Os Retirantes/II/IV

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A estrada e o ambiente, saturados de sol e calor, formavam uma engrenagem de onde os transeuntes saíam esmagados.

Os sombrios e maltrapilhos caminheiros, cheios da heroicidade do instinto da vida, não desanimavam, porém; seguiam sempre com a resignação e o passo tardo dos bois encangados, submissos à voz do carreiro e ao morder do aguilhão.

A família de Virgulino, que fora uma das primeiras vistas na vendola, estava já distanciada cerca de quatro léguas daquela paragem, e resoluta, sobranceira ao cansaço, seguia sempre, ainda que as crianças, amolentadas pela soalheira, causassem-lhe grande medo pelo estado precário da saúde.

— Eles disseram que passadas oito léguas acharemos pousada - diziam as moças recordando as palavras do Onça e dos outros bandidos; - não há de faltar muitas léguas, andemos.

O incitamento produzia um efeito benéfico e as infelizes continuavam cobrando alento do próprio temor que tinham de que a noite as viesse surpreender no meio da solidão. Todavia o esforço não conseguiu senão adiantá-las mais duas léguas, e à tardinha um quadro tristíssimo veio lançar o espanto entre estas desgraçadas.

A estrada muito fulva, formando um ângulo muito agudo em ambas as extremidades, parecia um elo de cadeia enormemente alongado trancando o passo ao transeunte.

Uma nuvem espessa de urubus pairava, parte na extremidade fronteira, parte pousava no solo e nos arbustos do capoeirão.

— O que será aquilo? - perguntou a velhinha que mal se podia arrastar de cansaço. - Parece um agouro.

— Há de ser algum animal morto; não se lembra que quando viemos de Maria Pereira perdemos o nosso cachorro na viagem?

— Com certeza é isto mesmo - concordaram todos -, o pior é a fedentina.

Ao lado do caminho viam-se já grandes montes de cascas secas de croatá, orquídea venenosa, que entretanto serve de alimentação aos famintos.

— Não reparam - ponderou a mulher de Virgulino - como por aqui a fome já chegou tão forte aos viajantes? Vejam quanto croatá chupado.

— É mais uma porção de gente que vai ter inchação; quanta desgraça por esse mundo de Deus!

A voz da velhinha tomou uma acentuação profundamente e acrescentou:

— Vocês, minhas filhas, terão de ver tudo isso, eu felizmente já tenho os pés na cova e creio que nem chego ao Ceará.

As consolações para dissuadir a velhinha afluíram a todos lábios; não obstante, a impressão não deixou de ser dolorosa, e uma das moças perguntou:

— Chegaremos hoje ao pouso?

— Eu já não tenho pernas - disse a velhinha - e, além disso, aí vem a noite; por meu parecer ficaríamos mesmo à beira da estrada debaixo de qualquer pé de pau.

— Não, não é preciso, não pode faltar muito - advertiu a esposa do Virgulino -, havemos de chegar.

O mau cheiro começou a se fazer sentir incomodativamente, e ao mesmo tempo as crianças, obrigadas a andar para que as mulheres pudessem descansar, choramingavam.

— Que lugar tão triste - exclamaram todos -, faz medo. Cerca de uns duzentos passos as exalações fétidas tresandavam, e, para mais incomodar os transeuntes, os urubus, espantados pela presença desses inesperados hóspedes, levantavam ruidosamente o vôo.

A família apertou o passo para mais depressa furtar-se das pútridas emanações, mas não deixou de olhar para o lado onde os urubus assinalavam o foco.

Uma cruz toscamente feita destacava-se no meio de um claro formado pelo capoeirão, e junto a ela, meio coberto pela folhagem, o cadáver de um homem mostrava parte dos intestinos, sob a véstia entreaberta.

A comoção e o temor, produzidos pelo horrendo quadro, emudeceu o grupo, que se limitou a tomar nos braços as crianças para acelerar ainda mais a marcha já fadigosamente forçada.

— Viu? - perguntavam-se em voz baixa. - É horrendo; vamos ver se chegamos ao pouso....

Dobraram o passo, mas a velhinha, que não podia resistir a tamanho esforço, deu sinais de invencível cansaço e começou a retardar e a distanciar-se.

