Os Retirantes/I/XIX

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Essa cordialidade entusiástica de Paula cessou, porém, com a separação do grande amigo. Desde que ficou só, rompeu em exclamações contra si próprio, acusando-se da confiança demasiada que tivera em Marciano: esta alma de lodo devia infeccionar-lhe a existência, que se desdobrava luminosa como os meios-dias de verão.

Afundou-se num mar de pensamentos que se encontravam, choeavam-se como ondas encapeladas, e desfaziam-se como espuma. A realidade é que Marciano conhecia-lhe a vida inteira e aguerria-se com a própria torpeza para combatê-lo de maneira vantajosa.

— Ah! mas eu estrangulo esse velho tonto! - bradou num acesso de cólera. - Não há de ser um miserável quem me venha perder para sempre.

A imagem de Eulália surgia-lhe entre as explosões da cólera com a inflexibilidade da sua ternura angélica, súplice, lamentosa, pedindo-lhe que se abonançasse por ela e por seu filho. Se ele se fizesse odiar, se desse motivo a que se lhe alienasse a estima da paróquia, o que seria deles? Era preciso acalmar-se, e condescender para salvá-los.

— Miserável! - rugia de quando em quando o rancor sombrio do vigário. - E é pai, e pode sê-lo diante de Deus!

— Sr. vigário, mandam chamar da casa da d. Ana - disse o pequeno assomando repentinamente à porta.

Paula, estremecendo e levando automaticamente a mão à cabeça, respondeu como se estivesse alucinado:

— Vá dizer que eu sei os meus deveres; que não tenho medo de fantasmas.

O pequeno, assustado, como se houvesse cometido algum erro, obrigado aos puxões de orelha dolorosíssimos do seu amo, transmitiu o recado, mas acrescentando:

— Ele está doente; tem os olhos como postas de sangue e tremeu como se tivesse frio.

— Ouça - gritou de dentro o vigário -, diga que não posso ir lá hoje; ficará para amanhã de noite, sem falta. Que dêem o recado a d. Eulália.

O som das suas palavras como que o acordou da súbita demência, e, sentando-se junto à mesa do centro da sala, pôs-se a brincar com os dedos sobre os papéis aí esparsos. Os olhos abaixaram-se-lhe distraidamente e um sorriso deslizou-se-lhe manso como os da esperança. Em frente estavam abertas as contas de Antão Ramos, pelo fornecimento aos retirantes.

Paula inclinou-se e pôs-se a rubricá-las com a precipitação de um poeta, dando forma a um pensamento que lhe passou de relance.

— É mais um amigo que tenho, e ele vale sozinho por 20 Marcianos! Tudo há de ser arranjado com tempo.

O bem-estar do cálculo não durou nem dois minutos; o pequeno pediu licença para d. Eulália, que apareceu com ele na entrada da sala.

— O que tens tu, Eulália? - perguntou o vigário querendo dissimular o espanto de tão intempestiva visita.

— Venho saber o que é que eu tenho que tanto faço chorar minha tia.

Paula olhou em torno de si, e fechando as janelas e a porta, abraçou febrilmente a cintura de Eulália.

— Vamos para o meu quarto - disse-lhe com voz trêmula -, é preciso que ninguém nos veja e nos ouça.

A janela do quarto foi cautelosamente entrecerrada, e o vigário sentou-se na rede, colocando sobre os seus joelhos a sua dócil vítima.

— Então a titia não sabe que estás doente? - perguntou conchegando à sua a face da amante.

— Sabe, e era muito desvelada comigo; mas de repente tornou-se minha inimiga e nem quer que as minhas irmãs me falem.

— Como tens padecido, filha! Eu não pensei que de um amor tão profundo nascessem tamanhos desgostos.

— É um amor condenado, e é justo que eu sofra por ele. Se soubesse como eu ainda agora, não sei por que, tive vexame do olhar de Marciano!...

— Ah! ele esteve com vocês? - perguntou sobressaltado o vigário.

— Esteve, e foi por dizer que a minha doença duraria ainda alguns meses que a minha tia entristeceu-se a ponto de me tratar assim.

— Malvado! estende a sua vingança a quem nunca o ofendeu - disse Paula levantando-se de um salto.

— Mas o senhor também tem medo das palavras de Marciano?

