Saltar para o conteúdo

Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro IV/II

Wikisource, a biblioteca livre

II.


GILLIATT VAI ENTRANDO PASSO A PASSO NO DESCONHECIDO.


Gilliatt ia todos os dias ver a casa de Lethierry. Não o fazia de proposito, mas encaminhava-se para esse lado. Acontecia então passar sempre pelo caminho que costeava o muro do jardim de Deruchette.

Estando um dia naquetle caminho, ouvio a uma nulher do mercado, que fallava a outra, e vinha da casa de Lethierry: Miss Lethierry gosta muito de sea kales.

Gilliatt fez no jardim da casa mal assombrada uma fossa de sea kales. O Sea kale é uma couve que tem o sabor do espargo.

O muro do jardim da casa de Deruchette era baixinho; podia-se pular facilmente. Esta idéa pareceu terrivel a Gilliatt. Mas quem passava não podia deixar de ouvir as vozes das pessoas que fallavam nos quartos ou no jardim. Gilliatt não escutava, mas ouvia. De uma vez ouvio disputar as duas criadas, Graça e Doce. Como o rumor vinha daquella casa, soou-lhe como se fosse musica.

De outra vez, distinguiu uma voz que não era como as outras, e que lhe pareceu ser a voz de Deruchette. Deitou a correr.

As palavras que ouvio á moça ficaram para sempre gravadas no seu pensamento. Repetia-as a cada instante. Essas palavras eram: Faz favor de me dar a vassoura?

Gilliatt foi ousando a pouco e pouco. Já se atrevia a ficar parado. Aconteceu uma vez que Deruchette, que não podia ser vista de fora, embora estivesse a janella aberta, estava ao piano e cantava. Cantava a canção Bonny Dundee. Gilliattt empallideceu, mas levou a firmeza até ouvir a canção toda.

Chegou a primavera. Gilliatt teve uma visão: abrio-se o céo. Gilliatt vio Deruchette regando uns pés de alface.

Dahi a pouco já elle fazia mais do que parar. Observava os habitos da moça, notava as horas em que ella aparecia, e esperava.

Tinha cuidado de não ser visto por ella.

A pouco e pouco, ao tempo em que as moutas se enchem de borboletas e de rosas, immovel e mudo horas inteiras, sem ser visto por ninguem, retendo a respiração, Gilliatt acostumou-se a ver Deruchette andar pelo jardim. É facil acostumar-se ao veneno.

Do lugar em que se escondia, Gilliatt ouvia Deruchette conversar com mess Lethierry, debaixo de um espesso caramanchão feito de caniço, dentro do qual havia um banco. As palavras chegavam-lhe distinctamente aos ouvidos.

Quanto já não tinha andado! Chegou até a espiar e prestar ouvido. Ah! o coração humano é um velho espião!

Havia outro banco visivel e proximo, no fim de uma alameda. Deruchette assentava-se alli algumas vezes.

Pelas flôres que elle via Deruchette colher e cheirar, adivinhou as preferencias da moça a respeito de perfumes.

A moça preferia antes de tudo a campanula, depois o cravo, depois a madresilva, depois o jasmim. A rosa estava em quarto lugar. Quanto aos lyrios, olhava para elles, mas não os cheirava.

Á vista da escolha dos perfumes, Gilliatt compunha-a no seu pensamento. Cada cheiro significava para elle uma perfeição.

Só a idéa de fallar a Deruchette fazia-lhe arripiar os cabellos.

Uma boa velha que mascateava, e por esse motivo ia algumas vezes á rua que costeava o muro do jardim de Deruchette, veio a notar confusamente a assiduidade de Gilliatt junto daquelle muro e a sua devoção por aquelle lugar deserto. Ligaria ella a presença daquelle homem á possibilidade de uma mulher que estivesse atraz do muro? Descobriria esse vago fio invisivel? Restava-lhe acaso na sua decrepitude mendicante, um pouco de mocidade para lembrar-se de alguma cousa dos bellos tempos, e saberia ella já no inverno e na noite, que cousa é o alvor da madrugada? Ignoramol-o, mas parece que, passando uma vez perto de Gilliatt, que estava de sentinella, dirigio para o lado delle toda a quantidade de sorriso de que ainda era capaz, e murmurou entre as gengivas: aquece, aquece!

Gilliatt ouvio a palavra que lhe fez impressão, e murmurou com um ponto de interrogação interior; Aquece? Que quer dizer a velha?

Repetio machinalmente a palavra durante todo o dia, mas não chegou a comprehendel-a.

Estando um dia á janella da casa mal assombrada, cinco ou seis raparigas de Ancresse foram banhar-se, por pagode na angra de Houmet Paradis. Brincavam ingenuamente na agua, a cem passos delle. Gilliatt fechou violentamente a janella. Reparou então que uma mulher núa causava-lhe horror.