— Já é noite - observou por fim -, e nós não podemos chegar a nenhum pouso hoje; fiquemos por aqui mesmo.

— Mais um bocado - respondia o grupo; - estamos de certo muito perto, temos andado tanto...

— Paremos; se houvesse algum pouso perto os urubus não estariam comendo um corpo humano.

A objeção da velhinha era irrespondível e as afoitas companheiras tiveram de ceder diante deste golpe decisivo da realidade.

— Não havemos de dormir no meio da estrada; caminhemos até a primeira árvore.

A marcha fadigosa continuou com tanta celeridade quanta era possível obter depois de tão penosa jornada. As árvores, porém, pareciam ter desaparecido todas da face do solo. Só o capoeirão, mordido pelas soalheiras, amarelo, silencioso, quase despido de folhagem, estendia-se para ambos os lados, repassando o coração da mísera família da mesma tristeza da sua solidão e esterilidade.

— Até a primeira árvore - repetiam de quando em quando.

A claridade crepuscular diminuía mais e mais, e a noite descia com a desesperança sobre a estrada e sobre os corações.

O terror, invadindo os espíritos crédulos, povoava os arredores de espectros e rumores sobrenaturais, e a família conchegava-se cada vez mais, como se assim quisesse fortalecer-se contra o desânimo.

— Não posso mais comigo - arquejou a velhinha -, morro; sigam vocês com as crianças, eu as acompanharei de longe.

Pelo silêncio da família julgar-se-ia que ela havia acedido, mas o retardamento do passo demonstrou que naqueles corações não havia ainda guarida para semelhante egoísmo.

A noite, porém, indiferente a tamanho sofrimento, avassalava rapidamente os últimos clarões do dia, e, de mistura com ela, a sombra do mato marginal aumentava o temor das caminheiras. O crepúsculo mortiço, como um olhar de idiota, assemelhava-se, porém, a um abraço longo de pai em hora de despedida, tão pouca era a vontade que tinha de furtar-se da contemplação das míseras mulheres.

— Vejam, vejam, lá; uma árvore, lá está ela, é talvez um cajueiro, vejam.

— Mais um bocadinho de coragem, minha mãe; está ali uma árvore - disse a mulher de Virgulino dirigindo-se à velhinha; - amanhã não caminharemos senão muito tarde.

A velhinha limitou-se a menear afirmativamente a cabeça e as moças, encorajadas pelo abrigo, apressaram a marcha.

De fato uma vetusta maçaranduba abria, não longe, a copa vastíssima que parecia um docel auriverde esquecido no meio da vegetação moribunda. A ramagem pendida, meneando-se morosamente ao sopro da tarde, que se fazia comparar ao resfolegar arquejante da natureza descansando da fadiga canicular, acenava às caminheiras com a bondade insinuante da hospitalidade espontânea.

— Não repara, mamãe? Podemos até pendurar as redes nos galhos.

— Achamos uma boa casa; descansaremos à vontade.

Estas ponderações da súbita coragem, que lhes assomou ao ânimo, aumentaram a alegria geral por uma circunstância que não teria valor em outra qualquer ocasião, mas que no presente era de uma importância máxima. O vagido fraco de uma criança ecoava, derramando no espírito da etenuada família o contentamento expansivo do encontro de companheiros no meio da solidão.

— Não somos os primeiros a chegar - ponderou sorrindo a mulher de Virgulino -, já há donos deste lado da casa.

— Tomemos conta do outro e façamo-nos amigos dos nossos vizinhos.

Foi extasiada nos transportes de tão justa alegria que a mísera gente hospedou-se debaixo da velha árvore, a sentir-se feliz como viajantes fidalgos que pudessem apear-se às portas de um palácio. As próprias crianças pareceram reanimar-se e perderam o ar tristonho, a acentuação profunda de enfado que lhes embaciava o semblante. As moças começaram logo a atar as longas cordas das suas redes nos braços da corpulenta maçaranduba, que sussurrava como a voz dos vassalos de um hospedeiro, que conversassem acerca dos hóspedes recém-chegados.

Só depois de algum tempo, a atenção da esposa do bandido, que era a mais forte das companheiras e que se estava ocupando de aprontar a refeição, voltou-se para o choro da criança. Tinha necessidade de lume e lembrou-se de remover a dificuldade de obtê-lo indo pedi-lo aos próximos vizinhos.

