomais que ſo ſeſenta de cauallo.
Logo ſegue a victoria ſem tardança,
O grão Rei incanſabil, ajuntando
Gentes de todo o Reino, cuja vſança
Era andar ſempre terras conquiſtando,
Cercar vay Badajoz, & logo alcança
O fim de ſeu deſejo, pelejando
Com tanto esforço & arte, & valentia,
Que a fez fazer aas outras companhia.
Mas o alto Deos, que pera longe guarda,
O caſtigo daquelle que o mereçe,
Ou pera que ſe emmende aas vezes tarda,
Ou por ſegredos que homem não conheçe,
Se ate qui ſempre o forte Rei reſguarda,
Dos perigos a que elle ſe offereçe.
Agora lhe não deixa ter defeſa,
Da maldição da mãy que estaua preſa.
Que eſtando na cidade que cercâra,
Cercado nella foy dos Lioneſes,
Porque a conquiſta della lhe tomâra,
De Lião ſendo, & não dos Portugueſes.
A pertinacia aqui lhe custa cara,
Aſsi como acontece muytas vezes,
Que em ferros quebra as pernas, indo aceſo
Aa batalha onde foy vencido & preſo.
O famoſo Pompeyo não te pene,
De teus feitos illuſtres a ruyna,
Nem ver que a juſta Nemeſis ordene,
Ter teu ſogro de ti victoria dina,
Poſto que o frio Faſis, ou Syene
Que pera nenhum cabo a ſombra inclina:
O Bootes gellado, & a linha ardente,
Temeſſem o teu nome geralmente.
Poſto que a rica Arabia, & que os feroces
Eniocos, & Colcos, cuja fama
O Veo dourado eſtende: & os Capadoçes,
E Iudea, que hum Deos adora & ama,
E que o molles Sofenos, & os Atroces,
Silicios, com a Armenia, que derrama,
As agoas dos dous Rios, cuja fonte
Estâ noutro mais alto & ſancto Monte.
E poſto em fim que deſdo mar de Atlante,
Ate o Scitico Tauro, monte erguido
Ia vencedor te viſſem, não te eſpante
Se o campo Emathio ſo te vio vencido,
Porque Affonſo veras ſoberbo & ouante,
Tudo render, & ſer deſpois rendido.
Aſsi o quis o conſelho alto celeſte,
Que vença o ſogro a ti, & o genro a este.
Tornado o Rei ſublime finalmente,
Do diuino juyzo caſtigado,
Deſpois que em Santarem ſoberbamente,
Em vão dos Sarracenos foy cercado.
E deſpois que do martyre Vicente,
O ſanctiſsimo corpo venerado.
Do ſacro promontorio conhecido,
Aa cidade Vliſſea foy trazido.
Porque leuaſſe auante ſeu deſejo,
Ao forte filho manda o laſſo velho,
Que aas terras ſe paſſaſſe dalentejo,
Com gente, & co beligero aparelho:
Sancho, desforço & danimo ſobejo,
Auante paſſa, & faz correr vermelho,
O rio que Seuilha vay regando,
Co ſangue mauro, barbaro & nefando.
E com eſta victoria cobiçoſo,
Ia não deſcanſa o moço ate que veja,
Outro eſtrago como este, temeroſo
No barbaro que tem cercado Beja.
Não tarda muito o Principe ditoſo,
Sem ver o fim daquillo que deſeja.
Aſsi eſtragado o Mouro, na vingança
De tantas perdas poem ſua eſperança.
Ia ſe ajuntão do monte, a quem Meduſa
O corpo fez perder, que teue o Ceo:
Ia vem do promontorio de Ampeluſa,
E do Tinge que aſſento foy de Anteo.
O morador de Abila não ſe eſcuſa,
Que tambem com ſuas armas ſe moueo:
Ao ſom da Mauritana & ronca tuba,
Todo o Reino que foy do nobre Iuba.
