Os Retirantes/II/IX

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A vila de Quixadá sussurrava cheia de espanto e de horror, na hora em que Mundica entrou por ela ao encalço de Eulália.

O povo aglomerava-se em frente à casa da autoridade e comentava calorosamente um fato que parecia estar fora da natureza humana. De quando em quando, toda a multidão agitava-se, investia contra a casa e proferia uníssona uma sentença medonha:

— Morra a assassina!

A prudência e a energia das pessoas, que guardavam a porta, continham a explosão indignada, e a onda popular, que continuava a engrossar, recuava tumultuariamente,

— Deixem estar que há de se fazer justiça, descansem, tenham paciência.

— Qual justiça, nem meia justiça - bradavam os exaltados; - isto é pegar dela e estrafegá-la.

— A autoridade há de cumprir com a sua obrigação; a justiça não será menos severa por ser demorada.

— Vejam a cara daquele demônio; está mesmo com um ar de fera!

— Que entranhas!

— Que monstro!

— Morra a assassina!

E, como todos quisessem colocar-se junto das janelas da casa do subdelegado, surgiam da grande massa protestos e palavras ásperas e desavergonhadas.

Sentado em frente a uma mesa, tendo ao lado um homem já idoso que estava a escrever, o subdelegado, um quarentão reforçado, de modos brandos, mostrava-se impaciente e acenava freqüentemente, recomendando aos homens da porta inteira prudência.

— Pode-se começar o interrogatório - disse o homem que escrevia.

— Olhem para ali; que horror! - gritaram os circunstantes que estavam à janela. - Pobre criança!

— Ela chegou sempre a comê-la?

— Se comeu! Foi ontem que ela praticou o crime e só hoje é que se deu por ele, por um acaso.

Queria fazer como as jibóias, hein? Enquanto tivesse o que comer, não deixaria o lugar.

— E era capaz de fazer o mesmo com o outro filho.

— Ah! eram dois?

— Eram sim; o outro, que ainda é de peito, está lá dentro. Eu o vi, já anda um bocadinho.

A autoridade impôs silêncio aos comentadores, mandando repetir que se ia proceder ao interrogatório da ré e das testemunhas.

As perguntas da lei foram formuladas então pausadamente, e a ré respondeu-as a soluçar.

Chamava-se Maria, e era casada com um Virgulino da Silva, de Inhamuns. Não sabia dizer onde parava o seu marido; acompanhara-a de Inhamuns ao B. V. com destino ao Aracati, mas em caminho, morrendo-lhe o pai, decidiu demorar-se naquela paróquia, de onde desapareceu.

— E não sabe que destino tomou?

— Não; ele saiu com muitos outros, entre os quais um feiticeiro que brincava com cascavéis. Não sei se é vivo ou morto.

— Sabe de que é acusada?

A mísera ré meneou afirmativamente a cabeça, que escondeu entre as mãos, a soluçar compungentemente.

— Que demônio! - ponderavam os circunstantes. – Quer nos enternecer com as lágrimas. Causa asco.

— Responda - exclamou o magistrado -, é preciso que você responda com a sua própria boca.

— Sei, sim senhor - suspirou a desventurada.

As suas palavras, proferidas com grande esforço, pareciam trazer consigo parte do coração. Os próprios exaltados sentiram-se comovidos, e olhando para a mulher, vendo-lhe as faces escaveiradas, os olhos encravados profundamente nas órbitas, vermelhos das lágrimas, os vestidos sórdidos e muito rotos, os próprios exaltados murmuraram:

— O que é verdade é que, para uma mãe fazer o que preciso estar doida.

Outros, porém, acudiram logo:

— É mesmo por maus bofes; doido não diz coisa com coisa, e ela responde que nem uma letrada.

— Diga então qual o crime de que é acusada - ordenou a autoridade dirigindo-se à ré.

— Vossa Mercê bem sabe qual foi; eu não posso repetir...

— É o remorso, malvada! - gritaram os circunstantes.

— É preciso dizer insistiu a autoridade -, eu só posso tomar o que você responder.

— Matei meu filho! - resmungou desventurada.

— E que idade tinha ele?

— Quase cinco anos.

— Foi levada por alguma raiva?

— Não.

— Alguém a obrigou a praticar semelhante ato?

— Não, foi a minha desgraça.

— Mas qual foi esta desgraça? — A fome.

— Não tente iludir a justiça em nenhuma das circunstâncias do crime, porque a sua punição será ainda maior.

— Para mim é um benefício morrer, com tanto que amparem aquele infeliz que lá está dentro.

— Diga como foi levada a praticar esse crime.

Maria pôs-se a expor circunstanciadamente as peripécias da retirada até o encontro com as crianças que choravam junto ao cadáver materno, crianças que ela tentou trazer consigo, porém que morreram ambas na mesma noite.

