Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro I/I
I.
INCOMMODA CHEGADA, DIFFICIL SAHIDA.
Já os leitores terão adivinhado que o barco, visto em muitos pontos da costa de Guernesey, na noite anterior, em horas diversas, era a pança. Gilliatt escolheu ao longo da costa o canal que se abre entre os rochedos; era a rota perigosa, mas era o caminho directo. Tomar o mais curto foi o cuidado delle. Os naufragos não esperara. O mar é cousa urgente, uma hora de demora podia ser irreparavel. Queria chegar depressa para soccorrer a machina.
Sahindo de Guernesey, uma das preoccupações de Gilliatt era não despertar a attenção. Sahio como quem fugia. Tinha ares de pessoa que se esconde. Evitou a costa d’Este como se achasse inutil passar á vista de Saint-Sampson e Saint-Pierre Port; resvalou silenciosamente ao longo da costa opposta que é relativamente inhabitada. Nos bancos teve de remar: mas Gilliatt manejava o remo segundo a lei hydraulica: tomar a agua sem choque e impeli-la devagar; desse modo pôde nadar, na obscuridade com a maior força e o menor rumor possiveis. Parecia que ia commetter uma acção feia.
A verdade é que, atirando-se de olhos fechados a um commettimento que parecia impossivel, e arriscando a vida com todas as probabilidades contra elle, receiava a concurrencia.
Como o dia começava a despontar, os olhos ignotos que estão talvez abertos no espaço, puderam ver no meio do mar, num ponto em que ha mais solidão e ameaça, duas cousas entre as quaes ia diminuindo o intervallo, sendo que uma approximava-se da outra. Uma, quasi imperceptivel no largo movimento das vagas, era um barco de vela; nessa barca havia um homem; era a pança levando Gilliatt. A outra immovel, collossal, negra, tinha, sobranceira ás vagas, uma sorprehendente figura. Dous altos pilares amparavam acima d’agua, no vacuo, uma especie de travessão horisontal que era como que uma ponte entre as duas cumiadas. O travessão, tão informe de longe que seria impossivel advinhar o que era, fazia corpo com os dous pilares. Parecia uma porta. Porque, haveria uma porta naquella abertura de todos os lados do mar? Dissera-se um dolmen titanico plantado alli, em pleno oceano, por uma phantasia magistral, e construido por mãos que leem o habito de apropriar ao abysmo as suas construcções. Aquella medonha forma levantava-se na claridade do céo.
A luz da manhã ia crescendo a leste; a alvura do horisonte augmentava a negridão do mar. Do lado opposto, declinava a lua.
Os dous pilares eram as Douvres. A especie de massa apertada entre elles como uma architrave era a Durande.
Apertando assim a sua victima, e deixando-a ver, o escolho era horrivel. A atitude daquelles rochedos era uma especie de repto. Parecia esperar.
Nada mais altivo e arrogante como tudo aquillo; o navio vencido, o abysmo victorioso. Os dous rochedos, ainda gotejantes da tempestade da vespera, pareciam dous combatentes em suor. Tinha acalmado o vento, o mar dobrava-se placidamente; advinhava-se que havia á flôr d’agua alguns bancos onde os penachos de escuma cahiam com graça; de longe vinha um murmurio semelhante ao zumbido das abelhas. Tudo era um nivel, menos as duas Douvres, levantadas e tezas como duas collunas negras. Os flancos escarpados tinham reflexos de armaduras. Pareciam prestes a encetar de novo a luta. Comprehendia-se que ellas nasciam de montanhas submarinas. Havia em tudo aquillo uma especie de omnipotencia tragica.
De ordinario, o mar occulta os seus lances. Conserva-se voluntariamente obscuro. A incommensuravel sombra guarda tudo para elle. É raro que o mysterio renuncie ao segredo. Ha um quê de monstro na catastrophe, mas em quantidade ignota. 0 mar é patente e secreto; esconde-se, não quer divulgar as suas acções. Produz um naufragio, e abafa-o; engolir é o seu pudor. A vaga é hypocrita; mata, rouba, sonega, ignora e sorri. Ruge, depois abranda-se.
Nada semelhante nas Douvres. Os dous rochedos, levantando acima das ondas o cadaver da Durande, tinham um ar de triumpho. Dissera-se dous braços sahindo do golphão, e mostrando ás tempestades, o cadaver daquelle navio. Era uma cousa igual ao assassino que se vangloria do crime.
A isto acrescentava-se o horror sagrado da hora. A madrugada tem uma grandeza mysteriosa que se compõe de um resto de sonho e de um começo de pensamento. Nesse momento turvado, como que fluctua ainda um pouco de espectro. A especie de immenso H maiusculo formado pela duas Douvres com a Durande no centro, apparecia no horisonte no meio de uma certa magestade crepuscular.
Gilliatt vestia a roupa do mar, camisa de lã, meias de lã, sapatos taixeados, japona de lã, calça de panno grosso mal tecido, com bolsos, e na cabeça um daquelles barretes de lã vermelha usados então na marinha, e que se chamavam no seculo passado galeriennes.
Reconheceu o escolho e avançou.