Entraua com toda esta companhia,
O Miralmomini em Portugal
Treze Reis mouros leua de valia,
Entre os quaes tem o ceptro Imperial:
E aſsi fazendo quanto mal podia,
O que em partes podia fazer mal.
Dom Sancho vay cercar em Santarem,
Porem não lhe ſocede muito bem.
Dalhe combates aſperos,fazendo
Ardis de guerra mil, o Mouro yroſo,
Não lhe aproueita ja trabuco horrendo,
Mina ſecreta, Ariete forçoſo:
Porque o filho de Affonſo, não perdendo
Nada do esforço, & acordo generoſo,
Tudo prouê com animo & prudencia,
Que em toda a parte ha esforço & reſiſtencia
Mas o velho a quem tinhão ja obrigado
Os trabalhoſos annos, ao ſoſego,
Eſtando na Cidade, cujo prado
Enuerdecem as agoas do Mondego:
Sabendo como o filho està cercado,
Em Santarem, do Mauro pouo cego,
Se parte diligente da Cidade,
Que não perde a preſteza co a idade.
E co a famoſa gente â guerra vſada,
vay ſocorrer o filho, & aſsi ajuntados,
A Portugueſa furia coſtumada,
Em breue os Mouros tem desbaratados:
A campina que toda eſtà qualhada
De marlotas, capuzes variados,
De cauallos, jaezes, preſa rica,
De ſeus ſenhores mortos chea fica.
Logo todo o reſtante ſe partio
De Luſitania, poſtos em fugida,
O Miralmomini ſo não fogio,
Por que antes de fogir lhe foge a vida,
A quem lhe eſta victoria permitio,
Dão louuores & graças ſem medida:
Que em caſos tão eſtranhos claramente,
Mais peleja o fauor de Deos que a gente.
De tamanhas victorias triumfaua,
O velho Affonſo, Principe ſubido,
Quando quem tudo em fim vencendo andaua,
Da larga, & muita idade foi vencido,
A palida doença lhe tocaua,
Com fria mão o corpo enfraquecido:
E pagàrão ſeus annos deste geito,
Aa triſte Libitina ſeu dereito
Os altos promontorios o chorarão,
E do rios as agoas ſaudoſas,
Os ſemeados campos alagarão,.
Com lagrimas correndo piadoſas:
Mas tanto pelo mundo ſe alargarão
Com fama ſuas obras valeroſas,
Que ſempre no ſeu Reino chamarão,
Affonſo, Affonſo os eccos, mas em vão.
Sancho forte mancebo, que ficàra
Imitando ſeu pay na valentia,
E que em ſua vida ja ſe exprimentâra,
Quando o Betis de ſangue ſe tingia,
E o barbaro poder desbaratâra,
Do Iſmaelita Rei de Andaluzia.
E mais quando os que Beja em vão cercârão.
Os golpes de ſeu braço em ſi prouârão.
Deſpois que foy por Rei aleuantado,
Auendo poucos annos que reinaua,
A cidade de Silues tem cercado,
Cujos campos o barbaro lauraua:
Foy das valentes gentes ajudado,
Da Germanica armada, que paſſaua.
De armas fortes & gente apercebida,
A recobrar Iudea ja perdida.
Paſſauão a ajudar na ſancta empreſa,
O roxo Federico, que moueo
O pederoſo exercito, em defeſa
Da cidade onde Christo padeceo,
Quando Guido co a gente em ſede aceſa,
Ao grande Saladino ſe rendeo:
No lugar onde aos Mouros ſobejauão,
As agoas que os de guido deſejauão.
Mas a fermoſa armada, que viera
Por contraste de vento, aaquella parte
Sancho quis ajudar na guerra fera,
Ia que em ſeruiço vay, do ſancto Marte
Aſsi como a ſeu pay acontecèra,
Quando tomou Lisboa, da meſma arte,
Do Germano ajudado Silues toma,
E o brauo morador deſtrue & doma.
