Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro VII/III
III.
NÃO TENTEIS A BIBLIA.
Nas vinte e quatro horas que se seguiram, mess Lethierry não dormio, nem comeu, nem bebeu, beijou a testa de Deruchette, informou-se de Clubin do qual ainda não havia noticias, assignou um papel declarando que não pretendia dar queixa, e fez soltar Tangrouille.
Ficou todo o dia seguinte, meio encostado a mesa do escriptorio da Durande, nem assentado nem de pé, respondendo com brandura a quem lhe fallava. Demais, estando satisfeita a curiosidade, ficou solitaria a casa de Lethierry. Ha muito desejo de observar na solicitude de lamentar. Fechara-se a porta; deixava-se Lethierry com Deruchette. O relampago que passára nos olhos de Lethierry estava extincto; voltara-lhe o olhar lugubre do começo da catastrophe.
Deruchette assustada, foi calladinha, a conselho de Graça e Doce, collocar ao lado delle, na mesa, um par de meias que Lethierry tecia quando a triste noticia chegou.
Lethierry sorrio amargamente e disse:
— Então pensam que não tenho juizo?
Depois de um quarto de hora de silencio, accrescentou:
— Estas manias são boas quando a gente é feliz.
Deruchette tirou o par de meias, e aproveitou a occasião para tirar tambem a bussola e os papeis de bordo, que mess Lethierry contemplava demasiadamente.
De tarde, um pouco antes da hora do chá, a porta abrio-se, e entraram dous homens, vestidos de preto, um velho, e outro moço.
O moço já foi visto no curso desta narração.
Tinham ambos um ar grave, mas de gravidade differente; o velho tinha aquillo que se póde chamar gravidade de profissão; o mancebo tinha a gravidade da natureza. A primeira vem do habito, a segunda nasce do pensamento.
Eram, como indicava o traje, dous padres, pertencendo ambos á religião estabelecida.
O que se notava desde logo no mancebo, era que a gravidade, profunda no olhar, e resultando do espirito, não nascia absolutamente da pessoa. A gravidade admitte a paixão, exalta-a purificando-a, mas aquelle mancebo era, antes de tudo, lindo. Sendo padre devia ter ao menos vinte e cinco annos; parecia ter desoito. Apresentava uma harmonia e um contraste, isto é, tinha uma alma que parecia feita para a paixão o um corpo que parecia feito para o amor. Era loiro, rosado, fresco, delicado e flexivel, apezar do vestuario severo, com faces de donzella e mãos delicadas; embora reprimido, tinha o gesto vivo e natural. Tudo nelle era encanto, elegancia, e quasi volupia. A belleza do seu olhar corrigia esse excesso de graça. O sorriso sincero, que deixava ver uns dentes de criança, era pensativo e religioso. Era a gentileza de um pagem e a dignidade de um bispo.
Debaixo dos espessos cabellos louros, tão dourados que pareciam garridos, tinha elle um craneo elevado, candido e bem feito. Uma leve ruga de inflexão dupla, entre as duas sobrancelhas, despertava confusamente a idéa da ave do pensamento pairando, com as azas abertas, no meio daquella fronte.
Sentia-se ao vel-o, uma dessas creaturas benevolas, innocentes e puras, que progridem em sentido inverso da humanidade vulgar, a quem a illusão torna sabios e a experiencia enthusiastas.
A mocidade transparente deixava vêr a maturidade interior. Comparado ao padre dos cabellos grisalhos que o acompanhava, á primeira vista, parecia filho, reparando-se bem, parecia pai.