— Quem vem comigo até aquela casa? - perguntou a sorrir; - precisamos de fogo e não temos.

— Prontas, nós ambas, e para fazer calar a criança levaremos bolachas para dar-lhe.

As três caminharam na direção do choro da criança e só pararam na distância de uns 20 passos, reparando que era uma outra criança quem acalentava a chorosa.

— Como chegou aqui esta pobre gente! - ponderou Maria, a esposa do bandido. - Dormem a gosto, enquanto o filho esgoela-se de modo que já está rouco.

— Estão com um sono de ferro, ou cansados a mais não ser - respondeu uma das irmãs; - vejam que fome não traziam esses desgraçados.

— O pior é que eu não vejo fogo e parece que perdemos o tempo vindo cá.

— Eu falava sempre - observou a irmã; - acordava-os por amor da criança.

Deram mais alguns passos e foram parar junto do grupo formado por uma mulher ainda moça e pelas duas crianças. A mulher, deitada de lado, muita espichada, com os braços estendidos de modo a formar um ângulo obtuso com o resto do corpo, tinha os dedos enterrados no chão arenoso e deixava a descoberto, sobre os frangalhos de uma camisa enegrecida, os seios muxibentos. Sentada muito conchegada a ela, a mais velha das crianças, que devia ter cerca de cinco anos, muito magra e coberta apenas pelos farrapos de uma camisola, tentava ajeitar a que chorava, que não teria mais de seis meses, aos seios maternos.

— Que sono - observou ainda uma vez Maria; e, levantando a voz, timbrou vigorosamente um pedido de licença.

— Ela não quer ouvir - respondeu a criança; - eu estou chamando-a desde de tarde para dar a maminha ao maninho e ela não se importa.

— É que está doente, filhinha; espere que eu a acordo já.

Maria inclinou-se por sobre a desconhecida e pôs-se a sacudi-la pelos quadris, chamando-a com acentuação cada vez mais forte. O trabalho foi inútil, a mulher não se moveu, imobilidade que surpreendeu desde logo as recém-chegadas.

— Eu não disse que ela não se importa? - ponderou a criança. - O maninho já está rouco e mamãe não quer ouvir, pensando que é manha dele.

Maria tomou nos braços a criancinha e pôs-se a aleitá-la, ao passo que as suas irmãs davam à outra as bolachas, que Pêra este fim haviam trazido, segredando-se:

— Está bem mal esta infeliz mulher e talvez seja fome.

— Você já está aqui há muito tempo, filhinha? - perguntou Maria à menina que devorava as bolachas com a sofreguidão própria dos famintos.

— Desde ontem, depois que deixamos lá atrás morto o papai.

— Então o seu papai morreu? E onde morreu ele?

— No meio do campo, aí mesmo na estrada e lá ficou.

A lembrança do cadáver, que servia de pasto aos corvos, avivou-se, toda esbatida no horror do quadro visto pelas moças, que limitaram-se a trocar olhares compadecidos.

— Mamãe - continuou a criancinha - esteve junto de papai dois dias, mas ontem de tarde nos trouxe para aqui. Hoje de manhãzinha deu-me o resto de croatá, e, depois de dar de mamar ao maninho, andou a comer folhas e a chupar umas raízes. Depois ela me disse que estava ficando tonta e que havia de ser sono, queria dormir e me deitou junto de si. Quando eu acordei, porque o maninho chorava, ela já estava assim.

Uma das moças abaixou-se e tentou afastar os braços da mulher, mas a frialdade, que sentiu ao seu contato, fê-la levantar-se de um salto, como se a tivesse impelido uma força oculta.

— Não está dormindo, não, Maria, ela está morta - gritou toda trêmula.

A mulher do bandido não se mostrou perturbada como suas irmãs, que logo se afastaram; tomou pela mão a orfãzinha, que rompera em soluços ouvindo o grito fatal, e voltou a reunir-se à sua família.

O egoísmo do instinto de conservação, brutal, feroz, mas sem imputabilidade, recebeu-a aí com o mais pronunciado desagrado.

— Nós já somos tantos, Maria - resmungou a velhinha -, e você bem vê que é impossível tratar agora de filhos alheios.