E ſe tantos tropheos do Mahometa,
Aleuantando vay tambem do forte
Liones, não conſente eſtar quieta
A terra vſada aos caſos de Mauorte:
Ate que na ceruiz ſeu jugo meta
Da ſoberba Tui, que a mesma ſorte,
Veo ter a muitas villas ſuas vizinhas,
Que por armas tu Sancho humildes tinhas.
Mas entre tantas palmas ſalteado
Da temeroſa morte, fica erdeiro,
Hum filho ſeu de todos estimado,
Que foy ſegundo Affonſo, & Rei terceiro
No tempo deſte, aos Mauros foi tomado
Alcaçere do ſal por derradeiro:
Por que dantes os Mouros o tomarão,
Mas agora eſtruidos o pagarão.
Morto despois Affonſo lhe ſucede
Sancho ſegundo, manſo & deſcuidado,
Que tanto em ſeus deſcuidos ſe deſmede,
Que de outrem quẽ mandaua era mandado,
De gouernar o Reino que outro pede,
Por cauſa dos priuados foi priuado,
Porque como por elles ſe regia,
Em todos os ſeus vicios conſentia.
Não era Sancho não tam deſoneſto,
Como Nero, que hum moço recebia
Por molher, & deſpois horrendo incesto,
Com a mãy Agripina cometia:
Nem tam cruel aas gentes & moleſto,
Que a cidade queimaſſe onde viuia,
Nem tam mao como foi Hedio gabàlo,
Nem como o mole Rei Sardanapâlo.
Nem era o pouo ſeu tiranizado,
Como Sicilia foy de ſeus tiranos,
Nem tinha como Phalaris achado,
Genero de tormentos inhumanos:
Mas o Reino de altiuo, & coſtumado
A ſenhores em tudo ſoberanos.
A Rei não obedece, nem conſente,
Que não for mais que todos excellente.
Por eſta cauſa o Reino gouernou,
O Conde Bolonhes, deſpois alçado
Por Rei, quando da vida ſe apartou,
Seu yrmão Sancho, ſempre ao ocio dado
Eſte que Affonſo o brauo ſe chamou,
Despois de ter o Reino ſegurado:
Em dilatalo cuida, que em terreno
Não cabe o altiuo peito tam pequeno.
Da terra dos Algarues, que lhe fora
Em caſamento dada, grande parte,
Recupêra co braço, & deita fora
O Mouro mal querido ja de Marte:
Este de todofez liure & ſenhora
Luſitania,com força & bellica arte:
E acabou de oprimir a nação forte,
Na terra que aos de Luſo coube em ſorte.
Eis deſpois vem Dinis, que bem pareçe,
Do brauo Affonſo eſtirpe nobre & dina,
Com quem a fama grande ſe eſcureçe,
Da liberalidade Alexandrina.
Co este o Reino proſpero floreçe,
(Alcançada ja a paz aurea diuina)
Em constituições, leis & costumes,
Na terra ja tranquila claros lumes.
Fez primeiro em Coimbra exercitarſe,
O valeroſo officio de Minerua,
E de Helicona as Muſas fez paſſarſe,
A piſar de Mondego a fertil erua:
Quanto pode de Athenas deſejarſe,
Tudo o ſoberbo Apolo aqui reſerua.
Aqui as capellas da tecidas de ouro,
Do Bacaro, & do ſempre verde louro.
Nobres villas de nouo edificou,
Fortalezas, caſtellos muy ſeguros,
E quaſi o Reino todo reformou,
Com edificios grandes, & altos muros:
Mas deſpois que a dura Atropos cortou,
O fio de ſeus dias ja maduros:
Ficoulhe o filho pouco obediente,
Quarto Affonſo: mas forte & excelẽte:
Eſte ſempre as ſoberbas Caſtelhanas,
Co peito deſprezou firme & ſereno,
Porque não he das ſorças Luſitanas,
Temer poder maior, por mais pequeno
Mas porem quando as gentes Mauritanas,
A poſſuir o Eſperico terreno.,
Entrarão pelas terras de Caſtella,
Foy o ſoberbo Affonſo a ſocorrella.