A autoridade deteve-a neste ponto que pareceu uma circunstância agravante.

— As crianças, que tentou socorrer, morreram então na mesma noite.

— É verdade. Eu as havia deitado na mesma rede com os meus filhos e de manhã encontrei-as mortas.

— Mas acredita que se possa dar naturalmente este fato? Não teria você feito com elas o mesmo que fez com o seu próprio filho?

— Não, meu senhor; eu não as matei. Morreram e eu chorei por elas. Foram essas crianças a causa da minha desgraça.

— E de que morreram as crianças?

— Não posso dizer; eu as havia alimentado.

— Pois se você teve entre o último povoado e esta vila o que comer e o que dar a outrem, como precisou de matar o seu filho por ter fome?

— Eu vou contar a Vossa Mercê o que se passou.

A desgraçada calou-se por algum tempo, e depois da pausa referiu a história desta parte da retirada.

Era natural e simples. No mesmo dia em que deixaram a árvore, e sob ela os cadáveres da mãe e das duas crianças, Maria viu-se abandonada pelos seus que, para agravarem-lhe a temerosa situação, deixaram-lhe ficar não só a criança que ainda vivia, mas também a outra que fora vítima. A marcha, que já era penosíssima com o peso de uma só criança, tornou-se quase impossível, e em breve a fome e o cansaço vieram impossibilitá-la de todo.

Não conhecia a estrada, e, para qualquer lado que se voltasse, via sempre a mesma perspectiva hostil da natureza: a esterilidade abraçada com a solidão.

Por onde e para onde caminhar? Quantas léguas faltariam ainda para que chegasse à vila? Não sabia; a única certeza que tinha era a de trilhar uma estrada, de cujas margens a assolação pregava o desânimo.

A fome e o cansaço acobardaram-na; porque, prosseguir na jornada, quando não se podia abrigar da soalheira e nada tinha para comer, era expor a vida dos filhos. Já não tinha forças para carregar ambos nos braços e nem era possível obter do pequeno mais uma caminhada. Resolveu, pois, esperar que a misericórdia do céu guiasse para o lugar, onde parara, algum caminheiro e que a piedade deste lhe viesse em socorro.

O dia, porém, passou desfazendo-lhe todas as esperanças; nem um só passageiro pisou o chão da estrada e no entanto a morte caminhava para ela e para os filhos com os passos cruéis da fome, que se fazem sentir no corpo humano como a dor de uma queimadura continuada.

Quis aleitar o filho menor e os seios não lhe deram nem uma gota de leite; insistiu com o maior para que comesse as raízes que tinham sido a sua alimentação durante dias, não quis também aceitar.

— E então - perguntou a autoridade comovida - que resolução tomou?

— Durante toda a noite - prosseguiu a ré na sua narração, sem prestar ouvidos à pergunta - o choro das crianças atordoou-me. Quando extremamente fatigadas as pobrezinhas calaram-se, o eco ficara a azoinar-me e a fazer-me delirar. Vossa Mercê não sabe o que é para um coração de mãe ouvir chorar os filhos com fome - exclamou a desventurada.

— Bem - interrompeu-a o juiz - não é disto que se trata; a justiça quer saber como você teve coragem para matar o seu próprio filho.

— Ora como! - comentaram os circunstantes. - Como qualquer mataria a outra qualquer criança, como provavelmente ela matou as duas que encontrou sem mãe nem pai.

— E as comeu também com certeza; veja se aquilo é corpo de quem tem passado tanta fome como ela está dizendo.

— Comeu os pequenos e quando acabou a carniça passou ao próprio filho.

— Tomou gosto e pôs-se na ceva. Dizem que a carne do homem tem um bom paladar.

— Credo! Nem é bom falar nisso.

— Silêncio! - bradou o juiz. - É preciso que a justiça ouça a delinqüente.

A mulher do bandido, como se estivesse completamente alheia ao que se passava, reatou ainda uma vez a sua narração.

Ao amanhecer reparou para o semblante dos filhos. Os traços dos esfaimados estavam neles profundamente gravados. Vieram-lhe então à lembrança a mãe e os dois filhos que havia encontrado em caminho. Ia ter a mesma sorte deles e, não obstante, não a merecia. Os três surgiam como espectros na sua imaginação; via a mulher com os braços hirtos, os dedos cravados no solo e parecia-lhe que o cadáver adquiria uma mobilidade sobrenatural, que lhe dava ao corpo os meneios de serpente, ao mesmo tempo que lhe marcava o rosto com a ira das onças enfurecidas...

— É o remorso que a persegue... - resmungou o juiz. .... Desvairada pelo horror de semelhante quadro, começou a pensar tumultuariamente sobre o destino que lhe restava. Partir ou ficar era irremediavelmente morrer; porém deveriam morrer todos? Tinham os seus dois filhos o direito de exigir-lhe a vida, quando ela ia deixar ainda outros na orfandade?

