Os Ovos de Paschoa/Capítulo 5
Entre os espectadores d'esta festinha, a senhora tinha reparado n'um rapaz que não parecia tomar parte na alegria geral. Este rapaz podia ter uns dezeseis annos de idade, estava pobremente vestido, mas os seus modos, sua maneira de se ter, sua physionomia, seu semblante doentio, faziam gostar d'elle : seus compridos cabellos louros cahiamlhe nos hombros, e trazia na mão um bastão de viagem.
Quando toda gente se retirára, a senliora commovida de compaixão, approximou-se d'elle e perguntou-lhe a causa de sua tristeza. « Ah! suspirou o moço contendo as lagrimas, meu pae, que era um probre canteiro, morreu ha tres semanas. Com esse fallecimento ficamos reduzidos á ultima miseria ! Tenho mais um irmão e uma irmã mais moços do que eu : nossa pobre mãe está quasi sem meios para nos dar de comer. Um tio meu quer-me tomar para me ensinar o officio de meu pae, assim eu hei de poder ganhar do que comer e com que ajudar a minha mãe. Estou em viagem para a casa d'elle. Já fiz umas vinte leguas, ainda tenho que andar outras tantas, porque meu tio mora muito longe, do outro lado d'estes montes. »
A senhora, que achava conformidade entre a sorte da pobre viuva e a sua, não pòde deixar de chorar ouvindo a narrativa do rapaz. Ella deu-lhe leite, ovos, bolo e algumas moedas de prata para a sua mãe. O Edmundo e a Branca ficaram tambem commovidos. « Toma este ovo encarnado, disse a Branca, dá á tua irmāsinha e abraça ella por mim. — Está aqui um ovo azul, disse o Edmundo, leva a teu irmão, e diz-lhe que venha nos vêr uma vez, elle ha de comer comnosco doces e sopa de leite. » A senhora tomou por sua vez um ovo, sorrindo e voltando-se para o moço, disse : « Dá este ovo á tua mãe; a maxima que eslá n'elle escripta é a melhor consolação que lhe posso dar : « Confia em Deus, elle te ajudará. » Se ella se compenetrar bem d'esta verdade e fizer d'ella a regra de sua vida, terei-lhe eu feito o mais util presente que se possa dar. »
O moço agradeceu. Elle passou a noite em casa do moleiro, e no dia seguinte de manhã, logo que os rochedos do alto do valle se allumiaram com os primeiros raios do sol, poz-se a caminho, levando pão d'aveia e queijo de cabra, que o generoso moleiro tivera a delicadeza de pôr no seu alforge.
extrema pallidez, Fridolim ficou na duvida se o homem estava dormindo ou morto. Emfim abaixou-se com compaixão, pegou-lhe pela mão, e disse com voz commovida : « Meu caro senhor, o senhor está doente? »
Ao ouvir estas palavras, o desconhecido entreabriu os olhos, fixou-os no moço, e, dando um suspiro, quiz fallar, mas não pôde articular uma só palavra ; levando a mão á boca, apontou para o capacete que estava ao lado. Fridolim comprehendeu que elle queria beber ; tomou o capacele e foi á procura de algum riacho ou de alguma fonte. Velhos salgueiros isolados, que descobriu não longe d'alli, fizeram-lhe presumir que devia haver agua perto. Abriu caminho por entre os rochedos e as mattas, encontrou uma terra humida, e, mais além, uma fonte limpida, que brotava de um rochedo coberto de musgo. Encheu o capacete e voltou para perto do extrangeiro. Este bebeu a grandes tragos por diversas vezes, e pouco a pouco recuperou a falla.
« Louvado seja Deus! » taes foram as suas primeiras palavras. — Muito te agradeço, disse elle depois com voz fraca, apoiando a cabeça nas mãos, muito obrigado, bom e compassivo moço ! foi Deus quem dirigiu teus passos para aqui para me arrancares a uma morte dolorosa.
Mas tenho uma fome devoradora ; não tens por ahi alguma cousa que se possa comer ?
— Ah ! meu Deus ! disse Fridolim, porque é que não soube antes ? Tinha pão e queijo no meu alforge Infeliz que eu sou, tudo comi ! Mas espere, exclamou elle todo contente, tenho ainda ovos : é uma comida să e fortificante ; vai-lhe fazer bem. » Dizendo isto assentou-se ao lado do extrangeiro, tirou os ovos duros, descascou um, cortou-o em fatias e deu ao doente que comia e bebia ao mesmo tempo.
Fridolim ia já quebrar o terceiro ovo. « Está bom, basta, meu rapaz, disse-lhe o cavalheiro, não se deve comer muilo de cada vez, principalmente depois de grande abstinencia : por agora basta. Nunca fiz uma refeição tão boa ; graças a Deus, estou me sentindo com mais força. » Dizendo isto, levantou-se. « Ah! se você não tivesse vindo, esta noite seria a ultima da minha vida. »
— Nobre cavalheiro, disse Fridolim examinando mais minuciosamente sua brilhante couraça e suas magnificas roupas, como é que o senhor e o seu cavallo vieram ter n'este horrivel precipicio?