Nunca com Semirâmis, gente tanta
Veio ôs campos Ydaſpicos enchendo,
Nem Atila, que Italia toda eſpanta,
Chamandoſe de Deos açoute horrendo.
Gottica gente trouxe tanta, quanta
Do Sarraceno barbaro eſtupendo,
Co poder exceſsiuo de Granada,
Foy nos campos Tarteſios ajuntada.
E vendo o Rei ſublime Caſtelhano,
A forca inexpugnabil, grande & forte,
Temendo mais o fim do pouo Hispano,
Ia perdido hũa vez, que a propria morte
Pedindo ajuda ao forte Luſitano,
Lhe mandaua a cariſsima conſorte,
Molher de quem a manda, & filha amada
Daquelle a cujo Reino foi mandada.
Entraua a fermoſiſsima Maria,
Polos paternais paços ſublimados,
Lindo o geſto: mas fora de alegria,
E ſeus olhos em lagrimas banhados,
Os cabellos Angelicos trazia,
Pelos eburneos hombros eſpalhados:
Diante do Pay ledo, que a agaſalha,
Estas palauras tais chorando eſpalha.
Quantos pouos a terra produzio
De Africa toda gente fera & estranha,
O grão Rei de Marrocos conduzio
Pera vir poſſuir a nobre Eſpanha:
Poder tamanho junto não ſe vio,
Despois que o ſalſo Mar a terra banha.
Trazem ferocidade, & furor tanto,
Que a viuos medo, & a mortos faz eſpanto.
Aquelle que me deſte por marido,
Por defender ſua terra amedrontada,
Co pequeno poder, offerecido
Ao duro golpe eſtà, da Maura eſpada,
E ſe não for contigo ſocorrido,
Verme as delle & do Reino ſer priuada,
Viuua & triſte, & posta em vida eſcura,
Sem marido, ſem Reino, & ſem ventura.
Por tanto, ô Rei, de quem com puro medo,
O corrente Muluca ſe congella,
Rompe toda a tardança, acude cedo,
Aa miſeranda gente de Caſtella.
Se eſſe gesto que moſtras claro & ledo,
De pay o verdadeiro amor aſſella:
Acude & corre pay, que ſe não corres,
Pode ſer que não aches quem ſocorres.
Não de outra ſorte a timida Maria
Falando eſtá, que a triſte Venus, quando
A Iupiter ſeu pay fauor pedia,
Pera Eneas ſeu filho, nauegando,
Que a tanta piedade o comouia,
Que caido das mãos o rayo infando.
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Peſandolhe do pouco que lhe pede.
Mas ja cos eſquadrões da gente armada,
Os Eborenſes campos vão qualhados,
Luſtra co Sol o arnes, a lança, a eſpada,
Vão rinchando os cauallos jaezados:
A canora trombeta embandeirada
Os corações aa paz acoſtumados:
Vay às fulgentes armas incitando
Polas concauidades retumbando.
Entre todos no meio ſe ſublima,
Das inſignias Reais acompanhado,
O vaſeroſo Affonſo, que por cima
De todos, leua o collo aleuantado,
E ſomente co geſto esforça & anima,
A qualquer coração amedrontado.
Aſsi entra nas terras de Castella,
Com a filha gentil Rainha della.
Iuntos os dous Affonſos finalmente,
Nos campos de Tarifa, eſtão defronte
Da grande multidão da cega gente,
Pera quem ſam pequenos campo & monte.
Não ha peito tão alto & tam potente,
Que de deſconfiança não ſe afronte,
Em quanto não conheça, & claro veja,
Que co braço dos ſeus Chriſto peleja.
Eſtão do Agar os netos caſi rindo,
Do poder dos Chrisſtãos fraco & pequeno,
As terras como ſuas repartindo,
Ante mão, entre o exercito Agareno:
Que com titulo falſo poſſuindo
Eſtà o famoſo nome Sarraceno.
Aſsi tambem com falſa conta & nua,
Aa nobre terra alhea chamão ſua.