— Se tenho, filha! Tu não sabes a extensão do nosso infortúnio; é agora que ele se faz maior. Dentro do tempo fatal...

— O que é que vai acontecer? O senhor não nos deixará nunca, não é verdade? Diga, porque eu nada temo consigo.

O vigário envolvia com um olhar de compaixão o rosto da jovem, molhado pelas lágrimas. Toda a hediondez do caráter frio e repelente do sedutor parecia ter-se dissolvido e evaporado na doçura daquele profundo olhar. O semblante comovido dizia que não era somente a paixão bruta, carnal, estimulada pela torpe lubricidade caprina, que o impelira através do povoado, o que o prendia a Eulália. Era alguma coisa, que vinha do lado bom da sua alma, gasta aliás pela hipocrisia, algemada pela insensatez de um juramento, que não podia, que não devia ser obedecido. Embora nodoado pelo crime, empoeirado e enlameado pelas intrigas, marcado pelo estigma do sacrilégio, era o amor com toda a sua força purificadora, com toda a sua pujança de virgindade perpétua, o que nesse momento ele sentia. Causava espanto vê-lo surgir de um seio tão ignominioso, e todavia espanujava-se luxuriante e vivaz: os lírios não perdem a alvura do colorido e a suavidade do perfume por arrebentarem da sepultura de um colérico.

— Amas-me então, Eulália?

Uma explosão de soluços respondeu à pergunta namorada e o vigário prosseguiu:

— Eu sei que a tua sinceridade é igual ao teu sofrimento, por isso mesmo espero que Deus minorará a nossa desgraça.

— Mas... - perguntou impaciente a moça - diga-me o que vai acontecer.

— Dize-me tu primeiro: não julgarias que seria uma vergonha assassina saberem todos que tu eras minha amante... a amante de um padre?

— Mas o senhor bem sabia disso e...

— Não te envergonharias um dia, quando tu fosses mãe?...

— Não, não quero ouvi-lo falar assim; causa-me tanto medo...

— Quando dissessem - prosseguiu Paula animando-se progressivamente - "Aquela moça perdeu-se com um padre!"

— Piedade! não é o senhor quem me deve torturar tanto.

— Quando todos os maldizentes repetissem: "Aquela criança, que ali vai tão alegre, tão desdobrada na sua inocência, não pode dizer alto o nome de seu pai!"

— Ah! o senhor é impossível que me ame, porque então não me falaria assim.

— Amo-te! - exclamou com efusão o vigário. - Amo-te hoje mais que nunca!... Mas quero compartir o teu sofrimento, amargurar-me na mesma angústia, porque o dia em que todos saberão do teu erro e do meu crime, está próximo, Eulália, muito próximo!

— Vou então ser mãe? - soluçou com terror a desventurada. - Quanta desgraça, santo Deus!

Esta explosão de desespero, porém, durou apenas um minuto. O rosto da moça asserenou-se logo, e foi já com a voz tranqüila que acrescentou:

— Vou ser mãe, não é assim?... Não importa, será o que Deus quiser.

A sublime resignação de Eulália não ecoou no coração de Paula. Muitas vezes nas suas criminosas entrevistas com a moça, quando lhe ouvia as queixas da sua doença, tinha tido ímpetos de, entre carícias e consolações, desvendar-lhe a causa do seu padecimento. Mas falecia-lhe o ânimo, e acovardado forcejava para amordaçar a consciência que lhe repetia baixinho: "já não podes esconder a tua infâmia, ela é mãe". Só este pensamento acabrunhava-o e fazia-o delirar; como que via aparecer entre si e Eulália a figura pálida de Irena, a lastimar-se e a condenar a crueldade da amiga, que oferecera em holocausto a um sentimento indigno a pureza de seu amor por Feitosa. Era para ele um martírio só o pensar que poderia dar-se tal revelação. Quando, pela vizinhança da madrugada, pulava a janela, que se abria do quarto de Eulália sobre a horta, parecia-lhe ver enfileirados junto à cerca os vultos de Irena, de Rogério e Augusto. Eles o perseguiam de contínuo, já apertando-o entre as tenazes ardentes do pesadelo, já surgindo sobre a cruz da hóstia, na hora em que tentava encarnar o pensamento nas frases místicas da missa. Mas neste momento os seus receios tornavam-se mais cruéis e temerosos. Seguiam-no cochichando, com pequenas risadas escarninhas, frias como a impassibilidade do sobrenatural; e de espaço a espaço pendendo-se-lhes ao ouvido, perguntavam-lhe que faria agora do filho e onde esconderia o aviltamento de Eulália. E parecia-lhe ver Feitosa mostrar-lhe a sua chaga estilando sangue; Rogério - os cabelos brancos manchados; Irena - o coração cansado de palpitar saudades e de tragar humilhações.