— Eu sou apenas escudeiro, respondeu o homem, e estou viajando ha já algumas semanas em serviço do meu amo. Perdi-me n'estas montanhas ; surprehendido pela noite e no meio das trevas precipitei-me n'este abysmo com o meu cavallo Elle não teve nada e ficou de pé, inas eu me machuquei tanto no pé, que não pude mais andar nem montar a cavallo. E um milagre que eu tenha morrido com a queda ; nunca poderei agradecer bastante a Deus. Curei a ferida, mas a febre me pegou, e não esperava mais senão morrer de fome no meio d'estes rochedos quando chegaste como um anjo mandado do céo para me chamar á vida. Agora, diz-me tu meu bom rapaz, como que é vieste parar n'este horrivel deserto?
Fridolim contou então tudo quanto lhe tinha acontecido, e o homem ouvia com attenção o que elle dizia, interrompendo-o de vez em quando para lhe fazer certas perguntas : « Como acho bonito, dizia elle, essas cascas de ovos encarnados e azues espalhados ahi pelo chão em cima da herva : é maravilhoso, nunca vi cousa tão bonita. Ah ! mostra-me ainda o ovo que puzeste em teu alforge ; deixa-me examinal-o melhor. »
Fridolim deu-lh'o, dizendo que lh'o tinham dado. O escudeiro examinou bem o ovo, com os olhos cheios da lagrimas, disse : O que está escripto n'este ovo, é verdade: « Confia em Deus elle te ajudará na afflicção ! » Ah! acabo de verificar que isto é verdade : do fundo d'esie abysmo implorei o seu soccorro. Elle ouviu minha voz supplicante. Que elle seja louvado. Abençoadas sejam as duas crianças que te deram esses ovos ! Ah ! elles não pensavam salvar a vida a um extrangeiro, tirando-o de uma morte cruel ! Abençoada seja nobre senhora que escreveu sobre este ovo esta divisa consoladora. Meu amigo, continuou elle, dê-me este ovo, quero guardal-o para ter sempre diante dos olhos esta maxima, cuja verdade manifesta-se da modo tão patente. Quero que os meus filhos e netos sejam confirmados na confiança em Deus, vendo este ovo e lendo esta maxima. Talvez que d'aqui a cem annos meus tataranetos contem como é que dois ovos salvaram-lhes a vida. Dá-m'os : eu te darei uma outra cousa. » Dizendo isto tirou a bolsa, deu a Fridolim uma moeda de ouro por cada ovo que tinha comido e duas por aquelle que tinha a divisa. O moço não queria dar o ovo, mas acabou por ceder aos pedidos do pobre ferido.
Este disse então levantando os olhos para o céo :
« O dia já vai acabar, as mattas e os rochedos começam a ficar dorados com o sol poente, vê se podes me fazer montar o meu cavallo. O caminho pelo qual desceste n'este precipicio dá esperança de poder sahir d'elle. »
Fridolim ajudou-o a montar a cavallo e foi puxando o animal pela redea. A muito custo, conseguiram sahir do barranco e chegar ao alto do monte ! Oh ! que sensação agradavel sentiu o infeliz extrangeiro quando tornou a vêr as florestas e os montes allumiados pelos raios do sol poente !
« Podemos ainda hoje chegar á casa de meu tio, disse Fridolim : eu ando bem e depressa, e o seu cavallo não ha de ficar atraz. O cavalheiro ha de ser bem recebido : meu tio é um bom homem. Não só lhe ha de dar agasalho, como tambem lhe ha de tratar até ao seu completo restabelecimento. »
Ao anoitecer, chegaram á cabana do honesto canteiro, que recebeu affavelmente o escudeiro, e batendo no hombro do seu joven sobrinho, felicitou-o por se ter tão bem comportado n'esta occasião. O Fridolim, fez sentir o quanto estava penalisado por não poder cumprir com a vontade da boa senhora e dos seus filhos, mandando os ovos tinctos á sua mãe, ao seu tio e á sua irmã.
« O que estás ahi a contar? disse lhe o tio, na verdade não comprehendo nada ao que me estás dizendo ha meia hora, ovos vermelhos, azues e de outras côres! Não comprehendo tambem o que têm de melhores esses ovos do que os outros, que tambem valem alguma cousa ; mas mesmo que fossem de ouro não podias empregal-os melhor. Evitaste que um homem morresse de fome, e te conduziste como um honesto rapaz. Fizeste o mesmo que o bom Samaritano ; agora cumpre-me fazer o resto... E tu nada pagarás, comprehendeste ? » accrescentou elle sorrindo.
O escudeiro mostrou o ovo com a divisa : « Na verdade é bem bonito, disse o tio ao sobrinho ; mas não tenhas pena. Este ouro ha de agradar mais á tua mãe. Dá cá, vou trocal-o : tua mãe poderia vêr-se embaraçada em achar troco. » O rapaz ficou admirado vendo tanto dinheiro miudo que elle teve pelo seu ouro ; elle não conhecia o valor do ouro. « Vês-tu, disse-lhe o tio, tua mãe tambem comprehende a verdade d'esta maxima : « Deus ajuda na afflicção. » É uma maxinia mais preciosa do que todo o ouro do mundo ; convem, porém, não precisar de um ovo para reconhecel-a : nunca te esqueças d'isto, meu amigo. »
O escudeiro ficou em casa do canteiro até ficar de todo restabelecido, e não deixou de remunerar generosamente, quando partiu, toda a gente da casa.