Qual o membrudo & barbaro Gigante,
Do Rei Saul, com cauſa tam temido,
Vendo o Paſtor inorme eſtar diante,
So de pedras & esforço apercebido,
Com palauras ſoberbas o arrogante,
Despreza o fraco moço mal veſtido:
Que rodeando a funda o deſengana,
Quanto mais pode a Fê que a força humana.
Desta arte o Mouro perfido deſpreza,
O poder dos Christãos, & não entende,
Que eſtà ajudado da alta fortaleza,
A quem o Inferno horrifico ſe rende.
Co ella o Castelhano, & com deſtreza,
De Marrocos o Rei comete & offende.
O Portugues que tudo eſtima em nada,
Se faz temer ao Reino de Granada.
Eis as lanças & eſpadas retenião,
Por cima dos arneſes, brauo eſtrago,
Chamão (ſegundo as leis que ali ſeguião,)
Hũs Mafamede, & os outros Sanctiago,
Os feridos com grita o Ceo ferião,
Fazendo de ſeu ſangue bruto lago,
Onde outros meios mortos ſe afogauão,
Quando do ferro as vidas eſcapauão.
Com esforço tamanho eſtrue & mata,
O Luſo ao Granadil, que em pouco eſpaço,
Totalmente o poder lhe desbarata,
Sem lhe valer defeſa, ou peito de aço:
De alcançar tal victoria tam barata,
Inda não bem contente o forte braço,
Vay ajudar ao brauo Caſtelhano,
Que pelejando eſtà co Mauritano.
Ia ſe hia o Sol ardente recolhendo,
Pera a caſa de Thetis, & inclinado,
Pera o Ponente o veſpero trazendo,
Estaua o claro dia memorado,
Quando o poder do Mauro grande & horẽdo
Foi pelos fortes Reis desbaratado,
Com tanta mortindade, que a memoria,
Nunca no mundo vio tam gram victoria.
Não matou a quarta parte o forte Mario,
Dos que morrerão neſte vencimento,
Quando as agoas co ſangue do aduerſario,
Fez beber ao exercito ſedento,
Nem o Peno aſperiſsimo contrario,
Do Romano poder de naſcimento:
Quando tantos matou da illustre Roma,
Que alqueires tres de aneis dos mortos toma.
E ſe tu tantas almas ſo podeſte,
Mandor ao Reino eſcuro de Cocito,
Quando a ſancta Cidade desfizeſte
Do pouo pertinaz no antigo rito:
Permiſſam & vingança foy celeſte,
E não força de braço, o nobre Tito,
Que aſsi dos Vates foy profetizado,
E despois por I E S V certificado.
Paſſada eſta tão prospera victoria,
Tornado Affonſo aa Luſitana terra,
A ſe lograr da paz com tanta gloria,
Quanta ſoube ganhar na dura guerra,
O caſo triste & dino da memoria,
Que do ſepulchro os homẽs deſenterra,
Aconteceo da miſera, & mezquinha
Que deſpois de ſer morta foy Rainha.
Tu ſo, tu puro Amor com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deſte cauſa aa moleſta morte ſua,
Como ſe fora perfida inimiga:
Se dizem fero Amor que a ſede tua,
Nem com lagrimas triſtes ſe mitiga:
E porque queres aſpero & tirano
Tuas aras banhar em ſangue humano.
Eſtauas linda Ines poſta em ſoſego
De teus annos, colhendo doçe fructo,
Naquelle engano da alma, ledo & cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos ſaudoſos campos do Mondego,
De teus fermoſos olhos nunca enxuto,
Aos montes inſinando, & âs eruinhas
O nome que no peito eſcripto tinhas.
Do teu Principe ali te reſpondião,
As lembranças que na alma lhe morauão,
Que ſempre ante ſeus olhos te trazião,
Quando dos teus fermoſos ſe apartauão
De noite em doçes ſonhos, que mentião,
De dia em penſamentos que voauão.
E quanto em fim cuidaua, & quanto via,
Eram tudo memorias de alegria.