Era este o Dr. Jaquemin Herodes. O Dr. Jaquemin Herodes pertencia á alta igreja, que é pouco mais ou menos um papismo sem papa. O anglicanismo nessa época era agitado pelas tendencias que depois se affirmaram e condensaram no puleysmo. O Dr. Jaquemin Herodes era desse matiz anglicano, que é quasi uma variação romana. Era alto, correcto, delgado e superior. O raio visual interior mal se distinguia de fóra. O seu espinto era cingir-se á letra. Demais a mais era altivo. Enchia com a sua pessoa o lugar que occupava. Parecia menos um reverendo que um monsenhor. A casaca era talhada a moda de sotaina. Em Roma é que elle estaria bem. Nascera para ser prelado da camara. Parecia ter sido creado expressamente para ser ornamento do papa, e ir atraz da cadeira gestatoria, com toda a côrte pontificia, in abitto paonazzo. O accidente de ter nascido inglez, e uma educação theologica mais voltada para o Antigo Testamento que para o Novo, fizera com que lhe falhasse esse destino. Todos os seus explendores resumimiu-se nisto: ser cura de Saint-Pierre Port, decano da ilha de Guernesey e subrogado do bispo de Winchester. Não ha duvida que era gloria tudo isso.
Essa gloria não impedia que o Sr. Jaquemin Herodes fosse um bom homem.
Como theologo, dispunha da estima dos conhecedores, e fazia quasi autoridade em Arches, que é a Sorbonna da Inglaterra.
Tinha um ar douto, um piscar d’olhos apto e exagerado, narinas cabelludas, dentes visiveis, o labio inferior fino e o labio superior expesso, muitos diplomas, uma gorda prebenda, amigos barões, a confiança do bispo, e continuamente trazia uma biblia na algibeira.
Mess Lethierry estava tão completamente absorto que tudo quanto pôde produzir nelle a entrada dos dous padres, foi um imperceptivel enrugar de sobrancelhas.
O Sr. Jaquemin Herodes approximou-se, cumprimentou, recordou em poucas palavras sobriamente altivas, a sua recente promoção, e disse que vinha, segundo o uso, apresentar aos notaveis, e a mess Lethierry especialmente, o seu successor na parochia, o novo cura de Saint-Sampson, o reverendo Joe Ebenezer Caudray, que dahi em diante seria o pastor de mess Lethierry.
Deruchette levantou-se.
O padre moço, que era o reverendo Ebenezer, inclinou-se.
Mess Lethierry olhou para o Sr. Ebenezer Caudray, e mastigou entre dentes estas palavras: mão marinheiro.
Graça apresentou cadeiras. Os dous reverendos assentaram-se perto da mesa.
O Dr. Herodes começou um speech. Tinha sabido de um acontecimento. Naufragara o Durande. Vinha, como pastor, trazer consolação e conselho. O naufragio era uma desgraça, mas era tambem uma felicidade. Sondemo-nos; não nos inchava a prosperidade? As aguas da felicidade são perigosas. Não se deve tomar as desgraças á má parte. Os caminhos do Senhor são desconhecidos. Mess Lethierry estava arruinado. Pois ser oppulento, é estar em perigo. Apparecem amigos falsos. A pobresa affasta-os. Fica-se isolado. Solus eris. A Durande dizem que dava mil libras esterlinas por anno. Era demais para um philosopho. Fujamos ás tentações, desdenhemos o ouro. Aceitemos com reconhecimento à ruina e o abandono. O isolamento dá fructos. Ganha-se nelle as graças do Senhor. Foi na solidão que Aia achou as aguas quentes, conduzindo os asnos de Sebeão, seu pai. Não nos revoltemos contra os impenetraveis decretos da providencia. O santo homem Job, depois da sua miseria, cresceu em riquezas. Quem sabe se a perda de Durande não teria compensações, mesmo temporaes? Tambem elle, Herodes, empregára capitaes em uma magnifica operação que se realizava em Sheffleld; se mess Lethierry, com os fundos que lhe restavam, quizesse entrar nessse negocio, podia refazer a fortuna; era um grande fornecimento de armas ao czar para reprimir a Polonia. Ganharia trezentos por cento.
A palavra czar pareceu despertar Lethierry, que interrompeu o Dr. Herodes:
— Não quero nada com o czar.
O reverendo Herodes respondeu:
— Mess Lethierry, os principes são acceitos por Deos. Deos escreveu: Dai a Cesar o que é de Cesar. O czar é Cesar.