A consciência respondeu-lhe que não, e a desgraçada preparou-se para abandonar os dois infelizes. Melhor fora havê-lo feito logo, mas o coração prendeu-a, não teve força para arrancar dos seus braços o pequenino; a própria desgraça soldava-o de encontro ao seu seio.

Uma recordação fatal veio-lhe então à memória. Lembrou-se de que para as bandas do Crato uma mulher havia comido o filho. A princípio esta recordação horrorizou-a, mas a pouco e pouco foi avassalando-a, porque tinha por si a fome. A lógica adamantina do crime sugeriu-lhe argumentos poderosos: se ficasse, todos morreriam, se abandonasse os filhos, eles morreriam. Era trocar morte por morte, mas com uma diferença, a de que podia salvar a si e a um dos filhos.

Empolgada por este horroroso pensamento lutou durante horas para fugir-lhe ao guante. Suplicou de joelhos ao céu que fizesse aproximar alguém, porque sozinha já não podia defender-se das sugestões fatais do crime. Em vão foram proferidas as suas súplicas: só um caminheiro aproximou-se, mas este, longe de trazer uma palavra de consolo, um afago de piedade, mudo, indiferente, apenas serviu para agravar-lhe o estado mental. Era o sol que, dardejando uma irradiação ardente, parecia dar-lhe razão ao pensamento mau.

Olhou então para os dois, que, prostrados, já sem forças para chorar, arquejavam um sono agitado que parecia um acesso febril mortal. Uma voz imperiosa que parecia vir da própria natureza, disse-lhe então: salva-te matando, porque a morte é a única solução que te resta.

A razão mergulhou-se-lhe em trevas; não refletiu mais, não sentiu nem a mais leve pressão do sentimento de maternidade. Estava convencida de que era forçoso que um dos seus filhos morresse, mas não quis escolher por si mesma, entregou à sorte a sentença. Dois pedacinhos de pau, o maior simbolizando o mais velho, o menor o caçula, serviram de forma ao veredicto. Fechou os olhos, sacudiu-os nas mãos covas sobrepostas e depois depondo-os no chão tateou até tocar em um deles. Era o maior...

A multidão silenciara ouvindo a descrição da cena pavorosa e estremecia comovida até as lágrimas.

... No seu olhar estampou-se o batalhar de sentimentos opostos que a desvairava e a criança, que se havia assentado acordando sobressaltada, teve tanto medo que se foi abraçar com o irmãozinho. Ela fitou-o com a gula do tigre e, gatinhando como ele, com movimentos largos, mas sem ruído, foi parar a pequena distância. Tornou-o a fitar e como se uma jibóia esfaimada se intumescesse dentro em si, empregando toda a sua elasticidade para dar força e precisão ao bote, encolheu-se e de um salto agarrou pelos cabelos a mísera vitima, levantou-a até a altura dos lábios, cobriu-a pela última vez de beijos, como a jibóia cobre a presa de baba, e perdeu de todo a cabeça. Quando voltou aos sentidos regularmente, estava entre as mãos das pessoas que a amarravam e a conduziram à vila.

Pairava em todos os semblantes uma impressão dolorosíssima. A própria autoridade, que se esforçava por manter urna severidade convencional, mal podia conter as lágrimas, que lhe eram arrancadas pela vibração pungente das palavras da narradora.

Só depois de uma longa pausa, durante a qual a mulher do bandido soluçava comoventemente, voltou-se às formalidades legais. Começou o depoimento das testemunhas.

Eram duas. Passando pela estrada, viram levantar-se de um casebre um pouco retirado uma réstia de fumo. Aproximaram-se para pedir que os deixassem ai preparar o almoço. Veio recebê-los a acusada, cuja fisionomia profundamente aterrada os intimidou.

— É uma doida - pensaram pois que não dava resposta a nenhuma pergunta, e com um olhar extremamente brilhante, esgarado, observava e examinava tudo em torno.

— Bem - disseram -, deixe-nos apenas tirar fogo; nós seguimos viagem.

Quiseram entrar para o interior, mas a acusada pôs-se-lhes diante, impedindo-lhes o passo. Admirados de ver uma cearense negar até uma brasa de fogo aos seus semelhantes, mais se lhes aprofundou a convicção de que tinham diante de si uma pobre louca.

Retiraram-se, mas de pequena distância voltaram para observar a mulher singular. Souberam então a causa que motivava a proibição formal à entrada no interior da casa.

Ardia vivo, no meio do compartimento da casa, o qual devia ter sido a cozinha, um grande brasido sobre o qual chiava um pedaço de carne. De costas para ele, acocorada defronte do cadáver nu de um menino, a mulher, munida de uma pequena faca, descarnava-lhe uma das coxas, cortando com a frieza de um carniceiro as carnes de um boi.