De outras bellas ſenhoras, & Princeſas,
Os deſejados tâlamos engeita,
Que tudo em fim, tu puro amor desprezas,
Quando hum gesto ſuaue te ſogeita:
Vendo estas namoradas eſtranhezas,
O velho pay ſeſudo, que reſpeita
O murmurar do pouo, & a fantaſia
Do filho, que caſarſe não queria.
Tirar Ines ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preſo,
Crendo co ſangue ſô da morte indina,
Matar do firme amor o fogo aceſo:
Que furor conſentio, que a eſpada fina,
Que pode ſustentar o grande peſo
Do furor Mauro, foſſe aleuantada,
Contra hũa fraca dama delicada?
Trazião a os horrificos algozes,
Ante o Rei, ja mouido a piedade:
Mas o pouo com falſas, & ferozes
Razões, aa morte crua o perſuade:
Ella com tristes & piedoſas vozes,
Saidas ſô da magoa, & ſaudade
Do ſeu Principe, & filhos que deixaua,
Que mais que a propria morte a magoaua.
Pera o Ceo criſtalino aleuantando,
Com lagrimas os olhos piedoſos,
Os olhos, porque as mãos lhe eſtaua atando,
Hum dos duros miniſtros riguroſos.
E deſpois nos mininos atentando,
Que tam queridos tinha, & tam mimoſos,
Cuja orfindade como mãy temia,
Pera o auô cruel aſsi dizia.
Se ja nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de naſcimento,
E nas aues agreſtes, que ſomente
Nas rapinas aerias tem o intento,
Com pequenas crianças vio a gente,
Terem tam piadoſo ſentimento,
Como co a mãy de Nino ja moſtrârão,
E cos yrmãos que Roma edificàrão.
O tu que tẽs de humano o geſto & o peito
(Se de humano he, matar hũa donzella
Fraca & ſem força, ſo por ter ſubjeito
O coração, a quem ſoube vencella)
A eſtas criançinhas tem reſpeito,
Pois o não tẽs aa morte eſcura della,
Mouate a piedade ſua & minha,
Pois te não moue a culpa que não tinha.
E ſe vencendo a Maura reſiſtencia,
A morte ſabes dar com fogo & ferro,
Sabe tambem dar vida com clemencia,
A quem pera perdela não fez erro:
Mas ſe to aſsi merece eſta inocencia,
Poem me em perpetuo & miſero deſterro,
Na Scitia fria, ou la na Lybia ardente,
Onde em lagrimas viua eternamente.
Poem me onde ſe vſe toda a feridade,
Entre Liões, & Tigres, & verey
Se nelles achar poſſo a piedade
Que entre peitos humanos não achey:
Ali co amor intrinſeco & vontade,
Naquelle por quem mouro, criarey
Eſtas reliquias ſuas que aqui viſte,
Que refrigerio ſejão da mãy triste.
Queria perdoarlhe o Rei benigno,
Mouido das palauras que o magoão:
Mas o pertinaz pouo, & ſeu deſtino
(Que deſta ſorte o quis) lhe não perdoão,
Arrancão das eſpadas de aço fino,
Os que por bom tal feito ali apregoão,
Contra hũa dama, ô peitos carniceiros
Feros vos amoſtrais, & caualleiros?
Qual contra a linda moça Policena,
Conſolação extrema da mãy velha,
Porque a ſombra de Achiles a condena,
Co ferro o duro Pirro ſe aparelha:
Mas ella os olhos com que o ar ſerena,
(Bem como paciente, & manſa ouelha)
Na miſera mãy postos, que endoudeçe
Ao duro ſacrificio ſe offereçe.
Tais contra Inès os brutos matadores,
No colo de alabaſtro, que ſoſtinha
As obras com que amor matou de amores
Aquelle que despois a fez Rainha:
As eſpadas banhando, & as brancas ſlores,
Que ella dos olhos ſeus regadas tinha,
Se encarniçauão, feruidos & yroſos,
No foturo castigo não cuidoſos.