Lethierry, meio absorto na scisma, murmurou:
— Quem é Cesar? Não conheço.
O reverendo Herodes continuou a exhortação. Não insistio por Sheffield. Não aceitar Cesar era ser republicano. O reverendo comprehendia que um homem fosse republicano. Nesse caso, comprehendia que mess Lethierry se voltasse para uma republica. Mess Lethierry podia estabelecer a fortuna nos Estados-Unidos, melhor do que em Inglaterra. Se quizesse desculpar o que lhe restava, bastava-lhe tomar acções na grande companhia de exploração das plantações do Texas, que empregava mais de vinte mil negros.
— Não quero nada com a escravidão, disse Lethierry.
— A escravidão, replicou o reverendo Herodes, é de instituição sagrada. Está escripto: «Se o senhor bater o escravo, nada lhe será feito, porque bate o seu dinheiro.»
Graça e Doce, na soleira da porta, ou viam com uma especie de extase as palavras do reverendo doutor.
O reverendo continuou. Era, em summa, como dissemos um bom homem; e quaesquer que podessem ser os seus dissentimentos de casta ou de pessoa com mess Lethierry, vinha-lhe sinceramente dar o auxilio espiritual, e mesmo temporal, de que dispunha.
Se mess Lethierry estava arruinado ao ponto de não poder cooperar, com fructo, numa especulação qualquer, russa ou americana, porque não entrava no governo e nas funcções assalariadas? São nobres empregos esses, e o reverendo estava prompto a introduzir mess Lethierry. Vagára em Jersey o lugar de deputado-visconde. Mess Lethierry era amado e estimado, e o reverendo Herodes, decano de Guernesey, podia obter para mess Lethierry o emprego de deputado-visconde de Jersey. O deputado visconde é um funccionario consideravel; assiste, como representante de Sua Magestade aos actos juridicos, aos debates da plebe, e ás execuções de sentenças.
Lethierry fixou os olhos no Dr. Herodes.
— Não gosto de enforcamentos, disse elle.
O Dr. Herodes, que até então pronunciára todas as palavras com a mesma inflexão, teve um assento de severidade e uma inflexão nova:
— Mess Lethierry, a pena de morte é ordenada por Deus. Deus entregou a espada ao homem. Está escripto: olho por olho, dente por dente.
O reverendo Ebenezer approximou imperceptivelmente a sua cadeira da cadeira do reverendo Jaquemin, e disse-lhe de modo que não fosse ouvido senão por elle:
— O que este homem diz é-lhe dictado.
— Por quem? perguntou no mesmo tom o reverendo Herodes.
— Pela consciencia.
O reverendo Herodes metteu a mão no bolso, tirou um grosso volume em 18° encadernado com fechos, pô-lo na mesa e disse em voz alta:
— A consciencia é isto.
O livro era a Biblia.
Depois foi-se abrandando o Dr. Jaquemin. O seu desejo era ser util a mess Lethierry, que considerava ser um homem forte. Como pastor, tinha elle direito e dever de aconselhar; todavia mess Lethierry tinha a liberdade de acceitar ou recusar o conselho.
Mess Lethierry, cahindo outra vez na absorpção e no abatimento, já não ouvia. Deruchette, assentada ao pé delle, e pensativa tambem, não levantava os olhos, e dava áquella pratica pouco animada a porção de acanhamento que resulta de uma presença silenciosa. Uma testemunha que não diz palavra é uma especie de peso indefinivel. Mas o Dr. Herodes não parecia sentil-o.