— Eu tenho dois peitos - respondeu a boa mulher - e o meu leite chegará para ambos. Quanto a estazinha ela não come tanto que eu não lhe possa dar um bocado do que tocar aos meus filhos.

— É verdade - disse uma das irmãs -, mas você não poderia carregar as três, e nós já não podemos com as nossas, quanto mais com as cargas alheias.

— Bem, eu ficarei - respondeu resolutamente a esposa do bandido; - há de passar alguém que se condoa desses infelizes.

A resposta de Maria impôs silêncio pela sua nobreza, e nenhuma das parentas da heróica mulher ousou objetar-lhe, mas também, como se desde aquele momento a houvessem segregado da família, nenhuma dirigiu-lhe a palavra durante a refeição e nem tampouco ao deitarem-se, irritadas por verem desde então começados o sacrifício grandioso. Maria, depois de aleitar a filha e a pupila, deitou-as com a outra menina na sua rede, e, muito satisfeita, deitou-se embaixo sobre andrajos que estendeu no solo.

O luar momo e indiferente, como se representasse a absoluta impassibilidade da natureza, inundava o capoeirão e, coando-se por entre a ramagem da maçaranduba, revestia de um crivo de luz e sombra o corpo de Maria e o cadáver da mãe desventurada. Pairava um escárnio pungente nesse brilho igualitário, que não distinguia entre a morte e a heroicidade, entre a imobilidade do cadáver e ataxia do mártir.

Na tristeza ingênua ao local sentia-se alguma coisa que tinha a atitude de um terra-nova negro, acocorado na sombra, lambendo o focinho com a larga língua vermelha num acesso de gula, a rosnar muito atento para alguém que comesse. Era o instinto de conservação da família, que, malgrado o ressonar de todos, velava solícito espreitando os órfãos que dormiam na satisfação do quilo de uma longa fome agora extinta.

Horas depois da quietação geral, quando as fadigas das jornadas deliam-se já num sono profundo, a velhinha, a que mais cansada se mostrara, revolveu-se na rede e sentando-se, fitou demoradamente o lado em que repousava a esposa do bandido. Mas a superstição, a ouriçada habitante da treva e a solidão, ergueu-se-lhe talvez diante, e a velhinha voltando-se bruscamente para a banda em que jazia o cadáver, mergulhou-se rápida e perturbada no leito.

Não obstante, minutos depois, reagindo contra si mesma, levantou-se e, descendo cautelosamente, foi, esgroviada e trôpega, com um lençol imundo ao pescoço, parar junto da boa mulher, a quem chamou repetidas vezes para certificar-se de que estava completamente adormecida. Maria não respondeu e nem ao menos rompeu por instantes a uniformidade do resfolegar.

"Bem, dorme profundamente - pensou a velha e caminhou para a rede em que dormiam as crianças.

Abriu-a, fitou os três rostos serenos, mas hesitou e ficou a tiritar de modo a ter necessidade de agachar-se para não dar em terra. Reanimou-se, porém, com um assomo subitâneo de coragem, e, erguendo-se, tirou jeitosamente uma das crianças e caminhou até o meio da estrada, onde o luar resplendia em toda a inteireza do seu brilho.

O olhar hostil, minucioso como um microscópio, cravou-se então no semblante da criança que, não sentindo-se magoada, prestava-se ao necessário exame. Depois desta precaução, a velha sentou-se cavando um colo em que deitou a criança, pôs-se a dobrar muitas vezes o lençol até que converteu-o num espesso quadrado, pouco maior do que o rosto do menino.

A lua, alumiando com a sua claridade elétrica este grupo, deixava ver-lhe as feições, ambas maceradas, uma, porém, calma como a inocência, a outra perturbada como o crime.

O lençol foi então aplicado e ajeitado delicadamente sobre o rosto da criança, mas para logo a velha, segurando-o com uma das mãos pelas extremidades, apertou-o vigorosamente e, com mão posta sobre a boca, de encontro às narinas da vitima indefesa, sufocou-lhe os fracos vagidos.

Quando os movimentos desordenados da asfixia cessaram, a velha, deitando sobre a estrada o lençol, sacudiu por vezes a vitima e depois, segurando-a pela cinta, ergueu-a até a altura dos olhos. A cabeça, os braços e as pernas da infeliz criança penderam no relaxamento da morte.