Foi este sevo temor o que o vigário sentiu em face da resignação de Eulália e, parando diante dela, perguntou-lhe a tremer:

— E tens coragem para dizer - "eu sou mãe"?

— Oh! Deus há de dar-me - murmurou a desventurada.

— Mas o teu amor perder-me-á! - exclamou com amargura o vigário. - Toda a gente apontar-me-á como teu amante, e recordando-se de que teu pai confiou-te à minha guarda, odiar-me-á como a um ente abjeto.

— É a fatalidade da nossa má sina.

— Não, Eulália, escuta: é preciso que ninguém o saiba; a punição que d. Ana te inflige será a que todos te infligirão.

— Mas o que hei de eu fazer?

Paula chegou-se para mais perto da moça, e trêmulo até o tiritar, pronunciou com uma entoação desesperada:

— O que hás de fazer?... Deitar fora... matar essa criança...

— Nunca! nunca! - respondeu Eulália ofegante. - Não cometerei mais este crime. Eu saberei defender meu filho contra todos.

— Não poderás, Eulália; lutarás em vão, porque para as mulheres como tu, não há perdão - murmurou temerosamente o vigário. - Cede... pelo amor que tinhas ao teu pai, cede...

— Não, nunca!

— Mas vê que me apontas a todo o povoado...

— Partirei então; irei para bem longe onde não o possa... envergonhar.

— Doida, não vês que a tua ausência não basta para salvar a minha honra?

— E importou-se o senhor com a minha? - exclamou a moça arrebatadamente. - Não quero; não quero ser assassina do meu próprio filho. Deixe-me passar.

Paula recuou diante desse assomo de dignidade e ficou perplexo a ver a jovem afastar-se apressada e altiva. Mas de um salto, como se houvera ensandecido, levantou-se, e, segurando-lhe violentamente o braço, voltou-a de face para si, com uma brutal reviravolta:

— Eu já te disse - bradou ele colérico - que esta criança há de morrer.

— Mate-a - respondeu Eulália resolutamente - mas eu o denunciarei se não me matar também.

— Não chegarás a fazê-lo, desgraçada! - bradou o vigário com um tom gutural.

E cerrando o punho ameaçou descarregá-lo sobre o ventre da vítima.

— Mate-o! - gritou a infeliz fazendo com os braços um escudo para o ventre. - Mate-o! mas se não matar-me também, saberei defender meu filho com a mesma arma com que o pai assassinou!

O monstro recuou espavorido, e sem força para vencer o nobre arrojo da desgraçada moça, caiu por sua vez de joelhos e exclamou debulhado em lágrimas:

— Perdoa-me, Eulália! Eu sou antes de tudo, um desgraçado! O teu amor perdeu-me!

Eulália não chegou a ouvir as últimas palavras do vigário. Levantando-se logo que se viu fora da monstruosa ameaça, correu até a casa, como se sentisse após si as pisadas do seu sedutor, e foi ansiando muito, quase asfixiada de cansaço, trêmula pelo temor de ser alcançada, que arrancou o moirão da cerca, por onde havia saído sem que ninguém da casa desse pela sua falta.

— "Meu Deus, como se pode ser tão cruel?! - pensava a infeliz. - "E como eu pude amar esse monstro como o amava?!

Embora uma vez entrada na horta se julgasse defendida, caminhou até o fundo, para debaixo de umas árvores, que amareleciam já a copa ampla e frondosa.

— Ainda que venha, não poderá descobrir-me sem que eu primeiro o veja.

E recostou-se prostrada pela fadiga.

De súbito, porém, sobressaltou-se e levando as mãos ao ventre, levantou os olhos embaciados pelas torturas indizíveis que a afligiam. Uma suspeita ecoou-lhe sobre os lábios.

— Se eu o machuquei... Talvez o pobre inocente já comece a padecer por mim.