A Durande estava ao contrario de um navio deitado a pique; era um navio pendurado no ar.
Não havia mais estranho commettimento que o de salvar a machina daquelle navio.
Era dia claro quando Gilliatt chegou ás aguas do escolho.
Como dissemos, havia pouco mar. A agua tinha apenas a quantidade de agitação que lhe dava a estreiteza entre os rochedos. Ha sempre marulho nos espaços d’agua como aquelle, quer sejam grandes, quer pequenos. O interior de um estreito espuma sempre.
Gilliatt não abordou ao Douvres sem precaução.
Deitou a sonda muitas vezes.
Gilliatt tinha de fazer um pequeno desembarque de matalotagem.
Affeito ás ausencias, tinha sempre prompta em casa a matalotagem. Era um sacco de biscouto, um sacco de farinha de centeio, uma cesta de stok-fisch e de carne fumada, um grande pichel de agua doce, uma caixa norueguense com ramagens pintadas, contendo algumas camisas de lã, grevas alcatroadas, e uma pelle de carneiro que elle punha de noite em cima da japona. Tinha posto tudo isso, ás carreiras, na pança, e mais um bocado de pão fresco. Com a pressa, não levou outra ferramenta mais que o martello da forja, o machado e a picareta, uma serra, e uma corda de nós armada de fateixa. Com uma escada desta ordem, e a maneira de servir della, as subidas escabrosas tornam-se praticaveis nos mais rudes declives.
Póde-se ver na ilha de Serk a vantagem que os pescadores do Havre Gosselin tiram de semelhante corda.
As rêdes e as linhas e todo o arsenal de pescaria estavam na barca. Pôl-os dentro por costume, e machinalmente, porquanto, tendo de tentar até o ultimo esforço, talvez se demorasse algum tempo no archipelago de cachopos, e o apparelho da pescaria é inutil em taes sitios.
No momento em que Gilliatt abordou o escolho, o mar baixava, circumstancia favoravel. As vagas decrescentes descobriam ao pé da pequena Douvre, algumas pedras chatas ou pouco inclinadas, á semelhança de harpéos carregando um pavimento. Essas superficies, umas estreitas, outras largas, encadeando e elevando-se, com espaços desiguaes, ao longo do monolitho vertical, prolongava-se em cornija até debaixo da Durande, que abarcava o espaço entre os dous rochedos. Estava apertada ali como n’um tomilho.
Eram commodas aquellas plataformas para desembarcar e observar. Podia-se desembarcar ali, provisoriamente, o carregamento da pança. Mas era preciso apressar-se, porque ellas estariam fóra d’agua pouco tempo. Quando a maré enchesse ficariam outra vez cobertas.
Foi para essas rochas, umas chatas, outras declives, que Gilliatt impellio e fez parar a pança.
Uma espessura de sargaço, humida e escorregadia cobria essas rochas, e a obliquidade de algumas dellas mais escorregadias as tornava.
Gilliatt descalçou-se, saltou sobre o limo, e amarrou a pança em uma ponta de rochedo.
Depois approximou-se o mais devagar que pôde sobre a estreita cornija de granito, chegou debaixo da Durande levantou os olhos e contemplou-a.
A Durande estava preza, suspensa, e como que ajustada entre os dous penedos, vinte pés acima das vagas. Era preciso que fosse atirada ali por uma furiosa violencia do mar.
Tão impetuoso empurrão não faz pasmar a gente do mar. Para citar apenas um exemplo, a 25 de Janeiro de 1840, no golpho de Itora, uma tempestade, já espirante, fez saltar um brigue, de um só pulo, por cima do casco naufragado da corveta La Marne, e incrustou-o com o gurupés á frente, entre dous penedios.
Demais, nas Douvres apenas havia um resto da Durande.
O navio arrancado ás vagas foi de algum modo desenraisado da agua pelo furacão. O turbilhão do vento tinha-o torcido, o turbilhão do mar tinha-o preso, e o navio, seguro em sentido inverso pelas duas mãos da tempestade, quebrou-se como se fôra uma ripa. O pedaço da popa, com a machina e as rodas, arrebatado das aguas e impellido por toda a furia do cyclone para a garganta das Douvres, lá ficou. O vento foi acertado; para metter aquelle casco entre os dous rochedos o furacão transformou-se em massa. A proa, levada e rolada pelo vento, deslocou-se nos bancos de pedra.
O porão, que estava arrombado, esvasiara no mar os bois, mortos.
Um grande pedaço da amurada da proa, ainda estava preso ao casco, mas pendurada nas caixas das rodas por algumas lascas, faceis de quebrar com um machado.
Via-se aqui e ali, nas anfractuosidades longinquas do escolho, barrotes, taboas, pedaços de vela, pedaços de correntes, todos os destroços, tranquillos nos rochedos.
Gilliatt comtemplava com attenção a Durande. A quilha era o tecto que lhe ficava sobre a cabeça.
O horisonte, onde a agua illuminada apenas se mechia, estava sereno. O sol sahia explendidamente daquella vasta massa azul.
De tempos a tempos uma gota de agua destacava-se do navio e cahia no mar.