Um longo suspiro foi assoprado pela velha assassina que, levantando-se, dirigiu-se de novo à rede, mas agora com tanta presteza que parecia haver remoçado com a alucinação do crime.

O cadáver foi posto ao lado da filha de Maria, e a outra órfã veio tomar no colo da velha o lugar deixado pelo irmão.

A estrada foi de novo teatro de uma cena igual à que acabava de desdobrar com o máximo requinte da perversidade, e outro cadáver veio colocar-se ao lado da inocentinha, que era a causa inconsciente do duplo assassinato.

Desembaraçando-se da miseranda carga, a velha perdeu de chofre a força que a animava, e não pode ganhar a rede senão arrastando-se. Aí, porém, esperava-a o remorso, hirto, inexorável, fatal, e ela sem poder deitar-se, sem poder desfazer em lágrimas o peso grande que lhe esmagava o coração, conservou-se sentada durante toda a noite, a encarar, com a atenção de um tigre esfaimado, o sarcófago das vítimas, onde, entretanto, o ambiente continuava a pôr nos pulmões da filha de Maria ruídos de vida.

A madrugada, na sua suntuosidade de luz eletrizada pelos calores estivais, veio encontrá-la na mesma atitude, que traía já a insônia do idiotismo.

— O que tem vosmecê, minha mãe? - perguntou a moça que na véspera se mostrara mais infensa à ação bondosa de Maria.

— Nada - respondeu a velha -, estou ouvindo se respiram, por aquelas bocas, que devem acabar o sustento dos meus netos.

— Deus há de nos dar meios de poder arranjar tudo melhor; descanse, vosmecê precisa de dormir.

— A noite foi muito comprida...

— Muito, mas a caminhada foi igual; veja se dorme, é preciso, minha mãe.

A velha não respondeu, mas estremecendo como se tivesse acordado de um espasmo nervoso e se encontrasse em lugar desconhecido, pôs-se a reparar em torno de si.

— Veja como passou mal a noite; não tenha mais susto; estamos todos vivos. Vamos, descanse.

E a moça, aproximando-se dela, constrangeu-a carinhosamente a deitar-se. De junto da rede olhava com acentuada contração de má vontade para a irmã, a quem foi acordar logo que a velha aquietou-se.

— Maria - disse ela - você vai matar nossa mãe.

— Eu?! - exclamou Maria, erguendo-se estremunhada.

— Que lhe fiz eu?

— Meteu-lhe medo tomando essas duas crianças. Nós já fizemos o que podíamos; demos-lhes do que tínhamos. Podemos ainda repartir com elas o que temos para as nossas crianças. E depois?... Eles que sigam a sua sorte. Não somos os únicos que passamos por estas estradas; outros que possam carregá-los hão de socorrê-los.

— Não - respondeu resolutamente -, não os deixarei; sigam vocês adiante; levem vocês os outros seus sobrinhos, porque o pequeno fica bem acomodado na minha cintura. O outro, que já não tem mãe, e que morreria se eu o deixasse, irá nos meus braços; a pequena caminhará. Eu chegarei também, louvado seja Deus.

— Não fale em Deus, mãe sem coração; Ele a castigará pela morte de meu infeliz sobrinho. Antes a morte levasse aqueles dois demoninhos, como levou-lhes a mãe! Mas eu tenho fé em que eles não durarão muito, e então você não terá nem filho nem protegidos. Deus há de ouvir-me, pelo sofrimento de nossa pobre mãe.

O coração materno de Maria estremeceu de pânico supersticioso, ouvindo a ameaça, a praga horrorosa da irmã; mas a boa mulher, vencendo o egoísmo que sentiu despertar-se-lhe inclemente e cego, respondeu resolutamente:

— Seja, mas ao menos não se dirá que eu, sendo mãe, neguei um pouco do meu leite e da comida de meus filhos a crianças que sem isto morreriam de fome.

Caminhou para a rede e, pondo-lhe a mão sobre os punhos, acrescentou:

— Eles morrerão comigo, e a morte não deve doer muito quando a gente morre por motivo tão santo.