Este pensamento de solicitude pelo filho ainda embrionário bastou para superexcitá-la. Olhou em torno de si como se tudo que via lhe afigurasse espectros, prorrompendo em gritos ameaçadores, gestos brutos e hostis.

Entretanto a canícula escaldando com o beijo de fogo a vegetação meio morta, dando ao ar a temperatura da vizinhança de uma forja, sepultava a horta e os arredores na quietação das calmarias no oceano. Só de longe em longe ouvia-se o esvoaçar medroso dos galos-de-campina que vinham esconder-se na sombra, e arrufando com o bico os encontros escarlates das asas, a penugem pedresada do peito, palpitavam sedentas queixas contra o ardor da soalheira.

Eulália, agitada e trêmula, abandonou o refúgio escolhido, atravessou a horta, a sala de jantar isolada, entrou no quarto em que dormia, e, fechando-se por dentro, correu até junto da caixa, onde escondera o canivete-punhal, que era hoje a sua única defesa. Tirou-o do seu esconderijo ignorado e veio colocar-se junto à janela, olhando com a fixidez do avaro. Nas guardas e nas lâminas havia manchas de sangue e de ferrugem, vestindo-lhe a nudez assustadora, e sobre uma plaqueta de metal, de que se ornava o cabo, as iniciais de Paula guardavam ainda na depressão das letras o sangue do crime.

— Ainda está aqui - disse por fim Eulália -, ele não mo poderá roubar.

Dirigiu-se à porta e, pondo a mão na chave, ia dar a volta para abri-la, quando estatelou como fulminada.

— Com sua licença, d. Ana - ressoou poderosamente a voz de Paula.

— Pois não, sr. vigário, entre; nós vamos já - disse a boa senhora.

Eulália sentiu que os passos do vigário ecoavam para o seu lado, e encostou-se a parede, de modo a não ser vista.

— Então, estão dormindo? - disse Paula batendo à porta do quarto. - Acorde, d. Eulália, são horas de acordar.

— "Como é perverso"! - pensou Eulália. - "Ninguém será capaz de desconfiar dele, e entretanto tem coragem para matar o filho".

D.Ana, saindo do seu quarto, caminhou ao encontro de Paula, e intencionalmente vibrou com força a voz comovida:

— Vossa Mercê é sempre a proteção de Deus sobre esta casa; tenho um grande conselho a pedir-lhe.

— Com muito gosto - respondeu Paula -, tudo quanto quiser de mim.

— "Pobre tia"! - pensou Eulália - "Vai contar-lhe a própria vergonha".

O coração de Eulália adivinhou o que se ia passar entre os dois, mas estava longe de poder fazer o mesmo acerca do que diria Paula, inspirado pelo horror de aparecer aos olhos do povoado na plenitude da sua hediondez.

D. Ana, depois de referir os pormenores da moléstia da sobrinha e as suspeitas de Marciano que eram também suas, perguntou ao vigário, que se fingia assombrado:

— O que hei de eu fazer? O senhor é o nosso único arrimo, o nosso único amigo.

— Eu estimo aquela infeliz como um pai - respondeu ele severamente -, não tomemos as coisas no ar, vamos observar. Diga-me a senhora...

E inclinou-se até ficar com os lábios junto ao ouvido de d. Ana, a quem segredou.

— Não lhe posso responder - murmurou a boa senhora abaixando os olhos - mas é fácil de saber-se.

— Pois esperemos até lá. Por ora nem uma palavra, inteiro silêncio.

— Só se fará o que Vossa Mercê mandar, sr. vigário; se eu fosse mãe, já saberia tudo.

— Sela muito prudente. Mas... é admirável que ninguém suspeitasse aqui...

— Se ela não falava senão com o sr. vigário, não saía...

— Há de se deslindar a meada, deixe por minha conta; é preciso que não transpire esta vergonha, e que ninguém suspeite. A senhora aconselhe-a, mostre-se alegre, convide-a quando for à missa. Eu vou falar ao Marciano.

— Farei tudo, sr. vigário - soluçou d. Ana - porque me lembro do meu honrado irmão. Bendita a hora de sua morte para que não tivesse de morrer de vergonha.

— Coisas do mundo, d. Ana! Tudo há de ser arranjado pelo melhor. Até logo - disse erguendo a voz apertando a mão de d. Ana -, bom apetite.

E saiu, calmo e desassombrado, pensando com a sua hipocrisia:

— Ainda não está tudo perdido!