Como Lethierry não respondia, o Dr. Herodes deu largas á palavra. O conselho vem do homem, a inspiração vem de Deus. Ha inspiração no conselho do padre. É bom aceitar os conselhos, e perigoso regeita-los. Sochoth foi agarrado por onze diabos por ter desdenhado das exhortações de Nathaniel. Tiburiano foi atacado de lepra por ter posto fóra de casa o apostolo André. Barjesus, apezar de magico, ficou cégo por ter zombado das palavras de S. Paulo. Elxai, e suas irmãs Martha a Marthena estão no inferno a esta hora por terem desprezado as advertencias de Valencianus que lhes provava claro como o dia, que o Jesus Christo delles, de trinta e oito leguas de comprimento, era um demonio. Rolibana, que tambem se chama Judith, obedecia aos conselhos. Ruben e Theniel, ouviam os conselhos do céo; basta os nomes delles para indica-los; Ruben significa filho da visão, e Theniel significa face de Deus.
Mess Lethierry deu um socco na mesa.
— Mas a culpa é minha!
— Que quer dizer? perguntou Jaquemin Herodes.
— Digo que a culpa é minha.
— Culpa de que?
— Por ter mandado vir a Durande á sexta-feira.
O Sr. Jaquemin Herodes murmurou ao ouvido do Sr. Ebenezer Caudray:
— Este homem é supersticioso.
Continuou depois, e em tom de mestre:
— Mess Lethierry, é pueril acreditar na sexta-feira. Não se deve acreditar em fabulas. A sexta-feira é um dia, como qualquer outro. Ás vezes é data feliz. Melendez fundou a cidade de Santo Agostinho em sexta-feira; foi n’uma sexta-feira que Henrique VII deu a sua commissão a John Cabot; os perigrinos de Mayflower chegaram a Province-Town em sexta-feira. Washington nasceu na sexta-feira, 22 de Fevereiro de 1732; Christovão Colombo descobrio a America na sexta-feira 12 de Outubro de 1492.
Dizendo isto levantou-se.
Ebenezer, que tinha ido com elle, levantou-se tambem.
Graça e Doce advinhando que os reverendos iam despedir-se, abriram as portas.
Mess Lethierry não via nem ouvia nada.
O Sr. Jaquemin Herodes disse em aparte ao Sr. Ebenerez Caudray:
— Nem nos comprimenta. Não é tristeza, é embrutecimento. Devemos crer que elle está doudo.
Entretanto pegou na Biblia, e collocou-a entre as mãos abertas, como quem segura um passaro com receio que fuja. Esta attitude creou entre os personagens presentes uma certa espera. Graça e Doce esticaram a cabeça.
A voz de Herodes fez quanto pede para ser magestosa.
— Mess Lethierry, não nos separemos sem ler uma pagina do livro santo. As situações da vida são esclarecidas pelos livros; os profanos tem as sortes virgilianas, os crentes tem as advertencias biblicas. O primeiro livro, apanhado ao acaso, aberto ao acaso, dá um conselho; a Biblia, aberta ao acaso, faz uma revelação. É sobretudo boa para os afflictos. O que a Santa Escriptura respira indubitavelmente é um lenitivo ás dôres. Diante dos afflictos, deve-se consultar o santo livro sem escolher o lugar, e ler com candura o passo encontrado. O que o homem não escolhe, escolhe-o Deus. Deus sabe o que precisamos. O seu dedo invisivel aponta o passo inesperado que nós lemos. Qualquer que seja a pagina, rebenta-lhe luz. Não busquemos outra. É a palavra do céo. O nosso destino é revelado mysteriosamente no texto evocado com confiança e respeito. Ouçamos e obedeçamos. Mess Lethierry, o senhor tem uma afflicção, este é o livro da consolação; está enfermo, este é o livro da saude.
O reverendo Jaquemin Herodes abrio a mola do fecho, metteu o dedo ao acaso entre duas paginas, poz a mão no livro aberto, e concentrou-se; depois abaixando os olhos com autoridade leu em alta voz.
Eis o que elle leu:
«Isaac passeava no caminho que vai ter ao poço chamado Poço daquelle que vive e vê.
«Rebecca, vendo Isaac, disse: Quem é este homem que vem andando para mim.
«Então Isaac fel-a entrar na sua tenda, e tomou-a por mulher, e grande foi o amor que lhe teve».
Ebenezer e Deruchette olharam um para o outro.