Bem podêras, ô Sol, da viſta deſtes
Teus rayos apartar aquelle dia,
Como da ſeua meſa de Tyeſtes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia.
Vos, ô concauos vales que podeſtes,
A voz extrema ouuir da boca fria,
O nome do ſeu Pedro que lhe ouuistes,
Por muito grande eſpaço repetistes.
Aſsi como a bonina que cortada,
Antes do tempo foy, candida & bella,
Sendo das mãos laciuas mal tratada,
Da minina que a trouxe na capella:
O cheiro traz perdido, & a cor murchada:
Tal eſtà morta a palida donzella,
Secas do roſto as roſas, & perdida
A branca & viua cor, co a doçe vida.
As filhas do Mondego, a morte eſcura
Longo tempo chorando memorarão,
E por memoria eterna em fonte pura
As lagrimas choradas transformarão:
O nome lhe poderão, que inda dura,
Dos amores de Ines que ali paſſarão.
Vede que freſca fonte rega as flores,
Que lagrimas ſam a agoa, & o nome amores
Não correo muito tempo que a vingança
Não viſſe Pedro das mortais feridas,
Que em tomando do Reino a gouernança,
A tomou dos fugidos humicidas:
Do outro Pedro cruiſsimo os alcança,
Que ambos immigos das humanas vidas,
O concerto fizerão duro & injuſto,
Que com Lepido, & Antonio fez Auguſto.
Este castigador foy reguroſo,
De latrocinios, mortes & adulterios,
Fazer nos maos cruezas, fero & yroſo,
Erão os ſeus mais certos refrigerios:
As cidades guardando juſtiçoſo,
De todos os ſoberbos vituperios,
Mais ladrões caſtigando aa morte deu,
Que o vagabundo Alcides, ou Theſeu.
Do juſto & duro Pedro naſce o brando
(Vede da natureza o deſconcerto)
Remiſſo, & ſem cuidado algum Fernando,
Que todo o Reino pos em muito aperto,
Que vindo o Caſtelhano deuastando
As terras ſem defeſa, eſteue perto
De deſtruirſe o Reino totalmente,
Que hum fraco Rei faz fraca a forte gente.
Ou foy caſtigo claro do peccado,
De tirar Lianor a ſeu marido,
E caſar ſe co ella de enleuado,
Num falſo parecer mal entendido:
Ou foy que o coração ſogeito, & dado
Ao vicio vil, de quem ſe vio rendido,
Molle ſe fez, & fraco, & bem parece
Que hum baxo amor os fortes enfraquece.
Do peccado tiuerão ſempre a pena
Muitos, que Deos o quis, & permitio:
Os que forão roubar a bella Elena,
E com Apio tambem Tarquino o vio:
Pois por quem Dauid Sancto ſe condena?
Ou quem o Tribo illuftre deſtruio
De Benjamim? bem claro nolo inſina,
Por Sarra Faraô, Sychem por Dina.
E pois ſe os peitos fortes enfraqueçe,
Hum inconceſſo amor deſatinado,
Bem no filho de Almena ſe pareçe,
Quando em Omfale andaua transformado,
De Marco Antonio a fama ſe eſcureçe,
Com ſer tanto a Cleopatra affeiçoado:
Tu tambem Peno proſpero o ſentiſte,
Deſpois que hũa moça vil na Apulia viste.
Mas quem pode liurarſe por ventura,
Dos laços que amor arma brandamente
Entre as roſas & a neue humana pura,
O ouro, & o alabaſtro transparente
Quem de hũa peregrina fermoſura
De hum vulto de Meduſa propriamente
Que o coração conuerte que tem preſo,
Em pedra não: mas em deſejo aceſo.
Quem vio hum olhar ſeguro, hum geſto brando,
Hũa ſuaue & Angelica excelencia,
Que em ſi eſtâ ſempre as almas trãformãdo
Que tiueſſe contra ella reſiſtencia:
Deſculpado por certo estâ Fernando,
Pera quem tem de amor experencia:
Mas antes tendo liure a fantaſia,
Por muyto mais culpado o julgaria.