Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro II/VIII
VIII.
MAIS PERIPECIA QUE DESENLACE.
Chegára o tremendo instante.
Tratava-se agora de pôr a machina na pança.
Gilliatt ficou pensativo alguns momentos, tendo o cotovello do braço esquerdo na mão direita, e a fronte na mão esquerda.
Depois subio á Durande cuja metade, que era a machina, devia sahir e cujo casco devia ficar.
Cortou os quatro cabos que prendiam a estibordo e a bombordo as quatro correntes do cano. Como era corda bastou-lhe a faca.
As quatro correntes, livres, ficaram pendentes ao longo do cano.
Do navio subio elle ao apparelho que construira, bateu com o pé em todas as pranchas, examinou as roldanas, vio as polés, apalpou os cabos, verificou as emendas, assegurou-se de que o massame não estava profundamente molhado, certificou-se de que nada faltava, nem estava bambo, depois, pulando do alto das peças sobre o tombadilho, tomou posição, ao pé do cabrestante, na parte da Durande que devia ficar nas Douvres. Era esse o seu posto de trabalho.
Grave, sentindo sómente a commoção util, lançou um ultimo olhar ao apparelho, depois tomou uma lima e pôz-se a cortar a corrente que sustentava tudo.
Ouvia-se o ranger da lima no meio do murmurio do mar.
A corrente do cabrestante presa ao cabo regulador, ficava ao alcance da mão de Gilliatt.
De repente houve um estalo. A argola que a lima cortava, já limada por metade, tinha-se quebrado; todo o apparelho estava solto. Gilliatt teve apenas tempo de agarrar o grande cabo.
A corrente quebrada bateu no rochedo, os oito cabos retezaram-se, toda a massa cerrada e cortada desprendeu-se do navio, abrio-se o ventre da Durande, o assoalho de ferro da machina, pesando sobre os cabos, appareceu debaixo da quilha.
Se Gilliatt não tivesse chegado a tempo ao cabo regulador, havia uma queda. Mas a sua mão terrivel estava lá; foi apenas uma descida.
Quando o irmão de Jean Bart, Pieter Bart, aquelle bebado possante e sagaz, aquelle pobre pescador de Dunkerque que tratava o grande almirante por tu, salvou a galera Langeron perdida na bahia de Ambleteuse, quando para tirar aquella pesada massa fluctuante dos cachopos da bahia furiosa amarrou a vella grande com juncos marinhos, quando elle quiz que os juncos, quebrando-se por si, abrissem a vella ao vento, fiou-se na rotura dos juncos, como Gilliatt na fractura da corrente, e foi a mesma estranha audacia coroada pela mesma victoria surprehendente.
A corda motora segura por Gilliatt operou admiravelmente. Devem lembrar-se que essa corda tinha por fim diminuir as forças convertidas em uma só e reduzidas a um movimento de conjuncto. Aquella corda tinha alguma relação com uma bolina; sómente em vez de onentar uma vela, equilibrava um machinismo.
Gilliatt de pé, e com a mão no cabrestante, tinha por assim dizer a mão no pulso do aparelho.
Aqui a invenção de Gilliatt, manifestou-se toda.
Produzio-se uma notavel coincidencia de forças.
Emquanto a machina da Durande, separada em massa, descia para a pança, a pança subia para a machina. O navio naufragado e o barco salvador, ajudando-se em sentido inverso, iam encontrando-se. Poupavam-se deste modo metade do trabalho.
A maré enchendo sem rumor entre as duas Douvres, levantava a embarcação e aproximava-a da Durande. A maré estava mais que vencida, estava domesticada. O oceano fazia parte do machinismo.
A vaga subindo, levantava a pança sem choque, brandamente, quasi com precaução e como se ella fosse de porcellana.
Gilliatt, combinava e proporcionava os dous trabalhos, o da agua e o do apparelho, e, immovel no cabrestante, especie de estatua temivel obedecida por todos os movimentos ao mesmo tempo, regulava a lentidão da descida pela lentidão da subida.
Nenhum abalo na agua, nenhum balanço nas pranchas. Era uma estranha collaboração de todas as forças naturaes dominadas. De um lado a gravitação levava a machina; do outro a maré trazia o barco. A attracção dos astros, que é o flux, e a attracção do globo, que é a gravidade, pareciam harmonisar-se para servir a Gilliatt. A sua subordinação, não tinha hesitação nem parada, e, debaixo da pressão de uma alma, aquellas duas potencias passivas, tornavam-se activos auxiliares. A obra caminhava de minuto a minuto; o intervallo entre a pança e a Duraude diminuia insensivelmente. Fazia-se a aproximação em silencio e com uma especie de terror pelo homem que estava alli. O elemento recebia uma ordem e executava-a.
Quasi no momento em que a maré cessou de subir, os cabos cessaram de correr subitamente, mas sem commoção; as roldanas pararam. A machina, como se fosse collocada á mão assentou-se no fundo da pança. Estava direita, de pé, immovel, solida. A placa que a sustentava apoiava-se com os seus quatro angulos e aprumo no porão.
Estava prompto.
Gilliatt olhou attonito.
A pobre creatura não tinha tido muitas alegrias em sua vida. Sentio o alquebramento de uma immensa felicidade. Dobravam-se-lhe os membros; e diante do seu triumpho, elle que não se perturbara até então, começou a tremer.
Contemplou a pança debaixo do navio e a machina dentro da pança. Parecia não acreditar. Dissera-se que elle não contava com aquillo. Sahira-lhe um prodigio das mãos, e elle contemplava-o com espanto.
Mas esse espanto durou pouco.
Gilliatt teve o movimento de um homem que desperta, travou da serra, cortou os oito cabos, depois, separado agora da pança apenas uns dez pés, deu um salto, cahio dentro, pegou em um rolo de fio, fez quatro cabos, passou-os nas argolas preparadas de antemão, e prendeu por ambos os lados da pança, as quatro correntes do cano que uma hora antes ainda estavam presas na amurada da Durande.
Amarrado o cano, Gilliatt desembaraçou a parte superior da machina. Um pedaço do tombadilho da Durande ainda alli estava preso. Gilliatt, despregou-o e limpou a pança daquella porção de taboas e vergas que atirou sobre os rochedos. Util allivio.
Demais, como é de prever a pança sustentou com firmeza a carga da machina. Mergulhou muito pouca cousa. A machina da Durande, embora massiça, era menos pesada que o montão de pedras e o canhão trazidos outrora de Herm pela pança.
Tudo estava acabado. Só restava ir-se embora.