O espanto, a confusão chumbaram os pés das testemunhas ao solo e quedos no lugar de onde observavam, sem voz ao menos para impedir que a operação prosseguisse, puderam ver por longo espaço a vítima, já com o rosto escaveirado porque lhe haviam sido cortadas as bochechas e os lábios, entregue à alucinação ou a perversidade da assassina.

— E como conseguiram prendê-la?

Ao lado sobre uns trapos dormia uma criança, um quase esqueleto que por acaso acordou a chorar. A mulher, correndo precipitadamente para ela, tomou-a nos braços, e, manchando-a com o sangue da vitima, deitou-a no colo, e pôs-lhe nos lábios o seio, cobrindo-a carinhosamente de beijos.

Passou-lhes então pelo pensamento uma idéia medonha. Quem poderia afirmar que essa temível facínora não tinha em vista repetir na mísera criança o crime que já havia perpetrado contra a outra?

O exagero do horror que lhes causou esta previsão transformou-lhes a primeira impressão num acesso violento de coragem, e de um salto, estando sobre a assassina, seguraram-na de modo a tolher-lhe inteiramente os movimentos.

Aterrorada pela prisão, ela não confessou logo que havia assassinado o menino. Disse que ele morrera de fome e que só porque ela também tinha fome e via o seu filho menor prestes a morrer, serviu-se das carnes do morto para comer.

Esta explicação, porém, não foi aceita e elas, testemunhas, reso1vendo deslindar o caso diante da autoridade, amarraram a mulher e transportaram o cadáver do pequeno.

Ouvido o depoimento, a autoridade perguntou à acusada:

— Qual dos dois depoimentos é o verdadeiro: o que nos fizeram as testemunhas ou o que fez aqui?

A desgraçada mãe não respondeu; continuou a soluçar como se não tivesse ouvido.

Longe, porém, de irritar-se com o silêncio da infeliz, a autoridade, lendo na sua atitude humilhada a grande, a indizíve1 dor que a acabrunhava, limitou-se a dizer:

— O cadáver mostrará se houve ou se não houve assassinato; tragam-no para aqui.

A curiosidade popular, que era tamanha como o espanto que lhes causava o caso insólito, amotinou-se ouvindo as palavras da autoridade e, apesar da resistência dos guardas da porta, a onda de povo encheu completamente a sala.

Só com imensa dificuldade dois homens puderam passar do interior da casa para o meio da sala, com uma rede ensangüentada, que depuseram no chão.

— Cerquem esta mulher e ninguém lhe ponha a mão. A justiça há de fazer o seu dever - bradou o subdelegado que veio, acocorando-se em frente da rede, abri-la diante da curiosidade geral.

Ao ver ó corpo da criança barbaramente mutilado, cortadas as bochechas de modo que ficaram a descoberto os parietais, os maxilares, os dentes encravados numas gengivas já roxeadas, uma das coxas quase toda descarnada, a multidão teve um assomo de indignação contra a autora do crime, e tão violento que só o respeito de que gozava a autoridade evitou que ele fosse fatal.

— Morra a fera!

— Façamo-lhe o mesmo que ela fez à criança!

— Deite-se ao fogo esta mãe desnaturada!

— Morra a perversa!

A autoridade, que oscilava à mercê das impressões, mudou também de semblante, e a expressão de piedade tornou-se-lhe em clara demonstração de má vontade à ré.

Depois de examinar o pescoço e o crânio do assassinado, vendo no primeiro os sinais do estrangulamento e no segundo sobre o temporal uma grande mancha roxa, o subdelegado resmungou:

— Não há dúvida, sufocou-o perversamente.

E dirigindo-se à acusada:

— Disse-me que havia agarrado pelos cabelos do seu filho, não é verdade?

A desgraçada meneou a cabeça afirmativamente.

— Depois, conforme se vê pelos sinais, apertou-lhe a garganta com as mãos, não é verdade?

O mesmo gesto foi reproduzido pela mísera mulher.

— Há também um sinal roxo sobre uma das fontes. Você, para apressar a morte do pequeno, bateu-lhe com a cabeça em algum lugar, não é exato? Talvez em um portal?

O gesto horripilante foi ainda uma vez repetido e o povo acompanhou-o com um estrepitoso - morra!

Desta vez a autoridade não teve mais força para conter o movimento de indignação geral e a massa precipitou-se de encontro à assassina. Nenhum dos braços ultrizes, porém, chegou a tocar no seu corpo, porque uma mulher, tendo nos braços o esquelético filho da esposa do bandido Virgulino; ajoelhando-se-lhe em frente, suplicou, debulhada em lágrimas e levantando a criancinha como única arma:

— Não matem esta desgraçada, porque matam com ela uma inocente!