E com a delicadeza peculiar às mães extremosas, Maria abriu a rede e, tomando nos braços envolto em andrajos o cadáver do pupilo, veio, sorrindo, apresentá-lo à irmã.

— Veja se era possível deixar esse coitado ao desamparo; já parece um defuntinho - disse, e, suspendendo-o para aproximá-lo aos seus lábios, ajuntou: - mas o meu leite ainda está forte e ele ficará tão forte como o meu próprio filho.

O beijo hospitaleiro, com que Maria queria afagar o mísero órfão, fê-la, porém, extinguir o sorriso que tinha nos lábios e reparar para o rosto da criança. Não proferiu uma única palavra, apesar da certeza dolorosa de que tinha nas mãos um cadáver, e, com grande satisfação da irmã amuada, cujo semblante alegrou-se notando-lhe a perturbação, correu até a rede e por um dos braços tentou levantar a menina. O corpo inanimado da infeliz, erguido violentamente, caiu inerte logo que Maria o abandonou, e a boa mulher bradou com uma entoação indescritivelmente sentida:

— Ai! As pragas destas bruxas mataram as coitadinhas; ambas, ambas estão mortas!

A espectadora desta cena, bufando um escárnio, resmungou:

— É capaz de ficar doida esta desgraçada; não se incomodaria se visse o filho morto, contanto que se salvassem os dois feiosos.

Maria, porém, com igual precipitação largou no solo o cadáver do pequenito e tomou nos braços o filho, beijando-o sofregamente e sacudindo-o, como se na sua imaginação já se lhe afigurasse vê-lo morto. A criança abriu os olhos sonolentos, começou a chorar, mas, reconhecendo-a e sentindo nos lábios o contato acariciador do seio materno, calou-se.

— Ria, ria, malvada - gritou ela para a irmã; - este vocês não matarão com as suas pragas sem que eu as mate também.

As outras irmãs e pessoas da família acordaram precipitadamente e a velhinha perguntou a tartamudear:

— Vivem ainda estes dois demoninhos, não é?

— Morreram - gritou a filha -, mataram-nos.

Fizeram bem - respondeu tranqüilamente a velha; eles matariam os meus netos.

Maria, aleitado o filho, conduziu chorando os cadáveres dos dois pequenos até junto do da pobre mãe e veio pedir à: irmãs que a coadjuvassem para prestar um último serviço aos desventurados.

Engenharam uma cruz com uns galhos secos da árvore e depois foram buscar, no interior do capoeirão, braçadas de espinhos com que cobriram os restos da esposa e dos filhos para que não tivessem a mesma sorte do corpo do esposo. Ao menos os urubus gulosos de podridão não profanariam aqueles despojos humanos.

O sol nascente veio servir de brandão a esta solenidade tristíssima, e subindo cada vez mais, ainda rubro como um ferro em brasa, projetou um raio sobre o algodão encardido em que reatara o sono o filho da boa Maria, como se nele coroasse a virtude materna.

A família começou então a preparar-se para a partida, entrouxando as roupas andrajosas nas redes sórdidas, e guardando cautelosamente as migalhas que restaram da refeição matinal.

— Graças a Deus - murmuraram as moças -, vamos ao menos como chegamos.

— Vocês têm o coração de pedra - soluçou a esposa de Virgulino; - estamos comendo a esmola que nos deram e vocês ficam contentes por não terem que reparti-la com os que tinham igual necessidade. Daqui ao Ceará é longe e Deus permita que não tenhamos de saber outra vez o que é a fome.

— Rogue bem pragas, você as sofrerá também.

Deram finalmente os primeiros passos da grande jornada, que as devia conduzir ao povoado, que lhes fora indicado na vendola e onde deviam encontrar alguns recursos.

A velhinha, que vinha por último no grupo, vendo os netos caminharem a rir, parou, como que para fazer também demorar dentro em si a agradável impressão que lhe causava o quadro e resmungou:

— Fossem dez, fossem vinte, fossem mil, eu os mataria todos!

Um estremeção violento abalou-lhe o corpo e ela seguiu apressada até incorporar-se ao grupo.

Quem passasse ao pé dos três cadáveres veria sob os espinhos a mãe com os dedos cravados no solo, muito esticada como se quisesse arrastar-se para ir empolgar a assassina.